segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Cara, honre suas bolas!

     Dois caras conversavam perto de mim. Na mesa ao lado para ser mais exato. E não sei se foi pelas cervejas que eles tomavam, mas conversavam de tal modo que escutá-los não era indiscrição nem esforço. Um deles contava da infelicidade amorosa: gostava tanto da garota mas ainda assim não conseguia se aproximar dela, nem sequer fazer algo que o conduzisse ao sucesso afetivo. E depois de contar casos e acontecimentos, tantos quases e outras tantas possibilidades, seu interlocutor interrompe:

- Cara, honre suas bolas! Deixa de frescura e fale com ela. 

É, você mesmo, honre-as!
   Tá aí. Esse tal do honre suas bolas é mesmo uma expressão curiosa. Curiosa e corrente na vivência masculina. Talvez não com essas palavras, talvez em outro contexto, mas o sentido está lá, sempre presente.  

   Que sentido?

   Um sentido de regra, de norma, de enquadramento. Isto é, ter bolas é ter de agir de um tal modo.

   Geralmente as bolas são invocadas para lembrar justamente como um homem deve ter atitude. Homens não vacilam, homens não sentem insegurança; não, homens honram suas bolas.

   Homens tomam a frente, fazem acontecer, marcam presença, enfrentam desafios, não fogem do confronto. Isso é ter bolas, ter colhões, ter o saco roxo(salve, Collor!).

   No fundo, temos aqui nada mais do que nosso regime de gênero se fazendo valer. Mais do que expressões, são expectativas acerca de um comportamento legitimado e que diz o que é masculino e o que é feminino. Neste caso, que o masculino honra suas bolas e com isso é um homem de atitude e ação. 

   E nestes termos, é interessante perceber como a noção de um homem tímido é problemática para aquele regime. Afinal, não raro se pede(exige) justamente que um tímido vá lá e honre as suas bolas – como parecia ser o caso dessa conversa que roubei.

   É que um homem tímido, sim, vacila, ele, sim, sente insegurança. É um homem que tem dificuldades(sem entrar no mérito das origens) para o conflito, para as decisões. Um homem que não raro o acusam de falta de atitude, de total ausência de presença. Muito sumariamente, timidez como sinônimo das bolas sendo desonradas.

   Mas tal qual são muitas as dinâmicas de gênero, isto se naturaliza e se mascara.

   É dito que não se trata de gênero, se trata exclusivamente de personalidade. E subitamente o homem é aconselhado a perder sua timidez não por que o homem masculino não deve ser tímido, e sim porque não é normal para qualquer pessoa ser tímida. Mas aí ocorre a exposição da fissura. Pois mesmo imperando o discurso de que não é normal para qualquer pessoa, isso não impede que a timidez seja melhor tolerada, ou mesmo valorizada, nas mulheres – recato, submissão, silêncio, atributos tímidos que ainda abundam nas personagens e representações femininas.

   Podemos perceber então esse recorte de gênero por detrás da noção de timidez(e tudo o que muito genericamente lhe é atribuído), e que se torna claro também quando a timidez não existe, ou seja, quando a pessoa exorciza de si qualquer sinal tímido.

Dilma e seu epíteto de gerentona
   Nestes casos, quando o masculinoassegura não ser tímido isto é lido num tom do já esperado, daquilo que não causa surpresa nem merece menção: é o que todo homem deveria ser. Já quando femininopatenteia a sua não timidez, não raro isso vem em um tom de destaque, daquilo que é extraordinário: basta ver como as mulheres líderes são exaltadas pelo seu poder de decisão, seu punho forte, sua atitude pró-ativa(coisas que não se elogia no homem líder pois, repito, se supõe que ele tenha quase naturalmente).

   Deste modo, quando um homem é convocado a honrar suas bolas trata-se, simplesmente, de uma convocação a atender as demandas do nosso regime de gênero. É como um alerta: eivocê está se distanciando do que deveria ser, volte lá e honre as suas bolas. É um lembrete, ainda, de todo o cultural-machista em que esse homem está inserido e que não pode muito displicentemente ir contrariando.

   E aquele cara em específico estava sim contrariado o cultural-machista. E pior ainda, num setor muito frágil da masculinidade padrão que nos é passada: a interação afetivo-sexual com o sexo oposto. Setor onde certamente as bolas devem ser honradas, pelo menos é o que nos diz nosso regime de gênero. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Domingo no parque

   Domingo, quase duas da tarde, a lasanha ainda descendo e o Roberto lá, todo estirado no sofá; pálpebras pesadas, ameaçava um cochilo gostoso quando o barulho seco de madeira batendo o trouxe de volta. Era sua esposa na cozinha preparando o chá e ruidosamente abrindo e fechando gavetas e portas dos armários, um aviso de que o programa para a tarde ainda estava de pé. Todo preguiça, mas bem treinado de outros domingos, ele levanta do sofá e vai juntando o que lembra: protetor solar, repelente, bonés, esteira de palha, óculos de sol... Óculos?

- Ô, Mô, cê viu meus óculos?

   Mônica procurava agora a sacola grande retornável, aquela vistosa de sucessivas faixas coloridas. A compraram para a feirinha que acontece todo sábado na praça ali perto, porém só uma vez a sacola serviu ao propósito inicial ficando depois relegada a eventuais programas domingueiros como o de hoje. Quando a encontra Mônica logo desconfia; mete o nariz dentro e dá algumas fungadas feito cão de caça. O azedume denuncia que não foi lavada desde a última vez. Azar, pensa resignadamente. Ajeita lá dentro o pacote de bolacha de água e sal, um pano de prato, um potinho com duas facas e algumas frutas. Guardou um canto para a garrafa térmica com o chá, o que a faz lembrar de pegar o adoçante. É quando avista a caixa de bombons. Do fundinho do armário, como que escondida atrás do saco de arroz, a caixa de bombons surge reluzente e chamativa. Mônica fica indecisa, a mão vacila no meio do caminho. Levo a caixa ou não?, se pergunta e sente crescer a desconfiança de que esse presente inesperado dado pela sogra, que jurou não saber que o casal estava em dieta, tinha sido a última provocação daquela velha falsa. A indecisão lhe tomaria mais tempo caso não tivesse lembrado das frutas, do adoçante, do chá substituindo o refresco, da bolacha de água e sal(tão sem graça!), e não tivesse tomado consciência de como os bombons seriam uma traição a toda essa logística de baixa caloria, e sobretudo uma traição à promessa que ela e o Roberto fizeram no ano novo sobre emagrecer aqueles quilinhos a mais que a pacata vida de casados veio dando aos dois. Deixou a caixa de lado, a reservando mentalmente para um daqueles dias em que a vida se mostra azeda demais. Nisso a água ferve e é hora de colocar a erva em infusão. 

- Tá pronto, Beto?, grita em direção ao quarto.

   Passar um domingo de sol em um parque grande e verde tem algo de prazer e liberdade instintivos, como se houvesse o eco de uma infância da humanidade que permanecesse oculto no peito desses adultos chatos e só viesse à tona nessas ocasiões - ou talvez seja só o contraste com um apertado apartamento de dois quartos com vista direta para o prédio ao lado. Fosse pelo que fosse, Roberto e Mônica adoravam esse tipo de domingo. Abrigados sob a sombra das árvores, se espicharam sobre a esteira de palha e sentem o vento suave varrer o mormaço do verão; nisso até o chá quente dentro da garrafa térmica fica menos despropositado.

   Os dois sorriem a dentes plenos, percebem-se despreocupados, transbordam boa vontade. E como que expressando isso arriscam algumas carícias de casal. Em público as carícias são sempre mais gostosas, como se carinhos e afagos ganhassem em sensibilidade quando com plateia. Claro que tudo muito comedido, afinal, há o bom senso – e há os cinco anos de casados servindo de barreira para a melação sentimental típica dos colegiais. No auge da descontração causada pelo parque, sol e domingo, concordam veladamente em brincar de ciúmes, porque a fulaninha assanhada do escritório do Roberto insiste em ficar curtindo tudo o que ele posta no Facebook, e também porque o filhinho-de-papai-saradinho do andar de baixo quando fala com a Mônica gesticula mais que italiano sindicalista só para desfilar os braços sem manga de camisa e provar que o dinheiro gasto em horas e horas de academia está dando resultados. Mas brincar de ciúmes refresca a paixão, devolve certo brilho na troca de olhares e sempre acaba em beijo dengoso.

   Então alguém lembra do passado, das histórias que viveram juntos, dos amigos que já não veem mais. Recordam também que têm planos, como a grande viagem de férias para alguma belíssima praia no litoral nordestino e o cachorro – ou seria gato, tinham que decidir – que iam arranjar em breve, porque a experiência com os peixinhos já deu o que tinha que dar. E vamos combinar, né, Beto, com peixe ninguém se apega nem cria responsabilidade alguma! Sim, eles já estavam juntos havia um tempo, era hora de treinar a responsabilidade e logo imitar os casais conhecidos, acalentar aquela expectativa sem-fim das respectivas sogras. E quando tudo é dito e outro tanto lembrado, como que faltando o que mais dizer, concentram-se no chá e no molhar as bolachas dentro do chá.

   Aos poucos reina esse silêncio só entrecortado pelo mastigar do biscoito e pelo sorver do chá quente. E aqueles lábios que iam sorridentes parecem desistir e se cansam, e murcham também aos poucos. Mônica vê boa hora para expressar seu arrependimento e se desculpa por ter esquecido de pegar as xícaras. É tão ruim beber nesse copo-tampa da garrafa térmica! Roberto diz que aquilo não tem importância.

   Ela retira da sacola uma laranja e dos potinhos uma faca. Uma laranja sendo descascada faz um barulho gozado e em algum lugar do passado um deles notaria isso - mesmo já tendo notado outras vezes-, comentaria, e então ririam. Porém isso em algum lugar do passado. Porque agora ele repara num homem gordo, indo já pela meia-idade, todo encharcado de suor enquanto corre sofregamente debaixo daquele sol escaldante, e isso dispara a memória da lasanha que Mônica fez no almoço. Bichinhos invisíveis lhe roem por dentro deixando para trás a desconfiança que talvez ela não esteja levando a promessa da dieta tão a sério. Uma rachadura aparece e logo o dique todo se rompe. Uma ranzinzice que veio ali da última semana de trabalho, daquela encheção de saco que o babaca do chefe faz todo dia, se mistura difusamente com pequenas coisas sempre presentes da vida a dois - como o jeito egoísta dela em tomar decisões sem lhe consultar – e então algo precisa ser dito. Coisas que esperavam um momento de espetar o que quer que fosse e que precisam ser ditas. Ó, de lasanha em lasanha eu fico assim e você também. Acho que você deveria levar nossa dieta mais a sério, diz em tom de censura.

   O vento ainda sopra sacudindo o mormaço, as folhas das árvores, e levando o domingo embora.

   Final de tarde, o sol indo embora faz toda uma multidão voltar para suas casas. E Roberto e Mônica também, um casal contra o poente. Ele leva a sacola colorida, agora ainda mais fedida por mais um acidental vazamento de chá, e ela com a esteira de palha debaixo do braço. Uma cena bonita cheia de cores e sombras que talvez valesse uma foto para o Instagram. Roberto dá a ideia, parecendo uma compensação pelo azedume de quando falou da lasanha e da dieta. Contudo, ela recusa; diz que está com pressa para chegar em casa porque ainda precisam passar na padaria lá da esquina, e a essa hora deve estar apinhada de gente – e isso foi a ranzinzice ali de uma outra semana de trabalho, dos infernais filhos dos outros tumultuando a aula da professora Mônica, um outro quebra-cabeças de descontentamentos também aguardando sua brecha muito humana. E em direção ao poente os dois seguem sem conversa, sem contar para o outro a incômoda sensação de deja vu.

   Mal entram no apartamento e já jogam as coisas num canto da sala. Vai primeiro ou eu vou?, pergunta Mônica. Ela vai pro banho e ele se esparrama no sofá, sentindo a mesma preguiça que sentia às duas horas da tarde, como se escondida até agora ali mesmo em algum canto só esperando o seu retorno. Mas agora já não é hora de cochilar, diz ao lembrar que amanhã é segunda-feira. Liga a TV, troca os canais, vê os gols da rodada, descobre que seu time perdeu, e acaba assistindo o depoimento molhado e orgulhoso da professa de primário do mais novo galã da novela das oito que, sorrindo sem graça, parece não lembrar muito bem da tal professora. E já ia fechando os olhos quando chegou sua vez de ir para o banho. Foi, mas não sem antes desligar a TV: tinham combinado que tentariam cortar em 10% os gastos com a conta de luz do jeitinho que o especialista em finanças domésticas do Fantástico sugeriu e garantiu ser possível – basta que todos na casa colaborem.

   Com a toalha enrolada na cabeça e vestindo um roupão domingueiro daqueles que visita não pode ver, Mônica liga a TV. Não que queira assistir alguma coisa. É só que o apartamento pequeno que é, e com aquele estúpido aquário vazio sobre a mesa da sala, fica tão triste em silêncio que até a TV vem a calhar. E isso certamente justifica um gasto a mais na conta, racionaliza ela. Vai até a cozinha e põe a mesa com dois pratinhos para lanche. Ajeita sobre ela a sacola de pães, acha no fundo da geladeira o requeijão light, e fica nervosa por um momento quando não encontrou o peito de peru fatiado e pensou ter acabado. Mas estava lá, apenas escondido atrás da tigela com o restante da lasanha do almoço. Mônica pega também um tomate para rechear seu sanduíche. Então pensa em pegar e cortar logo dois, um para o Roberto. Contudo havia o cansaço do dia, e além do cansaço a visão da lasanha, bem a sua frente, que em algo lhe servia como argumento. Apanhou apenas um tomate e fechou a geladeira.

   Depois de jantar os dois sentam em frente a TV e assistem o domingo entrar nas derradeiras horas. Ao longe, distante do apartamento, escutam motores de carros e motos; parecem surreais, como se saíssem de um lugar oculto só para entrar num túnel infinito, distante, até se abafarem por completo. Nessa hora o domingo é chato demais e eles percebem. Como numa defesa instintiva se aninham no sofá, só que evitam se encostar demais um no outro porque faz calor e os dois já não tem mais público. A tela traz uma sucessão de imagens, rajadas de sons diversos as acompanham, mas com dificuldade compõe algum sentido. Às vezes ele e ela riem, às vezes comentam algo, às vezes parecem economizar palavras, às vezes as sentem subtraídas. E não adianta, o silêncio entre os dois é reinante, quebrado só pela TV e pelas embalagens barulhentas dos bombons que os dois estão comendo e não lembram quem, ignorando a promessa, trouxe aquela caixinha de irresistíveis calorias – seria talvez um daqueles dias de vida azeda demais? E sem que se deem conta o apartamento vai ficando infeliz, todo pintado de azul, uma marcha lenta, aos poucos, como se alguma coisa gasosa e densa entrasse pela janela do quarto e contaminasse todo o resto, bem lentamente, feito bolo assando, estufando pelo calor e pelo fermento, finalmente surpreendendo por ter ficado tão grande.

   De repente Mônica tem um sobressalto e abruptamente desencosta a cabeça do ombro do Roberto. O que foi?, ele pergunta. A sacola! É melhor por de molho e amanhã de manhã pendurar no varal, senão domingo que vem não dá pra ir no parque, ninguém vai aguentar o fedor! Ele apenas estala a língua com descaso e puxa a cabeça dela de volta, disposto a retornar o ombro à condição de travesseiro. Deixa pra lá, Mô, domingo que vem é domingo que vem, tá longe, quem sabe chova, quem sabe a gente almoce na casa dos meus pais, quem sabe a gente não faça nada e fique por aqui mesmo.


   Por aqui mesmo, pensam os dois, por aqui mesmo já há algum tempo. E sem deixar que o outro perceba, temem que por aqui mesmo por muito mais tempo.