domingo, 2 de fevereiro de 2014

Que viadagem aquele beijo!

Na banca de jornal a discussão rolava solta. Se bem que tecnicamente não era discussão pois não havia discordância: todos concordavam em reprovar beijo gay da novela das oito.


Que viadagem aquele beijo!
Querem nos fazer gays.
Esse mundo tá virado em bicha.
Não adianta falar de preconceito, isso é errado.
Pôr isso em horário nobre já é demais!

E por aí a fora.

Com otimismo podemos pensar que tais opiniões são restritas a um certo público, e só a esse público. Neste caso, os frequentadores das bancas de jornal nas manhãs de domingo, um local de sociabilidade tipicamente masculina. Todos homens já com uma certa idade, com certa calvície, um tanto grisalhos, que usam camisa polo e dirigem grandes e novos carros prateados.

Mas otimismo tem limite, e aquele público certamente, e infelizmente, não tanto. É que local, idade e classe não delimitam certos valores encrustados em nosso íntimo.

Somos criados em uma cultura que nos faz dar uma importância tremenda à sexualidade. E por mais que no fundo nossa sexualidade possa ser somente uma preferência, uma escolha pautada em gostos e tendências pessoais(e um outro tanto de inculcamentos sociais), não a vemos deste modo. Ela é mais importante do que isso; a tratamos como algo que somos.

As pessoas não gostam de pessoas do sexo oposto. Não. As pessoas são heterossexuais. As pessoas não gostam de pessoas do mesmo sexo. Não. As pessoas sãohomossexuais.

De algum modo, esse seré ainda mais importante para a masculinidade. Saber qual masculinidade um homem é, isso é crucial – e potencialmente perturbador.

Mais do que necessidade de rótulo, isso reflete quão fundamental é nossa sexualidade para definir aquilo que somos e para o sentimento de que somos algo. Fala sobre nossa humanidade, nossa essência. E tanto melhor se estamos naquilo que se convenciona chamar do normal.

Eu sou normal pois sou heterossexual.

Ou, adotando a perspectiva masculina que tento sugerir, surge uma das possíveis variações: Eu sou homem de verdade.

Voltando a novela: e o beijo gay? E o cidadão que viu no beijo uma conspiração gay mundial? E o outro que dizia ser errado? E a ofensa de ver isso no, pasmem!, horário nobre?

Quanto mais essencial é um valor para nós, mais descabida é sua relativização. E um beijo gay, em horário nobre, alcançando tantos lares e pessoas como só a Globo alcança, é uma grande relativização. E o que se relativiza, como dito, não é um gosto ou uma preferência ou uma norma social. Não. É aquilo que somos. A novela de repente fazendo uma fissura naquilo que eu sou, um heterossexual normal.

Logo, sob a perspectiva da masculinidade, a fissura é mais problemática porque acontece sobre ela, a masculinidade. Eram dois caras se beijando, dois galãs, dois sujeitos que imaginamos terem à disposição qualquer mulher.

Dois seres barbados trocando beijos, isso incomoda horrores. Escancara uma possibilidade que com muito esforço é silenciada. 

Para os homens, expressões homossexuais femininas são também reprováveis, mas encontram um fácil subterfúgio nas fantasias sexuais masculinas – a sensação de poder sobre dois corpos femininos, sensação de possuir e supostamente satisfazer sexualmente duas mulheres que até então não se satisfaziam com homens. Nestes casos a homossexualidade torna-se perdoável na medida em que é um desafio-incentivo ao masculino. Assim, quase certo que o beijo gay feminino não seria tão problemático.

Não assisto novelas e portanto não vi o famigerado beijo. Só fiquei sabendo dele através de menções prévias e sensacionalistas em sites de notícia e hoje, na banca de jornal, pelos comentários avessos do pessoal que lá estava.

Mas que venham mais beijos gays. Que a fissura torne-se rachadura e dela algo novo saia. E tanto que um dia o beijo gay não seja gay, e somente beijo.

O que nós, homens heterossexuais, normais para aqueles que creem na normalidade, precisamos entender, é que a liberdade do beijo gay diz sobre a nossa liberdade. 

A liberdade do normalpoder chorar, confessar que sente, experimentar algo além do futebol, da cerveja e dos tapas nas costas, poder ter conversas francas, poder todos aqueles clichês que são negados ao dito macho. E isso não quer dizer que o heterossexual será homossexual. Trata-se só da liberdade de olhar sua própria vida partindo da saudável perturbação de quem se sabe humano, e não da altivez de um papel falso que passa a vida toda, a trancos e barrancos, tentando interpretar estoicamente(e que inclui frases desnecessárias do tipo que viadagem aquele beijo!).