segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Quando a masculinidade faz rir

  Os dois sujeitos se atracam. Estão treinando MMA. Os movimentos são brutos, o diálogo também, porra. Aquele que parece ser o professor é também o mais agressivo, e segue subjugando seu presumível aluno. E tudo segue como imagina-se que deve seguir uma aula de MMA... até que o professor sugere, muito sexualmente, que poderia morder o pescoço do seu aluno. E é desta cena, e do posterior embaraço do aluno, que o humor da esquete surgirá.




Mas, afinal, de onde vem esse humor? Por que conseguimos rir desta cena? Ou, ainda mais importante, por que é que os roteiristas julgaram que esta cena seria engraçada para a maioria das pessoas?

Ora, o riso não é instintivo, menos ainda sua causa. Então, de onde vem a graça de um aluno de MMA que é surpreendido pelo interesse sexual do seu professor, justo no meio da aula?

Dentre as várias causas possíveis, consigo delinear ao menos duas. Uma derivada da própria dinâmica do humor, e outra derivada (aí sim fazendo valer a intenção deste texto) de como nossas masculinidades heterossexuais funcionam.

A primeira causa, que vem dos recursos que causam o riso, é simplesmente a quebra de expectativas. Algumas coisas não deveriam aparecer, mas então aparecem; algumas coisas não deveriam estar lá, mas estão; e algumas coisas não deveriam ser, mas de repente são... Expectativas foram criadas, então quebradas, e essa ruptura gera o riso. É uma fórmula simples, na verdade, mas versátil e eficiente para fazer rir.

A segunda causa, vinda de como vemos (e vivemos) a heterossexualidade masculina, é sutilmente o medo que os homens tem de outros homens. Não um medo geral, mas um medo particular: o medo de que a interação com outro cara dê espaço para qualquer sinal de homossexualidade.

O que estou sugerindo é que dois homens heterossexuais em interação vão estar tão mais desconfortáveis quanto menos certeza tiverem da heterossexualidade um do outro.

A proximidade entre dois caras, o contato físico, ou partilha seja lá do que for; tudo pode ser muito tenso a menos que se tenha certeza de que a homossexualidade não contaminará aquela relação. É o que a heterossexualidade masculina quase sempre exige, e que muitos homens não conseguem relativizar: o medo constante de qualquer homossexualidade potencial.

(Aliás, a própria força com que nossa cultura ainda nos impele à heterossexualidade faz com que toda e qualquer demonstração de homossexualidade já seja, nos termos daquela primeira causa, uma ruptura passível de uso cômico) 

Juntando as duas causas temos então a cena de humor. Um contexto hiper-masculinizado - academia, esportes de contato, MMA - com dois sujeitos expressando virilidade - a fala dura, o rosto porejando suor -, mas que, de repente, dão espaço para falas sexuais sobre morder seu pescoçoou ainda lamber seu saco. E o que prometia ser hétero vira, subitamente, homossexual. O aluno, pego de surpresa, então fica em posição desconfortável, à merce de mordidas, lambidas, mas acima de tudo, à mercê daquele medo heterossexual - o que para nós, espectadores, gera comicidade. É ruptura, é medo, é riso.

Agarração? Pode, mas só se na base da porrada. 
Contudo, o humor tem um aspecto muito interessante, que é sua capacidade de provocar o alívio. É o famoso riso nervoso. Aquela piada feita sobre o que incomoda. A tentativa de tornar o desagradável mais palatável através de uma tirada que se pretende cômica.

Mais ou menos como a pessoa que, sabendo que falarão do seu nariz grande, logo se apressa a fazer comentários engraçados sobre ele.

O humor, portanto, tem essa capacidade de aliviar um incômodo ao mesmo tempo que o expressa.

E o que a esquete do Porta dos Fundos alivia e expressa? Novamente, o perene medo masculino de que o contato entre dois caras se transforme no contato entre dois amantes.

(em tempo: como alguns comentários ao vídeo bem expressam [lamentando a "viadagem" típica das esquetes do Porta dos Fundos], nem sempre o alívio é bem sucedido; contudo, a ausência do alívio só reforça quão intenso é o medo). 

Não se trata, obviamente, de sugerir qualquer homossexualidade latente que os homens heterossexuais reprimem, ou que estão no armário, e que daí vem o medo. 

O ponto, sugiro, é esse grande pano de fundo que faz a heterossexualidade masculina precisar sempre rejeitar qualquer sinal de homossexualidade, e por consequência, dois caras em interação - tanto pior se física - deixa uma grande tensão no ar sobre o risco de qualquer indício homossexual surgir. E quando a tensão explode, quando ela é escancarada, o recurso do riso é, dentre outras coisas, a vazão do desconforto. 

 O vídeo do Porta dos Fundos usa desta dinâmica, e nem sequer é pela primeira vez. Ela aparece também em diversos filmes e programas de comédia, sempre usando da potencial, inesperada e tensa homossexualidade como fator de riso. E vemos, afinal, bombardeados pela frequência com que a fórmula é utilizada, que até mesmo nosso riso mobiliza nossos aprendizados de gênero e sexualidade, esses aprendizados internalizados nos mais complexos e insistentes processos de socialização e subjetivação - e que fazem, inclusive, as mulheres partilharem desta dinâmica de humor e também serem elas a rirem dos inesperados morder seu pescoçoe lamber seu saco.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Ô gostosa!

Era um desses carros utilitários que empresas prestadoras de serviços usam. Sabe, daqueles que vão com escadas presas ao teto e com dois sujeitos uniformizados no interior. Foi esse o tipo de carro que, em pleno centro de Curitiba, diminuiu a velocidade só para fazer graça (eufemismo generoso) com uma garota. Eu, que pela casualidade da agitação das calçadas parei ao lado dela, testemunhei de camarote.

O sujeito no banco de passageiros projetou a cabeça para fora da janela, armou aquele sorriso mal-criado (mais um eufemismo), deu duas batidas na lataria do carro, e mandou: Ô gostosa! E quando o carro dobrou a esquina o sujeito continuava lá, pendurado na janela, sorrisão faceiro no rosto, olhando para a garota e dando a entender que era tudo muito divertido.

Como homem já vi variações dessa cena acontecer tantas vezes que só posso imaginar quão comum deve ser esse tipo de vivência para as mulheres. E só posso imaginar, também, o porque de tão condenável hábito - hoje estou para eufemismos. 


Tipo isso. 
Na verdade, explicações não faltam, mas vamos ficar com três argumentos - ou melhor, uma piada, um absurdo, e um argumento propriamente dito.

1) Os homens fazem isso porque estão tentando conseguir algum tipo de relacionamento com a mulher alvo de buzinadas e provocações.Bem, é um argumento pelo viés funcional, prático... e eis aí a piada. Ok. Vamos supor que alguém levantasse as estatísticas de quantas mulheres apreciam esse tipo de abordagem. E mais, vamos supor que as estatísticas mostrassem quantas mulheres, depois de um ô gostosa!, sinalizam euforicamente para que o carro pare e então troquem telefone ou façam sabe-se lá o quê com os homens buzinadores. Não, isso não é comum, e é praticamente impossível. E além do mais, duvido sinceramente que o homem que buzina e provoca espere, verdadeiramente, que isso aconteça. Se acontecesse aposto que nem ele saberia como agir pois, como direi até o final do texto, a questão é outra. 

2) Esse tipo de coisa acontece por culpa das mulheres e seus corpos e suas roupas mostrando seus corpos. A visão absurda que é perigosamente um ponto de vista comum... A cultura da culpabilização da mulher pelos abusos masculinos ainda vigora com tanta força que faz necessário mencionar esse argumento. É como se o cara buzinasse ou provocasse porque, com aqueles peitos, e com aquele decote, ela tá pedindo isso - e pior quando os homens acham que ela está pedindo ainda outras coisas mais que uma buzinada e provocação. Para além de toda a carga simbólica perversa embutida nessa ideia, fico apenas com o significado dela para os próprios homens: significa que nós somos animais, seres irracionais, que não controlamos nossos desejos, que temos uma vontade tão frágil que basta aqueles peitos, e aquele decote, para que o controle escape de nós e passemos a bater na lataria do carro e a gritar coisas com conteúdo sexual. Sou homem e não sou assim. E sei que você, meu amigo, também não é assim. Então porque diabos deixar subentendido que somos assim? 

3) Os homens precisam provar que são homens, e provocar (publicamente) uma mulher é provar (publicamente) quão homem é. Esse argumento é argumento mesmo, por mais cômico que possa parecer. Estudos com outros povos e outras culturas (que usualmente recebem a alcunha de "primitivos") mostram como que a masculinidade é comumente um estágio a ser alcançado. E não é fácil alcançá-la. Noutros povos e noutras culturas, para um menino ser visto como homem é preciso ser provado, passar por testes, cruzar um rito de passagem. Cá entre nós, com prédios a perder de vista, cânceres por poluição, e internet na palma da mão, as coisas não são tão diferentes e ser homem ainda é algo a ser provado - o tempo todo, de vários modos. 
Nem tão distantes assim.

Se assim não fosse, não existiria o complemento de homem para tantas coisas: roupa de homem, voz de homem, brincadeiras de homem, jeito de homem, corpo de homem, atitude de homem, etc. Se existe o de homem é porque existe a ameaça de não ser de homem, e portanto é preciso obter sempre o de homem. Assim, sem surpresas, temos cá entre nós nossas próprias provações, testes e ritos - que o diga a sempre presente cultura do levar um menino na "zona" para virar homem,  ou o ir na "zona" com amigos ou parentes mais velhos e que é, afinal, um programa de homem. 

O ponto é que ser homem e ter um patamar de masculinidade (a típica, a do macho, do homem com H maiúsculo), é, afinal, algo a ser mostrado e feito. Isto é, ser homem (ou um tipo de homem) é algo a ser praticado, escancarado, vivificado em cada pequeno ato e possivelmente pela vida toda. Uma memória infantil que tenho é de quando me diziam que homem só pode cruzar as pernas apoiando o tornozelo no joelho oposto, nunca as costas de um joelho sobre o outro, pois aí sim seria coisa de mulher...

É sempre um andarcomo homem, trabalhar como homem, pensar como homem... enfim, agir como homem.

E - pelos intrincados caminhos de nossa socialização masculina - buzinar, provocar, e gritar o gostosa!para uma mulher é uma das maneiras de se mostrar homem e alcançar uma certa masculinidade (que ainda se encontra em alta entre nós). 

Tanto é que, geralmente, essas provocações dos homens são de homens em grupo - uma dupla já basta, como é o caso aqui narrado. E, mais geralmente ainda, feita a provocação, os homens buscam entre si um riso cúmplice, uma atitude camarada, como se tivessem feito algo muito divertido juntos; buscam, talvez, aquela validação coletiva, sou homem, viu, viu? Conseguir algo da garota é, talvez, o de menos. 

Homens nesse tipo de situação dão continuidade à cultura de uma masculinidade que precisa ser provada (mesmo que às custas de algum tipo de violência contra as mulheres). É triste, e quase cômico, mas um dos modos de provar essa masculinidade é dando a entender (na frente de outros homens conhecidos e de quem mais estiver por perto) um interesse sexual por uma completa estranha vista na rua, entre buzinadas, urros, batidas na lataria, e o que mais a desrazoabilidade do momento permitir. 
                                                                           - - - -

Quando o carro virou a esquina e o sujeito finalmente voltou para dentro do carro, olhei para a garota ao meu lado. Compenetrada, quase distante, mexia no celular. E duas ideias me passaram pela cabeça, sem saber qual era a mais cruel: ou ela estava se esforçando para ignorar aquilo e uma simulação de indiferença silenciosa foi o recurso utilizado, ou ela simplesmente já estava acostumada com coisas assim. 

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Dia do Homem: é mesmo preciso?


Ontem foi o Dia do Homem e fiquei incomodado com os discursos polares que a data fez surgir. Do confuso discurso sobre um orgulho masculino, até um possivelmente insensato discurso sobre a inutilidade da data, vejo a insistente filosofia do 8 ou 80. Um pensamento extremista em tempos do progressivo fracasso do extremismo. 


O Dia do Homem, assim como qualquer outra data, apresenta suas fissuras, seja na proposta ou na prática vivida (ou talvez em ambos). 

Assim, desconcerta lembrar que uma das motivações originais da data foi uma contestável defesa dos direitos masculinos, assim como desconcertam os discursos(geralmente masculinos) surgidos nesta data que giram em torno de um genérico ‘aproveite suas bolas e sua testosterona pois hoje é o seu dia, cara!’.

Mas assim como qualquer outra data, há aqui potencial reflexivo e subversivo, e ficar acomodado nos opostos excludentes não oferece recursos para aproveitar esse potencial. 

Todo ano as mulheres ganham flores e mimos no dia 8 de março, como se fosse para isso que a data existisse. Não, não é para isso, e essa distorção não impede a luta pela conscientização acerca dos reais motivos. Na verdade, é mesmo uma motivação para continuar a luta de conscientização, indicando até os caminhos mais urgentes. 

Conscientização, essa palavrinha clichê mas que sabemos sempre ser útil. E por que o Dia do Homem(com suas distorções e tudo) não pode ser também o dia de luta por conscientização? 

O sentido mais comum da data é o do homem cuidar da sua saúde. E não é pouco sentido. 

Sabemos que uma das questões mais caras à masculinidade típica e patriarcal é o homem invencível, um homem imbatível e, logo, que não vai a médico – e deus o livre ‘levar dedada no cu’. Portanto, um dia que tem o potencial de dizer a esse homem que ele não só deve como pode cuidar da saúde, tornando mais digestível uma visão de si mais carnal e menos egóica, vai contra uma imagem masculina de séculos. E isso já é conscientização.

Pode parecer pouco. E certamente há homens cientes de sua saúde que ainda assim acreditam na mais ultrapassada concepção sobre as relações de gênero. Algo como se perder a obrigatoriedade de ser invencível não desobrigasse a mulher a sair da cozinha. 

Mas se um homem tem esse primeiro aceitamento é já um caminho reflexivo, talvez um ponta-pé inicial, para a desconstrução desse gigante muro chamado machismo. 

Ou seja, a data tem um potencial, e tê-la por inútil é cegar-se a esse potencial.

Posso estar vitimado pela Síndrome de Pollyanna, mas esta data me parece a oportunidade para, por exemplo, professor@s conscientes formarem alun@s conscientes. É aquele entrar na sala e provocar uma reflexão sobre por que diabos existe um Dia do Homem, daí partindo para uma saudável(espera-se, né) discussão sobre as relações de gênero e desconstrução de estereótipos. Algo próximo ao que professor@s já fazem no Dia da Mulher, ou no Dia da Consciência Negra. 

Por isso, quando leio sugestões da inutilidade da data, leio defesas sutis do status quo de nossa cultura de gênero.

Quem sabe, nos anos próximos, pode ser esta data um dia para levar a público debates e críticas mais consistentes contra as mazelas de nossas relações de gênero. Assim como o 8 de março não é por flores, o 15 de julho pode não ser “apenas” por saúde masculina. E as aspas são para frisar que a saúde masculina não é, absolutamente, e as estatísticas comprovam, pouca coisa. 

Vivemos sob uma cultura de gênero que é opressiva até o íntimo pois exclui de lá toda capacidade reflexiva dos envolvidos – sejam homens, sejam mulheres(para permanecer no didático mas infundado binarismo). E uma data como o Dia do Homem, com todos os problemas inerentes, ainda é uma data que pode trazer a reflexividade à tona. 

Talvez, por que não sonhar?, até mesmo a oportunidade para o homem reconhecer criticamente os privilégios que lhe são dados por ser homem.

O caminho até que isso aconteça pode ser longo, difícil, desanimador. As feministas estão nesse caminho há muito mais tempo e sabem do tormento diário que é assumir essa luta em todas as esferas da vida pessoal e profissional. Mas o tamanho da tarefa, e as feministas também nos têm mostrado, não deve servir de estímulo ao abandono, senão para maior dedicação. 

Por isso, como homem, aprecio e defendo o Dia do Homem. Não para tomar cerveja, não para assistir futebol, nem nada próximo de honrar minhas bolas. Mas sim porque é, ou pode vir a ser, um dia de convite a reflexão sobre minha(e a nossa) condição masculina. Um dia para possíveis críticas ao que vinha sendo ensinado desde a infância. Um dia para tensionar primeiro meu corpo como objeto de cuidados(que não são ‘frescuras’), mas quem sabe amanhã um dia para tensionar outras asperezas de uma cultura masculinista – inclusive perceber que estas asperezas não giram só em torno de meu umbigo masculino, mas vão de encontro(em diferentes níveis de violência) às outras pessoas, masculinas ou não.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Homem homem: espécie em extinção

Alguns comerciais são bem curiosos e se prestam a boas análises. Parecem habitar um lugar confuso, intermediário. De um lado parecem ser apenas uma caricatura escrachada de nossos tipos sociais; de outro, parecem revelar os mais profundos valores (e temores) de nossa sociedade.

O do Old Spice é um caso confesso - pelo menos na parte do caricatura escrachada, como dito na reportagem da Folha - e daí sua utilidade para pensarmos naquilo que ele toca: a masculinidade. Segue a transcrição, mas vale assistir.

Vocês são os sobreviventes de uma espécie em extinção: o homem homem. 

O homem que sabe como incendiar o encontro. 
O homem que sempre chega lá, não importa como. 

A missão de Old Spice é trazer de volta o orgulho de ser e cheirar como homem.

O futuro da homenidade está em suas mãos.

Chegou Old Spice, o desodorante do homem homem. O único com partículas de cabra-macho. Atenda o chamado, se for homem. (cabra macho)(sim, sim, macho).  

E é isso: o homem homem está em extinção. 

O comercial todo exala uma uma silenciosa referência e oposição aos outros homens que não os homem homem. Homens que o comercial parece reprovar ou, no mínimo, menosprezar. Que homens seriam esses?

Talvez homens metrossexuais, ditos sensíveis e vaidosos. Talvez homens homossexuais. Talvez os transsexuais. É grande o rol dos possíveis homens menosprezados, e a polêmica poderia se estender.
Mas o sujeito derrubando cocos com voadora e abrindo com a mão é só piada, sugerem os autores da campanha. Reforçada então com o acender da vela com um lança-chamas. Piada que depois se torna um pouco hollywoodiana com estátua andante e uma cena de perseguição típica(seguida de explosão, claro). Tudo uma caricatura, piada, ficção, coisas de comerciais que ninguém leva a sério. 

        Noutra reportagem sobre a campanha publicitária, a palavra irreverência é usada para definir o comercial; e é dito que há carinho, cavalheirismo e sensibilidade no que chama de um novo conceito de homem homem - daí intencionalmente lançada no Dia Internacional das Mulheres. 

        Ou seja, apenas uma caricatura escrachada.

Escrachando

Entretanto, se uma piada nunca é gratuita, também não são as caricaturas, e daí a reflexão que tento fazer aqui. Mais que irreverente, o comercial permite pensar algumas questões.

      Vários pontos de uma masculinidade tradicional são invocados - o homem solitário mas autônomo(e viril), o homem que protege as mulheres(pois supõe que precisam ser protegidas), o homem que seduz mulheres, o homem das armas e carros e motos(brinquedos típicos e agressivos), o homem da velocidade e da explosão. Até a aparição do barco no final, remetendo ao extenso oceano de liberdades e perigos, tem eco numa das mais caras figuras da masculinidade ocidental: o explorador dos mares. 

       E se são invocados é porque ainda repercutem, seja nos criadores do comercial, seja no público imaginado para o comercial. Mesmo que exagerados e cômicos, são sintomáticos de algo que ainda existe entre nós e em nós, de algo que ainda paira em nossa sociedade.

Ou seja, isto que é o homem homem e dá o orgulho de ser e cheirar como homem.

O comercial revela, então, uma conexão ainda existente e ativa com certos valores masculinos. E mais que isso, toca num medo que também ainda repercute em algum lugar dentro de nossa sociedade: de que nossos homens estão perdendo sua homenidade. E como o comercial lembra em tom apocalíptico: O futuro da homenidade está em suas mãos. 

       Esse medo é antigo. Mais antigo do que o comercial. Mais antigo do que a onda dos metrossexuais. Mais antigo do que a segunda onda feminista nos anos 1960 e suas consequências - pois queimar sutiã assustou muitos homens. Mais antigo que o século XX. Registra-se já no século XVIII um incomodado burburinho sobre uma masculinidade perdendo-se via feminização. 

Deste modo, mais do que uma caricatura escrachada, feita só para fazer vender uma marca de desodorante que chega no mercado brasileiro, o comercial tem um potencial analítico, quase didático em sua proposta de fazer algo exagerado e caricato, pois permite pensar criticamente uma certa masculinidade - e pautado nas reportagens citadas, é algo (quase) próximo do que queriam seus idealizadores. Brinca com a ideia do homem fodão e também do medo da extinção do homem fodão. 

        Porém, há algo problemático aí. O comercial acaba sendo potencialmente reafirmador daquilo que se propôs a ironizar(inclusive pela sutileza da ironia, não muito visível). Sem comentar a exclusão de um rol amplo de homens, como já comentei acima, que se é lúdica é também potencialmente negativa. 

Comerciais não são responsáveis pelas mazelas da sociedade. Podem ser até reflexo delas. Por outro lado, também podem reproduzir tais mazelas. Causa e efeito, simultaneamente. Deste modo, a mídia, e aí entra a publicidade, precisa ser responsável pelo que veicula e como veicula. Em tempos de homofobia crescente e da persistente violência urbana masculina(que vitima homens e mulheres), invocar homem homem, com orgulho de ser e cheirar como homem, reafirmando assim vários dos elementos tradicionais da masculinidade e que já provaram exaustivamente ser distorcíveis e danosos, bem, isso pode ser um tanto inconsequente - mesmo que só para vender desodorantes. 

     Mais: definir o comercial como irreverente não reduz o potencial negativo assim como contar uma piada racista e dizer que é uma piada irreverente não diminui o racismo expresso e existente. Acaba sendo uma elevação do machismo/racismo. 

E agora, pensando melhor no que eu dizia no começo, desconfio que caricatura escrachada e revelação de valores (e temores) profundos podem não fazer aquele lugar confuso, intermediário; podem ser exatamente mesma coisa. E que o diga o homem homem e sua extinção

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Que viadagem aquele beijo!

Na banca de jornal a discussão rolava solta. Se bem que tecnicamente não era discussão pois não havia discordância: todos concordavam em reprovar beijo gay da novela das oito.


Que viadagem aquele beijo!
Querem nos fazer gays.
Esse mundo tá virado em bicha.
Não adianta falar de preconceito, isso é errado.
Pôr isso em horário nobre já é demais!

E por aí a fora.

Com otimismo podemos pensar que tais opiniões são restritas a um certo público, e só a esse público. Neste caso, os frequentadores das bancas de jornal nas manhãs de domingo, um local de sociabilidade tipicamente masculina. Todos homens já com uma certa idade, com certa calvície, um tanto grisalhos, que usam camisa polo e dirigem grandes e novos carros prateados.

Mas otimismo tem limite, e aquele público certamente, e infelizmente, não tanto. É que local, idade e classe não delimitam certos valores encrustados em nosso íntimo.

Somos criados em uma cultura que nos faz dar uma importância tremenda à sexualidade. E por mais que no fundo nossa sexualidade possa ser somente uma preferência, uma escolha pautada em gostos e tendências pessoais(e um outro tanto de inculcamentos sociais), não a vemos deste modo. Ela é mais importante do que isso; a tratamos como algo que somos.

As pessoas não gostam de pessoas do sexo oposto. Não. As pessoas são heterossexuais. As pessoas não gostam de pessoas do mesmo sexo. Não. As pessoas sãohomossexuais.

De algum modo, esse seré ainda mais importante para a masculinidade. Saber qual masculinidade um homem é, isso é crucial – e potencialmente perturbador.

Mais do que necessidade de rótulo, isso reflete quão fundamental é nossa sexualidade para definir aquilo que somos e para o sentimento de que somos algo. Fala sobre nossa humanidade, nossa essência. E tanto melhor se estamos naquilo que se convenciona chamar do normal.

Eu sou normal pois sou heterossexual.

Ou, adotando a perspectiva masculina que tento sugerir, surge uma das possíveis variações: Eu sou homem de verdade.

Voltando a novela: e o beijo gay? E o cidadão que viu no beijo uma conspiração gay mundial? E o outro que dizia ser errado? E a ofensa de ver isso no, pasmem!, horário nobre?

Quanto mais essencial é um valor para nós, mais descabida é sua relativização. E um beijo gay, em horário nobre, alcançando tantos lares e pessoas como só a Globo alcança, é uma grande relativização. E o que se relativiza, como dito, não é um gosto ou uma preferência ou uma norma social. Não. É aquilo que somos. A novela de repente fazendo uma fissura naquilo que eu sou, um heterossexual normal.

Logo, sob a perspectiva da masculinidade, a fissura é mais problemática porque acontece sobre ela, a masculinidade. Eram dois caras se beijando, dois galãs, dois sujeitos que imaginamos terem à disposição qualquer mulher.

Dois seres barbados trocando beijos, isso incomoda horrores. Escancara uma possibilidade que com muito esforço é silenciada. 

Para os homens, expressões homossexuais femininas são também reprováveis, mas encontram um fácil subterfúgio nas fantasias sexuais masculinas – a sensação de poder sobre dois corpos femininos, sensação de possuir e supostamente satisfazer sexualmente duas mulheres que até então não se satisfaziam com homens. Nestes casos a homossexualidade torna-se perdoável na medida em que é um desafio-incentivo ao masculino. Assim, quase certo que o beijo gay feminino não seria tão problemático.

Não assisto novelas e portanto não vi o famigerado beijo. Só fiquei sabendo dele através de menções prévias e sensacionalistas em sites de notícia e hoje, na banca de jornal, pelos comentários avessos do pessoal que lá estava.

Mas que venham mais beijos gays. Que a fissura torne-se rachadura e dela algo novo saia. E tanto que um dia o beijo gay não seja gay, e somente beijo.

O que nós, homens heterossexuais, normais para aqueles que creem na normalidade, precisamos entender, é que a liberdade do beijo gay diz sobre a nossa liberdade. 

A liberdade do normalpoder chorar, confessar que sente, experimentar algo além do futebol, da cerveja e dos tapas nas costas, poder ter conversas francas, poder todos aqueles clichês que são negados ao dito macho. E isso não quer dizer que o heterossexual será homossexual. Trata-se só da liberdade de olhar sua própria vida partindo da saudável perturbação de quem se sabe humano, e não da altivez de um papel falso que passa a vida toda, a trancos e barrancos, tentando interpretar estoicamente(e que inclui frases desnecessárias do tipo que viadagem aquele beijo!).

domingo, 26 de janeiro de 2014

Gente que não é como você

Você as observa. São gente, mas não como você. Elas têm o que você não tem mais.


E elas ainda acreditam naquilo que você, ressentido, destruiu. E ainda veem colorido o que em teus olhos arde tristemente.


E por tudo isso, e mais um tanto de natais e doces e joelhos esfolados, é que elas ainda podem ser as coisas que tu nunca mais serás. Todas essas coisas destinadas a morrer em tua poesia velha.

Você as observa. Elas brincam, elas vivem, nem bem sabem que vivem.

E você parte, sempre consciente, sentindo cada segundo da constante despedida.