Eu conversava com minha amiga quando a prosa chegou até a uma tia morta dela. Pior, morte recente. Sensibilizado, eu quis dizer algo. Matutei, filosofei, procurei, pensei, mas cheguei apenas no clássico 'meus pêsames'. Contudo, por mais sincero que eu fosse – e os pêsames iam mesmo saindo sinceros -, o fato é que ia soar um treco cretino pra burro.
Então percebi que uma das coisas mais tensas na experiência social é falar dos mortos, sejam teus ou de alguém.
Coincidência ou não, recentemente li A solidão dos moribundos, do Norbert Elias. E aí, num estalo atrasado – pois só veio a acontecer depois da dita conversa -, entendi: a sociologia explica.
No livro o autor insiste em demarcar um contraste de época no que toca a maneira como lida-se com a morte. A sempre bem vinda contextualização sociológica. E pensando na Idade Média, a morte era uma coisa muito mais comum e cotidiana.
Desde execuções em praça pública até ao sortido modo como ela, a morte, poderia te vitimar precocemente, as pessoas eram próximas da morte. Já hoje, a morte distanciou-se em vários sentidos. Vivemos mais, aos 70 e além, então para que pensar na morte? Aliás, a morte vem de maneiras bem mais previsíveis e controláveis do que alguém partindo tua cabeça dentro de uma taberna escura fedendo a cerveja e ratos. Temos mais segurança, por mais relativa que ela nos pareça hoje. A morte escapou de nossas preocupações diárias.
Outros pontos de diferença são importantes e nos fazem lidar com a morte de modo inédito. Mas talvez o mais interessante seja o do individualismo. Hoje individualizar-se é norma. Buscar espaço, autonomia, aquilo que se chama identidade própria.
Nisso até antigos rituais e maneiras tradicionais de lidar com a morte perderam crédito; o coletivo perdeu credibilidade. Assim como eu senti na pele, hoje pronunciar qualquer fórmula antiga – sinto muito, meus pêsames – soa artificial, insuficiente.
E o problema maior, lembra Elias, é que a individualização característica de nossa sociedade cria certo engodo. Um triste engodo quando pensamos no relacionamento com a morte.
Pois enquanto nos individualizamos – a minha vida, o meu sentido de ser no mundo, a minha existência – negamos o fato mais óbvio e não romântico: só vivemos através dos outros, nos relacionamentos com eles quando estamos vivos, e nas memórias deles quando partimos. Isolar-se não é achar conforto diante da morte, e sim muito possivelmente piorá-la: a solidão final.
Mas e por que é tão difícil falar dos mortos? E daí que a morte virou coisa distante? E daí que o individualismo nos coloca solitários ante nosso encontro com a terra?
Tudo isso parece ganhar resposta conclusiva no argumento insistente do Elias, de que em nosso estágio civilizatório a morte, assim como outros detalhes de nossa vida, foi taxada como natural demais, algo animalesco, mesmo asqueroso, e que deve permanecer nos porões frios da vida social. Recalcamos a morte.

Céus, como falar dela então? Não dá, a coisa toda trava.O maior barato de A solidão dos moribundos, para além da conversão sociológica realizada pelo autor – essa de puxar algo natural/divino para a esfera do cultural/humano - está na mensagem provocadora de que todo nosso auê em torno da morte diz respeito não aos mortos, e sim ao vivos, somente aos vivos. Ninguém – tá, quase ninguém – ouviu algum morto reclamando de algo.
Infelizmente esse estalo todo veio tarde, já longe de minha amiga, e algum tempo depois da menção ao falecimento da sua tia. Se bem que não sei de quê adiantaria dizer qualquer coisa daqui a alguém que sente a falta de um ente querido. Imagine só!
É que a Sociologia explica muita coisa, mas confortar...