sábado, 26 de setembro de 2015

Por que sentimos vergonha?

Ah, a vergonha. Quem nunca, né?

Darwin, famoso pela teoria da evolução, foi também pioneiro no estudo da vergonha no comportamento humano e teria dito ser essa "a mais peculiar e humana de todas as emoções". 

Por certo não a das mais agradáveis, se olharmos pela definição do dicionário: "desonra que ultraja, humilha; opróbio".

A vergonha parece ir tão fundo que na psicologia pode ser vista como um regulador moral, enquanto que na biologia já localizaram o caminho orgânico que nos leva à vermelhidão, tremedeira, taquicardia e a outras desconcertantes sensações envergonhadas.

Mas o propósito deste texto é diferente. Deixando de lado moral e organicidades, a intenção é apresentar uma possível abordagem sociológica da vergonha.

Para tanto será adotada a perspectiva do interacionismo simbólico, em particular através da teoria e alguns conceitos de Erving Goffman

Afinal, por que sentimos vergonha?


O que é o interacionismo simbólico? 

O interacionismo simbólico é uma perspectiva sociológica que muito ajuda a entender a vergonha.

Nascida na década de 1930, ela tem como grande marca a análise das interações entre as pessoas. Isso pode parecer simplista e nada original, porém foi com o interacionismo simbólico que nossas interações diárias e corriqueiras se preencheram enormemente de sentido.

Ao invés de investir em grandes quadros explicativos com grandes conceitos totalizantes que pairam pesadamente sobre os indivíduos (quadros, aliás, sempre muito sedutores), os adeptos ao interacionismo simbólico ressaltam que a vida social acontece mesmo, de verdade, na interação entre as pessoas - daí por vezes ser chamado de microssociologia. É ali, no face a face, que os sentidos serão construídos. E não como repeteco burro de normas gerais, mas como resultado de um esforço interpretativo, ressignificativo e adaptativo a cada situação particular.

A sutileza do interacionismo simbólico está em permitir analisar, por exemplo, o modo como cordialmente ignoramos um estranho que cruza por nós na rua; mesmo algo tão banal é interativo e ocasião para símbolos serem trocados e ressignificados.

O que isso nos diz sobre a vergonha?

A vergonha nasce na nossa interação com outras pessoas. É na relação com o outro, em uma situação particular, que um sentido será construído, e esse sentido nos levará à vergonha. Pensando com o interacionismo simbólico, não sentimos portanto vergonha porque transgredimos algum tipo de regra ou lei (ou moral), mas porque na interação aconteceu uma coisa que levou a esse efeito de vergonhosa transgressão.

Bem, mas e como isso é possível? Se esses sentidos podem ser construídos, e podem conduzir ao sentimento de vergonha, como é que isso acontece?

Goffman e a metáfora dramatúrgica.

Pensando com Erving Goffman (1922-1982), seria tudo uma questão de definição de situação, representação, e fachada.

Esses três termos/conceitos são derivados da chamada metáfora dramatúrgica desenvolvida por Goffman. Mesmo que nunca tenha admitido, Goffman entrou para a história da sociologia como um famoso interacionista e a sua metáfora dramatúrgica como a exemplar teoria dessa perspectiva.

Partindo da pressuposição inicial de que o que importa é a interação entre as pessoas, essa metáfora nos toma como atores. Sim, somos atores, transitamos por palcos diversos, encaramos plateias diferentes, mas sempre tentando fazer nosso personagem parecer crível.

Ou, resumindo, nossa interação com outras pessoas se sustenta em personagens que dialogam tentando convencer um ao outro, mas de acordo com o que a situação exige.

Não precisamos ir muito longe para perceber onde é que a vergonha entrará aí, mas sigamos.

É nesse teatro constante de nossas vidas que surge a definição de situação. Quando estamos interagindo com outra pessoa tentamos buscar informações dela e da situação envolvida, algo como responder à pergunta "o que é que tá rolando aqui?". Conseguir essas informações, e por consequência entender o que é que tá rolando, é fundamental: a definição da situação faz com que a gente saiba o que esperar de uma outra pessoa e também o que é que a outra pessoa espera da gente, e assim podemos agir adequadamente.

Isso pode até parecer um processo passivo, tipo apenas interpretar alguns sinais e saber quais regras seguir. Mas não é assim. Ninguém espera passivamente que uma situação seja definida. Ao invés, o que nós todos fazemos é contribuir para essa definição de situação.

E é algo que se completa: assim como nós buscamos informações das outras pessoas para saber o que é que tá rolando, as outras pessoas, da parte delas, também buscarão informações da gente. E é aí é que você, como já diria Raul, está contribuindo com sua parte para nosso belo quadro social.

Mas essa contribuição é tão bem direcionada, que poderíamos falar de influência. Sim, somos manipuladores de situações. Nós fazemos com que as coisas vão para esse lado e não para o outro. Isso não é tão consciente ou perverso quanto é com os vilões da Globo, mas definição de situação envolve manipular informações com certos propósitos.

Dentro da loja, e diante de um vendedor desatento, você se portará de um certo modo tentando ser atendido (e o mesmo na situação contrária, caso você deteste um vendedor que fica no seu pé o tempo todo). Ou, em um velório, você agirá do modo circunspecto necessário para fazer todos acreditarem no seu respeito pela situação, mesmo que você pouco seja conhecido da família ou do falecido e esteja ali por pura obrigação.

E nisso entra outro conceito goffmaniano e de dentro da metáfora dramatúrgica, que é a representação. Tudo o que fazemos na presença de outras pessoas com vistas a influenciar uma situação, é nossa representação. Ou, simplesmente, nosso personagem em atuação. E para fazer essa representação nós mobilizamos, mais ou menos conscientemente, nossos gestos, as palavras, um jeito particular de falar, também uma atitude, e todos os recursos expressivos possíveis - a essa mobilização Goffman chama de fachada.

O centro da questão está desenhada: na vida social, tentamos ser bons atores, tentamos mobilizar de forma convincente e eficiente nossos recursos expressivos e assim conferir confiança ao personagem que representamos. Não porque queremos ganhar o Oscar, mas porque, dentro de uma interação, aquele personagem tem que ser representado para atender como a um roteiro recém-criado - e responder à pergunta "o que é que tá rolando aqui" é esboçar esse roteiro.

Acho essa metáfora dramatúrgica realmente legal. Sem muita forçação de barra ela se aplica nas mais diversas e diferentes situações e contextos. E seria até divertida não fosse um sutil mas gigantesco problema, e que nos atira diretamente à vergonha.

O problema - ou sobre atores que falham. 

Assim como atores na vida real podem ser péssimos atores, nós, dentro da metáfora teatral, também podemos ser péssimos atores. Não o tempo todo, mas dentro de certas encenações.

O problema que Goffman identifica é: nós não temos total e absoluto controle sobre as informações que passamos aos outros.

Ora, considerando que essas informações servirão de base para a definição de situação, e que dessa definição vamos tirar a noção de como agir e o que esperar, então uma informação sem controle tem um potencial enorme de causas problemas.

Pode ser uma palavra fora de hora, um gesto involuntário, talvez um bocejo. O sotaque, o maneirismo regional, a infeliz escolha das roupas. Ou então uma troca de nomes, o esquecimento de uma informação, o falar com fulano achando que era beltrano, um analfabetismo diante de um signo cultural particular (como não entender uma gíria ou não atender um costume).

É, não é fácil nem relaxante. Nossos personagens são frágeis. Basta um lapso e o personagem cai por terra. Não conseguimos mais segurá-lo e a representação que pretendíamos se mostra uma farsa. A definição de situação que tentávamos influenciar através da manipulação de informações fracassa.

O que acontece a seguir? Sim, sentimos vergonha. É absolutamente vergonhoso ser pego em uma farsa.

É a bobagem que o professor diz diante da classe; é o amigo que revela ao outro um segredo que deveria ser mantido; é o atendente novato que deixa transparecer ao cliente apressado que toda a demora do atendimento é porque ele, o atendente, não sabe o que fazer; o convidado que começa a comer antes que os anfitriões, religiosos, façam a prece de agradecimento pela comida. Ou, voltando ao velório, é a pessoa que vacila e dá a entender que tá ali só por uma obrigação impessoal. 

A vergonha é sempre presente. Está latente em toda interação na medida em que toda interação comporta personagens representados por atores suscetíveis ao erro - seja por acidente, imperícia, ou por maldade de terceiros (essas pessoinhas agradáveis que adoram ver os outros envergonhados). Estamos sempre construindo aparências e correndo o risco de não completá-las.

Mas por que sentimos tanta vergonha nesse revelar de uma falha?

Por que quando nosso personagem é contrariado nos incomodamos tanto?

Além da vermelhidão. 

Como já dito, para o interacionismo simbólico, o que importa é a interação. Ali é que a vida social acontece e toma forma. E isso, inclusive, para dentro dos envolvidos.

Basicamente, em uma interação nossa identidade também está em jogo. Ou, como é dito dentro dessa perspectiva sociológica, trata-se do nosso self.

Para Goffman, mais do que representar personagens, duas ou mais pessoas em interação estão, na verdade, fazendo reivindicações sobre si próprios. A definição de situação que você constrói, as informações que manipula, a representação que encena: é seu eu querendo ser acreditado.

Aqui outra vez a sutileza analítica do interacionismo simbólico chama a atenção.

Nosso senso de auto-identificação não está pronto e acabado em algum lugar filosófico ou metafísico, e nem tem ele um desenvolvimento lógico previsível do tipo nascer aqui, se desenvolver ali e se consolidar lá na frente. Sua origem está na interação com outras pessoas.

E por isso torna-se fundamental conseguir manter esse conceito de nós mesmos diante de outra pessoa, que então acredita nele.

Se você é um aluno diante do professor, e tenta se mostrar como dedicado e comprometido, talvez toda essa dinâmica não pareça muito dramática ou significativa (apesar de ainda estar acontecendo e você se incomodar de ser tido por relapso e relaxado). Mas se você é uma pessoal considerada anormal (todas as aspas possíveis!) que é posta diante das pessoas consideradas normais (mais aspas possíveis!), conseguir ser acreditado na sua normalidade pode ser muito dramático e significativo.

Com maior ou menor expectativa, com maiores ou menores consequências, você não tenta simplesmente enganar o outro através de um personagem, você realmente tenta ser esse personagem. E ser nisso contrariado é ser contrariado onde mais incomoda: em sua noção de auto-identificação.

E assim, de repente, a vergonha torna-se menos misteriosa. E toda a vermelhidão, a tremedeira, o suadouro, as palavras que não se encaixam nem por milagre, tudo isso torna-se mais razoável.

Sentimos vergonha porque do imenso quebra-cabeça que constitui o nosso self uma das pecinhas foi subtraída. E é perturbador o quebra-cabeça sem uma peça. 

Você, ator, foi indicado ao Prêmio Framboesa de Ouro na categoria Pior Ator. Currículo manchado, fama perdida, capacidade em dúvida. Sinônimos todos para um self desacreditado.
- - - 

Este texto foi escrito baseado na obra de Goffman, A representação do eu na vida cotidiana. Para saber mais sobre o interacionismo simbólico, sobre Goffman, e sobre essa possível explicação da vergonha, recomendo também a leitura dos seguintes artigos: 

- Goffman e as relações de poder na vida cotidiana.