quinta-feira, 16 de junho de 2011

Sobre a virtude

Onze horas da noite. A rua vazia e fria. Calçadas úmidas, árvores pingando desoladamente ao vento, resquícios da chuva de pouco tempo atrás. E eu ali testemunhando a derrota evidente da parca iluminação-pública-alaranjada frente à escuridão da noite avançada e sem estrelas.

Na rua eu ia divagando. Com meu guarda-chuva marcava o ritmo dos meus passos. É um tique nervoso que eu tenho tão logo um guarda-chuvas me caia em mãos (sorte que até hoje só caíram guarda-chuvas grandes o suficiente para ir batendo no chão com sua ponta metálica).

Eu ia pensando na vida de meu umbigo como imagino que façam todas aquelas pessoas que, como eu, voltam para a casa a pé. Ia pensando e batendo o guarda-chuva no chão. Um, dois, tec. Um, dois, tec. Um, dois, tec. E assim neurose afora.

Até que dou pela existência de uma garota poucos metros a minha frente. Na rua escura e encharcada éramos os únicos. Às vezes um carro, mas raros. No mais, só eu e ela.

E noto que ela está perturbada com algo. Olha insistentemente para trás. Mas, oras, sou eu que sou esse atrás.

Ela olha e se encolhe. Olha e puxa a bolsa para perto de si. Olha e aperta o passo. Olha e vasculha ao redor como quem diz não tem ninguém mais por aqui?. Não, não tem. Apenas nós.

Então imagino o quão assustador deve ser para uma garota sozinha na rua, naquela rua naquelas condições, estar sendo 'seguida' por um cara envolto pelas sombras e que vem, imperturbável, com aquele irritante tec-tec do guarda-chuva.

Fico sensibilizado, paro com a bateção. Até diminuo a pressa de meus passos na tentativa de deixar claro que eu não intentava nada contra a garota. Ia inclusive trocar de calçada – sim, já estavamos perto o suficiente para dividir uma calçada – quando a garota dobrou, ainda apressada e pendurada em sua bolsa, a esquina próxima.

Não sou cristão mas senti-me enquanto tal. Regozijei-me em minha virtude que não pede público para dar as caras...

Quase sete horas da noite de outra noite. Noite fria de céu limpo e estrelado. Horizonte ainda pintado de cores inimitáveis.

O auê na rua está armado. Carros e ônibus e bicicletas na disputa por espaço nas vias. Nas calçadas os pedestres deixam de ser categoria genérica para dividirem-se em partículas urbanas cada uma mais atarefada do que a outra. Chegar, chegar, chegar, todos bufam em sua pressa, seja para casa, trabalho, faculdade ou sabe-se lá o que.

Eu também. Chegar, chegar, chegar. Aula de Português, aula de revisão para a prova de amanhã. Chegar, chegar, chegar.

Mesmo com pressa meus olhos ainda notam, ao longe, lá na próxima esquina, algo no chão. Nessa hora o clichê pesou: parecia lixo, mas era um homem. Já de longe via-se, apesar da possível confusão.

Homem deitado. Imóvel na calçada. E fazia frio, frio de doer as mãos e de deixar o nariz vermelho. E o homem esparramado no chão. E todo mundo passando por ele. E eu passando por ele. E ninguém parando pra ele.

Eu podia justificar com um argumento a minha decisão. Racionalizar a razão da minha não parada. Podia dizer que ele não parecia estar passando mal. Mas, bem, ele parecia estar sentindo-se bem? O que parecia era o que ele era: um homem estendido na calçada. E fazendo um frio ferrado.

E as pessoas passando sem querer notar. Desviando do corpo dele e dos olhares dos outros que também o ignoram: não sei por quê vocês estão me encarando, o quê vocês esperam que eu faça? Encaram e projetam sua própria culpa. Quem ignora espera que o outro, qualquer outro, des-ignore o homem-deitado ignorado, reestabelencedo assim a paz dentro da consciência coletiva.

O que não acontece, claro. Chegar, chegar, chegar. 

E nem me surpreendi, nem comigo nem com os outros – e isso deveria assustar, mas já não assusta, senão seria hipocrisia. Já não é a primeira vez. Estou(amos) sempre funcionando no chegar, chegar, chegar. Cristão ou não, chegar, chegar, chegar.

E nem sempre a rua é escura, e estão lá só você e seu caminho para a virtuosidade... A virtude, às vezes, é indolente.

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