Ontem foi o Dia do Homem e fiquei incomodado com os discursos polares que a data fez surgir. Do confuso discurso sobre um orgulho masculino, até um possivelmente insensato discurso sobre a inutilidade da data, vejo a insistente filosofia do 8 ou 80. Um pensamento extremista em tempos do progressivo fracasso do extremismo.
O Dia do Homem, assim como qualquer outra data, apresenta suas fissuras, seja na proposta ou na prática vivida (ou talvez em ambos).
Assim, desconcerta lembrar que uma das motivações originais da data foi uma contestável defesa dos direitos masculinos, assim como desconcertam os discursos(geralmente masculinos) surgidos nesta data que giram em torno de um genérico ‘aproveite suas bolas e sua testosterona pois hoje é o seu dia, cara!’.
Mas assim como qualquer outra data, há aqui potencial reflexivo e subversivo, e ficar acomodado nos opostos excludentes não oferece recursos para aproveitar esse potencial.
Todo ano as mulheres ganham flores e mimos no dia 8 de março, como se fosse para isso que a data existisse. Não, não é para isso, e essa distorção não impede a luta pela conscientização acerca dos reais motivos. Na verdade, é mesmo uma motivação para continuar a luta de conscientização, indicando até os caminhos mais urgentes.
Conscientização, essa palavrinha clichê mas que sabemos sempre ser útil. E por que o Dia do Homem(com suas distorções e tudo) não pode ser também o dia de luta por conscientização?
O sentido mais comum da data é o do homem cuidar da sua saúde. E não é pouco sentido.
Sabemos que uma das questões mais caras à masculinidade típica e patriarcal é o homem invencível, um homem imbatível e, logo, que não vai a médico – e deus o livre ‘levar dedada no cu’. Portanto, um dia que tem o potencial de dizer a esse homem que ele não só deve como pode cuidar da saúde, tornando mais digestível uma visão de si mais carnal e menos egóica, vai contra uma imagem masculina de séculos. E isso já é conscientização.
Pode parecer pouco. E certamente há homens cientes de sua saúde que ainda assim acreditam na mais ultrapassada concepção sobre as relações de gênero. Algo como se perder a obrigatoriedade de ser invencível não desobrigasse a mulher a sair da cozinha.
Mas se um homem tem esse primeiro aceitamento é já um caminho reflexivo, talvez um ponta-pé inicial, para a desconstrução desse gigante muro chamado machismo.
Ou seja, a data tem um potencial, e tê-la por inútil é cegar-se a esse potencial.
Posso estar vitimado pela Síndrome de Pollyanna, mas esta data me parece a oportunidade para, por exemplo, professor@s conscientes formarem alun@s conscientes. É aquele entrar na sala e provocar uma reflexão sobre por que diabos existe um Dia do Homem, daí partindo para uma saudável(espera-se, né) discussão sobre as relações de gênero e desconstrução de estereótipos. Algo próximo ao que professor@s já fazem no Dia da Mulher, ou no Dia da Consciência Negra.
Por isso, quando leio sugestões da inutilidade da data, leio defesas sutis do status quo de nossa cultura de gênero.
Quem sabe, nos anos próximos, pode ser esta data um dia para levar a público debates e críticas mais consistentes contra as mazelas de nossas relações de gênero. Assim como o 8 de março não é por flores, o 15 de julho pode não ser “apenas” por saúde masculina. E as aspas são para frisar que a saúde masculina não é, absolutamente, e as estatísticas comprovam, pouca coisa.
Vivemos sob uma cultura de gênero que é opressiva até o íntimo pois exclui de lá toda capacidade reflexiva dos envolvidos – sejam homens, sejam mulheres(para permanecer no didático mas infundado binarismo). E uma data como o Dia do Homem, com todos os problemas inerentes, ainda é uma data que pode trazer a reflexividade à tona.
Talvez, por que não sonhar?, até mesmo a oportunidade para o homem reconhecer criticamente os privilégios que lhe são dados por ser homem.
O caminho até que isso aconteça pode ser longo, difícil, desanimador. As feministas estão nesse caminho há muito mais tempo e sabem do tormento diário que é assumir essa luta em todas as esferas da vida pessoal e profissional. Mas o tamanho da tarefa, e as feministas também nos têm mostrado, não deve servir de estímulo ao abandono, senão para maior dedicação.
Por isso, como homem, aprecio e defendo o Dia do Homem. Não para tomar cerveja, não para assistir futebol, nem nada próximo de honrar minhas bolas. Mas sim porque é, ou pode vir a ser, um dia de convite a reflexão sobre minha(e a nossa) condição masculina. Um dia para possíveis críticas ao que vinha sendo ensinado desde a infância. Um dia para tensionar primeiro meu corpo como objeto de cuidados(que não são ‘frescuras’), mas quem sabe amanhã um dia para tensionar outras asperezas de uma cultura masculinista – inclusive perceber que estas asperezas não giram só em torno de meu umbigo masculino, mas vão de encontro(em diferentes níveis de violência) às outras pessoas, masculinas ou não.