quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ei, mede meu bíceps?

O convite me pegou despreparado. Nunca antes eu medira um bíceps nem me imaginara fazendo tal.

O instinto antropológico me sugeriu, quem sabe, ser isso muito normal dentro do mundo das academias de musculação. Mundo que eu estava há pouco tempo.

Então medi o bíceps do cara.

E de fato, eu veria mesmo outros caras medindo outros músculos de também outros caras. Sim, é algo comum dentro do universo do no pain no gain. 

Mais que comum, público – não havia um lugar privado para. E, afinal, não estritamente necessário, pois é possível medir (quase) todos os músculos sem ajuda de ninguém.

Aquilo me deixou curioso. E admito que com certo estranhamento.

Só depois entendi o porquê. Muito simplesmente, aquilo destoava do padrão de masculinidade a que fui submetido desde pequeno. Não só eu, mas creio destoava do padrão a que a maioria mais que absoluta dos homens também foi submetida. Um padrão de que nem sempre a relativização vem fácil.

É o padrão heterossexual, claro. O padrão das ditas verdades óbvias. Que homem não chora, que homem veste azul, que homem brinca de carrinho, que homem fala palavrão, que homem briga. E contradizer isto é, de acordo com o padrão, entrar numa zona tida por perigosa, a zona do que é potencialmente não-hétero.

Mas, dentre tantas outras “verdades”, a que aqui destaco é aquela de que homem não toca no corpo de outro homem. Não de qualquer jeito.

É preciso uma situação. Um contexto muito bem dado que legitime aquele toque.

Um abraço entre conhecidos que não se viam há tempos, ok. A marcação corpo a corpo no futebol, ok. Mas que o abraço não se demore, e que a marcação não inspire nada que não seja esportivo, avisa o padrão.

Aprendemos, desde pequenos, que o toque entre homens é tenso. Como se pudesse revelar coisas, sugerir tendências que atentam contra aquele padrão. E tanto pior ondese toca e a duraçãodesse toque.

Lembro de uma brincadeira dos tempos de escola. Só para meninos.

Todos tentávamos nos aproveitar de um colega distraído para então pousar a mão em seu ombro; quanto mais o outro menino deixasse aquela mão lá, sobre seu ombro, mais gay ele era(como se houvesse essa gradação, inclusive).

Na época não fazia sentido nenhum e hoje continua sem fazer(por que mão no ombro!?);  mas esse não é ponto, senão exemplificar como o toque entre meninos, que se supõe gostarem de meninas, foi sempre posto como fonte de tensão e mesmo desconforto.

E tenso e desconfortável porque abria portas àquela interpretação, do ser gay, do não gostar de meninas. 

Mas eis que na academia pede-sepelo toque de um um outro homem - e de um modo que nenhuma das partes envolvidas veja ameaçada a suposição de gostar de mulher, que seria a consequência mais lógica dentro do padrão de masculinidade.

No braço, na perna, na medição do entorno do peito. O toque, guiando uma fita métrica, é legítimo.

Se havia aquelas brechas – a do abraço, a do futebol, por exemplo – aqui parece que se acrescenta mais outra. A academia de musculação torna-se uma das situações em que o toque masculino-masculino é viável; um dos contextos em que o padrão masculino heterossexual, aquele vindo desde a infância, parece relaxar um pouco em um ou outro de seus dizeres.

Considerando exclusivamente o toque, talvez na academia até fique em suspenso a Grande Dúvida que cerca aquele padrão - seria isso coisa de gay?

Em suspenso, mas ainda assim, aposto, em vigília.

Bastaria uma medição que, quem sabe, se demorasse demais, ou um gesto que descuidasse da precisão funcional do ato, e a Grande Dúvida voltaria. E ela lembraria então que o toque masculino-masculino, de forma geral, e sob a ótica da preservação da heterossexualidade, foi sempre interpretado como sendo algo tenso, algo que gera um desconforto.

Faria lembrar dessas sensações que de tão íntimas e entranhadas acabam ocultando suas origens sociológicas, e pior, dificultando seu desarme.