segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Quando a masculinidade faz rir

  Os dois sujeitos se atracam. Estão treinando MMA. Os movimentos são brutos, o diálogo também, porra. Aquele que parece ser o professor é também o mais agressivo, e segue subjugando seu presumível aluno. E tudo segue como imagina-se que deve seguir uma aula de MMA... até que o professor sugere, muito sexualmente, que poderia morder o pescoço do seu aluno. E é desta cena, e do posterior embaraço do aluno, que o humor da esquete surgirá.




Mas, afinal, de onde vem esse humor? Por que conseguimos rir desta cena? Ou, ainda mais importante, por que é que os roteiristas julgaram que esta cena seria engraçada para a maioria das pessoas?

Ora, o riso não é instintivo, menos ainda sua causa. Então, de onde vem a graça de um aluno de MMA que é surpreendido pelo interesse sexual do seu professor, justo no meio da aula?

Dentre as várias causas possíveis, consigo delinear ao menos duas. Uma derivada da própria dinâmica do humor, e outra derivada (aí sim fazendo valer a intenção deste texto) de como nossas masculinidades heterossexuais funcionam.

A primeira causa, que vem dos recursos que causam o riso, é simplesmente a quebra de expectativas. Algumas coisas não deveriam aparecer, mas então aparecem; algumas coisas não deveriam estar lá, mas estão; e algumas coisas não deveriam ser, mas de repente são... Expectativas foram criadas, então quebradas, e essa ruptura gera o riso. É uma fórmula simples, na verdade, mas versátil e eficiente para fazer rir.

A segunda causa, vinda de como vemos (e vivemos) a heterossexualidade masculina, é sutilmente o medo que os homens tem de outros homens. Não um medo geral, mas um medo particular: o medo de que a interação com outro cara dê espaço para qualquer sinal de homossexualidade.

O que estou sugerindo é que dois homens heterossexuais em interação vão estar tão mais desconfortáveis quanto menos certeza tiverem da heterossexualidade um do outro.

A proximidade entre dois caras, o contato físico, ou partilha seja lá do que for; tudo pode ser muito tenso a menos que se tenha certeza de que a homossexualidade não contaminará aquela relação. É o que a heterossexualidade masculina quase sempre exige, e que muitos homens não conseguem relativizar: o medo constante de qualquer homossexualidade potencial.

(Aliás, a própria força com que nossa cultura ainda nos impele à heterossexualidade faz com que toda e qualquer demonstração de homossexualidade já seja, nos termos daquela primeira causa, uma ruptura passível de uso cômico) 

Juntando as duas causas temos então a cena de humor. Um contexto hiper-masculinizado - academia, esportes de contato, MMA - com dois sujeitos expressando virilidade - a fala dura, o rosto porejando suor -, mas que, de repente, dão espaço para falas sexuais sobre morder seu pescoçoou ainda lamber seu saco. E o que prometia ser hétero vira, subitamente, homossexual. O aluno, pego de surpresa, então fica em posição desconfortável, à merce de mordidas, lambidas, mas acima de tudo, à mercê daquele medo heterossexual - o que para nós, espectadores, gera comicidade. É ruptura, é medo, é riso.

Agarração? Pode, mas só se na base da porrada. 
Contudo, o humor tem um aspecto muito interessante, que é sua capacidade de provocar o alívio. É o famoso riso nervoso. Aquela piada feita sobre o que incomoda. A tentativa de tornar o desagradável mais palatável através de uma tirada que se pretende cômica.

Mais ou menos como a pessoa que, sabendo que falarão do seu nariz grande, logo se apressa a fazer comentários engraçados sobre ele.

O humor, portanto, tem essa capacidade de aliviar um incômodo ao mesmo tempo que o expressa.

E o que a esquete do Porta dos Fundos alivia e expressa? Novamente, o perene medo masculino de que o contato entre dois caras se transforme no contato entre dois amantes.

(em tempo: como alguns comentários ao vídeo bem expressam [lamentando a "viadagem" típica das esquetes do Porta dos Fundos], nem sempre o alívio é bem sucedido; contudo, a ausência do alívio só reforça quão intenso é o medo). 

Não se trata, obviamente, de sugerir qualquer homossexualidade latente que os homens heterossexuais reprimem, ou que estão no armário, e que daí vem o medo. 

O ponto, sugiro, é esse grande pano de fundo que faz a heterossexualidade masculina precisar sempre rejeitar qualquer sinal de homossexualidade, e por consequência, dois caras em interação - tanto pior se física - deixa uma grande tensão no ar sobre o risco de qualquer indício homossexual surgir. E quando a tensão explode, quando ela é escancarada, o recurso do riso é, dentre outras coisas, a vazão do desconforto. 

 O vídeo do Porta dos Fundos usa desta dinâmica, e nem sequer é pela primeira vez. Ela aparece também em diversos filmes e programas de comédia, sempre usando da potencial, inesperada e tensa homossexualidade como fator de riso. E vemos, afinal, bombardeados pela frequência com que a fórmula é utilizada, que até mesmo nosso riso mobiliza nossos aprendizados de gênero e sexualidade, esses aprendizados internalizados nos mais complexos e insistentes processos de socialização e subjetivação - e que fazem, inclusive, as mulheres partilharem desta dinâmica de humor e também serem elas a rirem dos inesperados morder seu pescoçoe lamber seu saco.

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