segunda-feira, 20 de junho de 2011

Você já teve um cão amarelo?

Uma das ranzinzices que permito a minha ignorância literária é a de rejeitar os best-sellers. Pelo menos os best-sellers de agora, do presente, como aqueles que saem nas atuais listas semanais dos mais lidos e vendidos
 
Mas já fiz algumas tentativas em direção contrária. Na época do boom tolkieniano motivado pela trilogia cinematográfica, tentei Senhor dos Anéis. Não deu. Aliás, antes ainda, quando era novidade, tentei Harry Potter. Não deu também. O Código Da Vinci parei nos primeiros capítulos. A Cabana nem sei porque diabos tive a ideia insana de tentar. 
 
Aí que até hoje só consegui terminar dois best-sellers. Um foi 1808, e que o vestibular me motivou a ler – jeitinho mais agradável de aprender a história do Brasil, dizem. E o segundo terminei esse final de semana, Marley & Eu (e detalhe que ambos lidos quando já não mais presentes na lista dos mais vendidos e lidos). 
 
Só fui atrás do segundo livro por causa do filme homônimo que, confesso, me ganhou. Chorei e tudo. Poxa, eu tive um cachorro amarelo. Sendo mais preciso, dois cães amarelos: um era vira-latas, outro um boxer. E os dois alternaram-se: o primeiro acompanhou minha infância até a pré-adolescência, e o segundo da adolescência até o momento em que saí de casa em busca dum diploma. Revezamento canino, perceba. O boxer até foi sacrificado, final clássico, batido e sempre traumático para os donos. Ele já estava cansado e debilitado por causa dum câncer na boca, típico da raça, e só restou aquela alternativa.
Por isso, não à toa, gostei do filme. Mas o livro...

Fui do início ao fim ameaçando largar. A escrita é bacana, estilo preciso e simples. História linear, de fácil digestão. A gente dá umas risadas descontraídas com as peripécias do Marley, e até admito que se fosse ter um cachorro hoje eu cogitaria ter um labrador. Mas a leitura foi forçada. 
Gosto de animais. Gosto de cães. Mas não esqueço nunca do que são: cães. E na minha cabeça existe um limite claro para a bajulação, para a personificação. Um limite também para a carência afetiva que este animal pode vir a suprir em uma vida humana. E o livro definitivamente extrapola ambos os limites – no filme, porém, é mais mascarado. Daí que não gostei. E tinha, claro, minha ranzinzice a priori contra best-sellers. 
 
Mas acabei levando o livro até o fim. E fiquei culpado com essa coisa de ter um cachorro amarelo. É tão filme norte-americano! Tão american way of life, tão aburguesado que até me envergonho de admitir que já tive dois cães parecidos. Vergonha maior ter usado de Marley & Eu como momento emocional catártico relativo ao Bidu – vira-latas mal-humorado mas fidelíssimo – e ao Max – boxer bobão, babão e infinitamente companheiro -, meus dois cães amarelos.

Ops, melhor parar. Estou por pouco. Mais alguns adjetivos e eu extrapolo também aqueles limites. Antes o fim abrupto do texto do que o fim de minha coerência!

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Sobre a virtude

Onze horas da noite. A rua vazia e fria. Calçadas úmidas, árvores pingando desoladamente ao vento, resquícios da chuva de pouco tempo atrás. E eu ali testemunhando a derrota evidente da parca iluminação-pública-alaranjada frente à escuridão da noite avançada e sem estrelas.

Na rua eu ia divagando. Com meu guarda-chuva marcava o ritmo dos meus passos. É um tique nervoso que eu tenho tão logo um guarda-chuvas me caia em mãos (sorte que até hoje só caíram guarda-chuvas grandes o suficiente para ir batendo no chão com sua ponta metálica).

Eu ia pensando na vida de meu umbigo como imagino que façam todas aquelas pessoas que, como eu, voltam para a casa a pé. Ia pensando e batendo o guarda-chuva no chão. Um, dois, tec. Um, dois, tec. Um, dois, tec. E assim neurose afora.

Até que dou pela existência de uma garota poucos metros a minha frente. Na rua escura e encharcada éramos os únicos. Às vezes um carro, mas raros. No mais, só eu e ela.

E noto que ela está perturbada com algo. Olha insistentemente para trás. Mas, oras, sou eu que sou esse atrás.

Ela olha e se encolhe. Olha e puxa a bolsa para perto de si. Olha e aperta o passo. Olha e vasculha ao redor como quem diz não tem ninguém mais por aqui?. Não, não tem. Apenas nós.

Então imagino o quão assustador deve ser para uma garota sozinha na rua, naquela rua naquelas condições, estar sendo 'seguida' por um cara envolto pelas sombras e que vem, imperturbável, com aquele irritante tec-tec do guarda-chuva.

Fico sensibilizado, paro com a bateção. Até diminuo a pressa de meus passos na tentativa de deixar claro que eu não intentava nada contra a garota. Ia inclusive trocar de calçada – sim, já estavamos perto o suficiente para dividir uma calçada – quando a garota dobrou, ainda apressada e pendurada em sua bolsa, a esquina próxima.

Não sou cristão mas senti-me enquanto tal. Regozijei-me em minha virtude que não pede público para dar as caras...

Quase sete horas da noite de outra noite. Noite fria de céu limpo e estrelado. Horizonte ainda pintado de cores inimitáveis.

O auê na rua está armado. Carros e ônibus e bicicletas na disputa por espaço nas vias. Nas calçadas os pedestres deixam de ser categoria genérica para dividirem-se em partículas urbanas cada uma mais atarefada do que a outra. Chegar, chegar, chegar, todos bufam em sua pressa, seja para casa, trabalho, faculdade ou sabe-se lá o que.

Eu também. Chegar, chegar, chegar. Aula de Português, aula de revisão para a prova de amanhã. Chegar, chegar, chegar.

Mesmo com pressa meus olhos ainda notam, ao longe, lá na próxima esquina, algo no chão. Nessa hora o clichê pesou: parecia lixo, mas era um homem. Já de longe via-se, apesar da possível confusão.

Homem deitado. Imóvel na calçada. E fazia frio, frio de doer as mãos e de deixar o nariz vermelho. E o homem esparramado no chão. E todo mundo passando por ele. E eu passando por ele. E ninguém parando pra ele.

Eu podia justificar com um argumento a minha decisão. Racionalizar a razão da minha não parada. Podia dizer que ele não parecia estar passando mal. Mas, bem, ele parecia estar sentindo-se bem? O que parecia era o que ele era: um homem estendido na calçada. E fazendo um frio ferrado.

E as pessoas passando sem querer notar. Desviando do corpo dele e dos olhares dos outros que também o ignoram: não sei por quê vocês estão me encarando, o quê vocês esperam que eu faça? Encaram e projetam sua própria culpa. Quem ignora espera que o outro, qualquer outro, des-ignore o homem-deitado ignorado, reestabelencedo assim a paz dentro da consciência coletiva.

O que não acontece, claro. Chegar, chegar, chegar. 

E nem me surpreendi, nem comigo nem com os outros – e isso deveria assustar, mas já não assusta, senão seria hipocrisia. Já não é a primeira vez. Estou(amos) sempre funcionando no chegar, chegar, chegar. Cristão ou não, chegar, chegar, chegar.

E nem sempre a rua é escura, e estão lá só você e seu caminho para a virtuosidade... A virtude, às vezes, é indolente.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Me devolve!

(Aproveitando o Dia dos Namorados, um conto antigo meio que reciclado) 
.
.
.

   Junior tentava convencer Carol, mas estava difícil. Irredutível como nunca, ela só fazia dizer não.



- Poxa, Carol! Me devolva, né? Por favor...
- Não.
- Mas ele é meu! Sempre foi!
- Não, já disse que não, e nem adianta insistir.

   O fato: ele era mesmo de Junior. Observação: foi dele só até aquela noite em que conheceu Carol e o mundo explodiu em estrelas coloridas e adocicadas; desde então passou a ser dela e somente dela. E mesmo com o fim do namoro já há três meses.

-Tá me fazendo uma falta danada e sabe-se lá o que vai ser de mim se eu não tiver ele de volta.
- Quase fico com dó.
- E... e... sabe quanta gente morre, todo ano, por coisas assim? Hein? Você sabe? Isso mata, Carol, mata!
- Problema de quem? Meu é que não é – disse Carol cruzando os braços, empinando o nariz, virando para o outro lado.
- Caramba, que foi que eu te fiz? Te dei ele com tanto carinho e agora...
- Carinho o escambau! – interrompe incisivamente Carol. Aliás, com quantas antes de mim você foi ter essa conversa? Para quantas você pediu antes de vir pedir a mim?

   A resposta que Junior daria, supondo ser verdadeira, obviamente não agradaria Carol, que ocupava uma incômoda quinta posição. Mas a culpa não era dele. Que culpa tinha se era homem e homem nunca acerta essas coisas de primeira? E, afinal, antes quinta do que sexta, sétima...

- Veja bem, Carol, isso não é importante. O que importa é...
- Importa sim! – interrompe de novo. Ô se importa! Vamos, pra quantas!?
- Apenas o número necessário para perceber que só você é que poderia me dar o que eu quero, como tudo o mais em nosso namoro, uma história tão linda enquanto durou - arriscou o rapaz.
- Ih! Pode parar com essa ladainha que ela não cola mais. Já foi o tempo. Vamos lá, responda. Quantas? Aposto, ah, se eu aposto! que procurou a Ritinha bem antes de mim, não foi?

   Outra pergunta que, respondida com sinceridade, não agradaria Carol – e o dedo em riste, colado no nariz de seu ex-namorado, dizia isso com toda a veemência.
   Ritinha era a vizinha de Junior e apareceu em sua vida um tantinho de nada antes de Carol. E de visita em visita, fosse por lâmpadas a serem trocadas ou xícaras de açúcar emprestadas, Junior acabou tendo um affair com Ritinha. E jurava ter acabado tudo depois de ter conhecido Carol. O que não impediu Junior, um solícito e prestativo vizinho, de ainda trocar lâmpadas e ceder tantas outras xícaras de açúcar – na certa Ritinha estava trocando todas as lâmpadas de sua fábrica de doces, era o que sugeriam as ácidas amigas de Carol.
   E infelizmente, numa dessas escolhas irremediavelmente equivocadas, Junior tinha mesmo procurado Ritinha antes de procurar Carol.

- Responde, Junior! Procurou ela primeiro?
- Olha, ela é minha vizinha, então achei que pela proximidade eu poderia...
- Idiota! Procurou aquela oferecida antes de mim. De mim!
- Calma, Carol. Foi um erro, tá? O que ela tinha não me interessa. Não é aquilo que é meu e que só você tem.
- Interessante. E o que teu que ela tinha então, senhor Junior?

   Imediatamente Junior arrependeu-se da brecha que dera. Assumir que a outra tinha mesmo algo dele? Coisa de juvenil, censurou-se. E agora vinham as consequências. O senhor empregado antes do nome só podia significar um elevado grau de sarcasmo , com cobertura de ironia, algo que Junior aprendeu a temer havia tempo. Além do que, era a terceira pergunta que se respondida com sinceridade provavelmente não agradaria Carol – pobre rapaz! Mesmo assim a sorte foi tentada.

- Bem, primeiro acho melhor a gente deixar claro que sou homem. Portanto, às vezes, só às vezes, não consigo me controlar muito bem. Mas não é por maldade! É só por um tipo de fraqueza, entende? Algo que não corresponde ao que eu realmente sinto.
- Não, não entendo – diz Carol secamente. O que é que ela tinha de você?
- Meus olhos, mas só um pouquinho.
- Cretino! Cachorro! Eu sempre soube que você ficava de olho nela. E mesmo estando comigo! Seu safado!

   Aquela homérica empreitada já estava cansando Junior. Revivendo um orgulho que aos poucos descabava para a extinção, só restou então elevar o tom de voz e fazer valer de seu apelido 'Junão' cunhado pela rapaziada do futebol.

- Quer saber, Carol? Isso não vem ao caso e tô de saco cheio! O que importa é que você tem meu coração e eu preciso dele de volta.
- Ué, e por quê? Vai dar ele para a Ritinha? - cinismo já em nível tóxico.
- Claro que não!
- Então deixa ele aqui comigo. Vai estar bem guardado. Melhor aqui do que com uma sirigaita qualquer.

   Realmente, admitiu Junior em silêncio. Melhor com Carol do que com essas outras que arranjava por aí. Mas estava sentido falta do seu coração, e como sentia. Já eram três meses sem ele e podia mesmo ser seguro deixá-lo com sua ex-namorada, claro. Entretanto, parecia tão mais promissora a possibilidade de lançá-lo a uma ou outra garota! Existe chance de acertar, e sempre goza-se da excitação em apostar sem ver as cartas em quais se aposta. Junior lera em algum lugar que amor é como um jogo que no fim ninguém ganha e tomou isso como sua filosofia. Ora bolas, a graça toda está em jogar. E como jogaria sem um coração? Impossível!

- Sejamos racionais. Namoramos e foi legal, muito mesmo. Só que não deu certo. Você mesma me disse isso um dia! Lembra? Então, me devolve o que é meu.
- Não. Namorar contigo não dava certo, mas isso não quer dizer que eu não goste de ficar com o seu coração.
- Mas você já tem vários aí contigo! Pensa que eu não sei? O do Marcelo, do Cássio, até do Heitor, isso sem falar daqueles que eu nem conheço o dono. Então por que diabos você quer o meu?
- A gente nunca sabe o dia de amanhã, meu bem.
- Ah! Bem sei o uso que você faz dele e de todos os outros. É só para esnobar suas amigas com uma coleção de corações maior que a coleção delas, né!?

   Aos sábados era tradicional o encontro de Carol com suas amigas. Todas traziam enormes sacos contendo os vários corações que extirparam de pobres coitados vida afora. Davam algumas risadas contando como conseguiram cada um deles e faziam julgamento que envolvia notas e adjetivos. Ora elegiam qual foi o mais fácil, o mais divertido, o maior desafio, etc. Coisas de mulher.

- Olha, Junior, quer saber? Também cansei. Pega isso de volta. Seu coração nunca foi muito bem cotado mesmo. Todo mundo sabe que é fácil-fácil conseguir ele, basta uma Ritinha da vida ou coisa do tipo.
- Verdade. Para você ter conseguido, só sendo fácil mesmo.
- Como é que é!?
- Nada, Carol, só uma brincadeira pelos velhos tempos! – a risada forçada quase convenceu. Vamos, me dá meu coração.
- Hunf. Toma esse treco aí. Mas já vou avisando, se eu pegar outra vez não devolvo mais.

   Todo orgulhoso, Junior olhou para seu coração em mãos e foi para casa.

   Finalmente era seu novamente. Colocou-o no peito e sentiu o deleite das batidas, uma por uma, até se acostumar com aquilo e matar a saudade. Mas, que diabos! Sentiu que algo não estava igual, não ia bem. Alguma coisa mudara e não sabia o que era.

   Com atenção e concentração, em um esforço que levou dias, percebeu que seu coração agora tinha uma grande marca, a cicatriz de uma incisão. E estranhamente Junior sentia que atrás dessa incisão havia um grande vazio, um irreparável oco, um buraco sem nada. Um espaço frio, desolado, que mesmo assim exercia uma grande pressão. Era o centro de uma força se alastrando, apertando, sufocando, oprimindo todo o peito de Junior.

   Atordoado ante aquela sensação, pensou que talvez fosse só questão de não estar adaptado. Tanto tempo sem ter o peito preenchido dá nessas coisas, não é? Contudo, passaram os dias e o vazio, sempre oco, continuava ali, incomodando, doendo, sempre em expansão.

   Revoltado, com uma injúria tremenda, foi atrás de Carol. Queria uma reparação. Feito senhorio lesado, exigia a casa devolvida em perfeitas condições, exatamente como fora acertado no contrato de locação, com tudo dentro, com todas as paredes em pé. O coração não podia voltar assim, defeituoso, sendo que era são e perfeito quando foi para as mãos de Carol. Os olhos iam injetados, bufava sua indignação. Saiu em disparada, em plena noite de segunda-feira, até a casa de sua ex-namorada.

    Mas e como são as coisas! Quando Junior a encontrou... nada fez. Ficou entre murchar e derreter. As palavras de raiva embolaram todas na língua e voltaram para dentro. Estavam completamente perdidas. Nem deu-se conta de que ficou vermelho e gaguejou, tudo feito colegial que há tempos deixara de ser. Se não estivesse tão concentrado naquela voz, a tão conhecida e ritmada voz de Carol, perguntando o que é que ele queria, se não estivesse imerso nela, Junior teria escutado que o mundo explodia, aqui e ali, em estrelas coloridas e adocicadas.

   Mas ele não tinha mais controle sobre si. Seu coração acelerou e a cada batida – mais e mais rápido - aquele desconforto do vazio, do oco, do frio doído, tudo isso cedia e abrandava. Sim, aos poucos tudo era um calor reconfortante, e tudo o mais desfazia-se frente a Carol - ainda inquisitiva e perguntando o que é que ele queria àquela hora. Junior só conseguiu suspirar num meio sorriso pleno de alívio. Seu coração voltara à normalidade.