quinta-feira, 30 de abril de 2015

A pequena revolução Nerd

Os videogames mudaram e já não são mais como antigamente. Ou ao menos não são mais vistos como antigamente.

E longe de ser um daqueles processos de mudança longos e imprecisos, este é curto o suficiente para caber na vida de quem nasceu na década de 80.

Tive a oportunidade de ter uma infância marcada por um computador 386 e horas de piração pixelada frente aos consoles 8 bits. Horrorizada, minha mãe me dizia, e reproduzindo o discurso alarmista daquele tempo estranho, que eu viraria um vegetal de tanto jogar aquelas coisas todas.

Os professores, no mesmo tom alarmista, diziam que jogar faria mal, que atrofiaria nossos cérebros, que aquilo atrapalhava fazer novos amiguinhos. E a TV, sempre na vanguarda do alarmismo, acusava os jogos pelos esporádicos episódios de violência em escolas e salas de cinema, quando alguém descarregava aleatoriamente uma arma de fogo - os réus começaram com Doom 95 e hoje alcançam GTA: V.
A suposta causa da corrupção das puras mentes da década de 90

E, conforme ia chegando a adolescência, as pessoas da minha idade que não jogavam sempre tinham a acusação pronta de seu nerd!, como se ser nerd (neste caso, alguém que gosta de videogames) fosse um pequeno crime contra a sociedade.

De um lado estava o aceitável, de outro o inaceitável, e videogames estavam do lado inaceitável.

Mas de um tempo para uma imigração de lado teve início, como nos sugere a reportagem da UOL desta semana. 


Que, resumindo, seria: jogue videogames e esteja mais apto ao ambiente de trabalho.

E essa notícia é só a crista da onda maior que veio elogiando as potencialidades dos videogames.

Pois, se você não sabia, fique sabendo que eles podem ser o tônico digital para nossos cérebros. Mais ainda, podem ser o remédio que, em doses certas, ajudam na formação do seu filho. E falando em filhos, ao contrário do que dizia minha mãe, os jogos podem ajudar a melhorar coisas como visão, coordenação motora, e atividades mentais como um todo - ou seja, sem chances de virar vegetal.

Assim como o ovo e o colesterol, videogames e aceitabilidade estão revendo suas relações. E algumas razões podem ser apontadas.

Como a própria notícia da UOL anuncia, este é um mercado considerável, e as cifras altas significam investimentos pesados em marketing e, claro, qualidade. 

E desta forma, se antes era preocupante a imagem do adolescente (espinhento, por pressuposto) que passava as madrugadas tentando expandir seu império enquanto evitava invasões inimigas ao sul, agora, é quase glamourizada a imagem do cidadão que chega em casa após estressante dia de trabalho e relaxa com uma jogatina no seu console de alguns milhares de reais. 

É o novo futebol depois do expediente, mas sem suor, e um tanto mais caro. 

Há também uma questão geracional: os adolescentes que mendigavam um ou dois reais dos pais para fichas de jogo, ou então horas pagas em lan houses, agora cresceram e têm um salário para manter (ou tentar, né) seu gosto por videogames.

Indo adiante, se antes os pais brigavam porque seus filhos não paravam de jogar, agora os pais pegam o player 2 e entram na disputa - e ainda zoam o filho por ser newbie.

E no final disso tudo há a diminuição do típico pânico inicial que acomete as novidades tecnológicas. Afinal, novas tecnologias (e novas relações com as tecnologias) têm essa peculiar capacidade de provocar pânico. 

Os telefones fariam toda relação travar na impessoalidade da distância. As TV's nos transformariam em alfaces passivas recebendo, sem contestação, um conteúdo pré-formatado. Os computadores, em sua velocidade e automação em cálculos e operações complexas, nos substituiriam.

Os celulares seriam pequenas bolhas de isolamento dos ambientes onde estávamos, reforçando o individualismo contemporâneo. A internet seria um buraco negro de informações sem controle, e as relações humanas, agora sim, não poderiam alcançar ali nenhuma profundidade ou autenticidade.

Os smarthphones seriam a conexão constante, e por isso estafante, que nos transformariam em seres sempre conectados e por isso sempre estressados. E o pânico da vez, os apps, a chamada app dependência, que nos impediriam de fazer qualquer coisa senão pudéssemos registrar (e compartilhar publicamente) o feito em um app.  

Apesar de alguns fatos aparentemente confirmarem o pânico, como a suposta necessidade de clínicas para dependentes tecnológicos, o pânico excede tais fatos.

Afinal, não é a tecnologia que usa as pessoas, mas sim as pessoas que usam as tecnologias - isso até rolar a Matrix e aí ferrar todo nosso esquema. 

Os videogames também foram vítimas desse pânico todo, não obstante a convivência, lubrificada pelo mercado e pela geração atual, vá aos poucos o reduzindo, e tornando mais palatável a ideia de  que pode ser saudável termos videogames em nossos cotidianos - e como dizia aquela reportagem, também em termos de vida profissional, que é a preocupação central neste mundo capitalista. 

E, inclusive, surgem mais provas daquela obviedade de que não são os videogames que usam as pessoas, mas sim o contrário, e com muita inventividade, surpreendendo até mesmo os próprios idealizadores dos primeiros videogames - como em seu uso dentro da terapia ocupacional.

Os videogames definitivamente não são mais como antigamente.

E nós, nerds, testemunhas do Atari, determinados assopradores de cartuchos, jogadores que zeravam os jogos sem save (e anotavam passwords no papel mais próximo)desbravadores de mundos 2D, que trocavam disquetes para instalar um jogo de incríveis 10 MBs, que pudemos sentir a genuína novidade de uma jogatina online, e que não viramos vegetais nem assassinos, nós, nerds, estamos tendo nossa pequena revolução cultural. Agora somos legítimos (ou quase).


sexta-feira, 24 de abril de 2015

Feitiço do Tempo (1993)

Era uma daquelas manhãs frias e cinzas de Curitiba e nosso professor de Sociologia do Conhecimento tentava, a despeito de toda a apatia matinal dos alunos, nos encucar uma das máximas sociológicas: todo conhecimento só pode surgir em um determinado contexto.

E já que citar autores de meados do século XX definitivamente não estava empolgando a galera, ele tentou uma outra abordagem:

Por exemplo, as histórias de ficção. Seja ficção científica ou fantasiosa, uma ficção não é sobre um futuro distante e distópico, sobre uma realidade paralela, ou sobre eventos incrivelmente absurdos. As ficções são, na verdade, diálogos com o que há de mais sensível e urgente no nosso tempo presente, na nossa própria realidade, no nosso cotidiano mais banal.

A manhã continuou fria, o cara do meu lado ainda estava super concentrado na arte abstrata que rabiscava no caderno, a garota lá da frente continuava fitando platonicamente seu copo de café, e o professor, vendo que o esforço fora em vão, voltou a citar autores de meados do século XX.

Mas eu pirei em pensar na possibilidade de serem os universos ficcionais um reflexo mais ou menos distorcido desse mundinho nosso de cada dia (tá, eu sei, se você para pra pensar é um treco meio óbvio - mas ainda assim intrigante).

A pergunta voltou a me pirar dia desses depois de assistir pela décima vez a ficção fantasiosa Feitiço do Tempo

Feitiço Do Tempo / Groundhog Day (1993)

Nesta pequena joia da cultura popular dos anos 90, temos Bill Murray vivendo um egoísta e orgulhoso repórter que é enviado para cobrir o Dia da Marmota (se você não conhece essa excentricidade americana, te apresento). E que sem razão alguma passa a acordar, sempre, neste dia, neste detestável dia de sua vida, num ciclo infinito que começa com seu despertador tocando I Got You Babe.

Phil (o repórter ranzinza) tenta de tudo para quebrar esse ciclo, mas nada adianta. E todo dia o dia se repete: o mesmo lugar, as mesmas pessoas, as mesmas conversas, as mesmas coisas a se fazer.

Claro, é uma daquelas comédias românticas dos anos 90 em que não é possível fazer spoiler pois você sabe o final logo nos primeiros 15 minutos. Mas mesmo não sendo um filme dirigido por um diretor escandinavo cujo o nome ninguém consegue pronunciar direito, ainda assim vale entrar na onda daquela aula de Sociologia do Conhecimento e refletir alguns instantes.

O que há numa história fantasiosa em que um sujeito vive todo dia o mesmo dia?

E se você se permitir ser franco, vai responder se olhando no espelho: acho que esse sujeito sou eu.

Porque acordar todo dia e viver o mesmo dia não é privilégio de Phil durante o Dia da Marmota. Porque nós estamos, com ocasionais exceções, no mesmo lugar. Encontramos as mesmas pessoas e, se duvidar, nos mesmos lugares e horários. As conversas se repetem, começando com bom-dia, e seguindo pelas estruturas rotineiras de um ambiente de trabalho, de uma sala de aula com colegas. E fazemos sim as mesmas coisas pois a vida de um cidadão médio e socialmente funcional é fazer sempre as mesmas coisas.

Phil entra em uma situação ficcional que é absurda, exagerada, ridícula, em que a repetição é perfeita. Já a nossa repetição é menos perfeita - mas é repetição. E acordar para viver todo dia o mesmo dia é algo muito concreto - mesmo que o calendário tente te consolar na direção contrária.

Feitiço do Tempo, com toda a displicência, inocência e abuso dos clichês, é uma ficção que vem de um ponto central de nossas vidas reais, que é esse regramento.

Algo tão forte que só conseguimos nos imaginar fora dele se fantasiamos (e para muitos de nós nunca passa disso, uma fantasia) estilos de vida radicalmente diferentes, como achar alguma comunidade alternativa, virar um hobo do século XXI, ir vender sua arte na praia, ou arrumar a mochila e ver pra onde as caronas te levam.

Caso contrário, cá estamos nós, acordando todo dia para viver o mesmo dia.

Mas Feitiço do Tempo não tem exatamente a mais das libertárias resoluções - e se eu fosse mostrar esse filme para meus alunos eu pararia ele por aí.

A saída do tormento ficcional e absurdo que propõe não está em Phil se tornando um hippie ou então fazendo um mochilão sem-fim pela América Latina. Phil não se torna um marginal liberto. O encanto da repetição é quebrado somente quando ele encontra o amor (na sua versão mais romanticamente idealizada), aceita placidamente seu trabalho (até então enervante), e se torna mais um membro feliz e sorridente da comunidade local (que antes o repugnava).

Ou seja, o encanto não se quebra pela revolução pessoal, mas sim quando Phil se torna o sapo que morre inchado mas feliz.

Se o filme é bom pelo diagnóstico, peca então pela resolução.

Feitiço do Tempo se presta a uma leitura fácil pela autoajuda e falar dele é incorrer no risco de fazer justamente esta leitura - ainda mais quando a gente linka com a fábula do sapo na panela! E é quase um exagero querer extrair dele qualquer coisa além de um passatempo de fim de noite.

Mas fazendo justiça à fala de meu professor, que heroicamente tentava nos ensinar algo em uma gelada manhã de inverno, toda ficção vem de um lugar, que é o nosso lugar. Neste caso, que é o nosso dia que repete, e repete, e repete, para o bem ou para o mal, com maior ou menor felicidade, queiramos ou não.

I got you babe, I got you babe...

domingo, 19 de abril de 2015

Vira homem, moleque!

O BuzzFeed fez uma lista de frases que, de acordo com educadoras, devem parar de ser ditas aos meninos pois são frases que reforçam o machismo e a homofobia. São 12 frases com bordões masculinistas clássicos, aqueles que todo mundo já ouviu ou disse pelo menos uma vez na vida, como Engole o choro, Para com isso, parece mulherzinha, ou ainda Para de ser fresco e faz o que tem que fazer.

Contudo, apesar de bem intencionada, necessária e precisa, a lista acaba gerando um desses micro-episódios virtuais que são desanimadores.

O triste da lista começa com a necessidade de legitimação: para fazer o leitor acreditar que tais frases realmente são machistas e homofóbicas é preciso dizer que são as educadoras – leia-se, pessoas diplomadas que estudaram e portanto sabem o que dizem – que estão dizendo que são machistas e homofóbicas.
Pois até os esporros de mãe podem ser machistas

Num mundo ideal e perfeito, ou minimamente consciente da diversidade, não seria preciso nenhum tipo de legitimação para saber que apontar o dedo para um menino de sete anos e dizer Menino não chora é algo nocivo àquele menino – e às meninas e a quem não cabe nos rótulos polares de menino e menina. Mas como o mundo tá longe de qualquer ideal, perfeição, ou mínima consciência da diversidade, seguimos com legitimações.

Mas a legitimação não basta, e a tristeza que a lista sem querer revela continua aumentando. E o que era para ser uma oportunidade para que as pessoas refletissem sobre seus comportamentos viciados, aqueles que foram herdados sem nunca se perguntar o porque (e muito menos admitir, assim, só de leve, que existem outras possibilidades), se torna uma oportunidade para reafirmar justamente o que a lista se propõe a contestar. 

Ou seja, muitas pessoas reagiram à lista reafirmando a necessidade de dizer tudo aquilo aos meninos.

E aí surgiram aqueles comentários de homens, que hoje, adultos, lembram com nostalgia viril os tempos em que os pais realmenteexigiam que seus filhos fossem homens de verdade, um tempo em que ninguém tentava transformar a sociedade numa horda unissex, em que cada pessoa tinha seu papel saudavelmente estabelecido, que ninguém tentava nos ensinar que o certo é criar o filho como um banana, que graças à severidade com que foi criado hoje é um homem de valores, que teve uma infância boa num tempo em que não havia esse coitadismo moralista, e por aí prossegue. 

O pequeno fenômeno que esta lista causa espanta, pois, pela dificuldade, e reatividade agressiva, que as pessoas mostram ao serem apresentadas a caminhos alternativos (e que nem são tão alternativos assim já que ninguém contestou a heterossexualidade). E espanta também por revelar como as pessoas adoram repetir padrões de um passado idealizado.

Gostaria que esses homens todos (e também algumas mulheres que surfam nas ondas daquela nostalgia viril) entendessem que aquelas frases todas são perversas em pelo menos dois sentidos.

O primeiro é que são todas baseadas em normas e padrões. E, céus, padrões e normas não são um saco? Você gosta de escrever seu trabalho da faculdade nas normas da ABNT? Você aprova o novo padrão das tomadas brasileiras? Você gosta de ter de se vestir assim-assado porque é como as pessoas têm que se vestir no seu trabalho? Então por que diabos alguém pensa que vai ser divertido ter um padrão e norma sobre nosso gênero, sobre algo que temos entranhado em nós a todo segundo do nosso dia?

O homem da casa
Restringir o comportamento masculino por ser (muito supostamente) coisa de fresco, coisa de mulherzinha ou coisa de covarde, é botar uma corda no que não precisa ter cordas. E falando em cordas, dizer para um menino Você tem que ser forte, já é o homem da casa, é só a ponta da corda da frustração na vida deste mesmo menino, que um dia, cedo ou tarde, verá que nunca chegou a ser o homem da casa pois esse homem não existe – não em nossos cotidianos, nessa vida real, nesse mundo de novos e merecidos direitos e protagonistas, nessa carne que tem emoções e desejos e intrincados caminhos ligando essas duas coisas.

Você, homem, não “tem que” nada, ok? 

O segundo sentido perverso daquelas frases é que para elevar o homem elas diminuem os não-homens (estes no sentido mais amplo do termo). E fazem isso muito diretamente. 

A construção frasal é simples: bom > homem versusruim > menina/mulherzinha/covarde/fresco. E a lógica é evidente: o homem tá do lado bom da equação, e você, pequeno homem, não deixe nunca de estar nesse lado bom!

Isso obviamente é danoso para os próprios homens, que são segregados numa variada hierarquia baseada naqueles valores tradicionais, onde chorar quando o Marley morre no final já é motivo para te colocar uns degraus abaixo pois chorar por cachorros é coisa de menina/mulherzinha/covarde/fresco. 

Mas isso é, e talvez não tão obviamente assim, danoso também para aquele grande grupo de não-homens, que além de já negativizados de partida (o lado ruim da equação) são furtados de qualquer possibilidade de passarem ao (muito supostamente) lado bom da coisa... e ai daqueles que tentam passar!

Quando uma mulher ousa sair do seu esperado papel de figura meramente sexual, e portanto tem atitude, coragem, é perseverante, é líder, age com decisão, contesta e enfrenta o mundo à sua volta, se porta com total autonomia, e, enfim, acumula vários outros adjetivos e atributos que o tal homem de verdade deve ter, não raro surgem os piores comentários: é mal comida, falta de homem dá nisso aí, é machona mesmo, acho que é sapatão, e tantas outras baboseiras.



Dizer ao menino Isso é coisa de menina é cultivar o homem que anos mais tarde não vai admitir que meninas façam coisas de menino, que não vai admitir estar em igualdade com elas, e que quando isso acontecer vão reagir invocando rótulos e depreciações. E não muito longe disso estão as estatísticas do preconceitos e desigualdades que as mulheres enfrentam no ambiente do trabalho, onde ganhar o mesmo que os homens e ter deles o respeito é um desafio diário.

A lista do BuzzFeed, mesmo sendo só uma lista do BuzzFeed, revela as dificuldades de se pensar as mudanças mais sutis no nosso dia a dia e no modo como lidamos com nossos gêneros. Revela que o machismo e a homofobia estão tão entranhados em nós que mesmo tentativas de combate são (re)apropriadas para reforçar o machismo e a homofobia. Vira homem, moleque, dizem por aí, e a reação de algumas não-poucas pessoas à lista do BuzzFeed indica que ainda temos muitas razões para nos preocupar com esse homem que está por vir.