Era uma daquelas manhãs frias e cinzas de Curitiba e nosso professor de Sociologia do Conhecimento tentava, a despeito de toda a apatia matinal dos alunos, nos encucar uma das máximas sociológicas: todo conhecimento só pode surgir em um determinado contexto.
E já que citar autores de meados do século XX definitivamente não estava empolgando a galera, ele tentou uma outra abordagem:
Por exemplo, as histórias de ficção. Seja ficção científica ou fantasiosa, uma ficção não é sobre um futuro distante e distópico, sobre uma realidade paralela, ou sobre eventos incrivelmente absurdos. As ficções são, na verdade, diálogos com o que há de mais sensível e urgente no nosso tempo presente, na nossa própria realidade, no nosso cotidiano mais banal.
A manhã continuou fria, o cara do meu lado ainda estava super concentrado na arte abstrata que rabiscava no caderno, a garota lá da frente continuava fitando platonicamente seu copo de café, e o professor, vendo que o esforço fora em vão, voltou a citar autores de meados do século XX.
Mas eu pirei em pensar na possibilidade de serem os universos ficcionais um reflexo mais ou menos distorcido desse mundinho nosso de cada dia (tá, eu sei, se você para pra pensar é um treco meio óbvio - mas ainda assim intrigante).
A pergunta voltou a me pirar dia desses depois de assistir pela décima vez a ficção fantasiosa Feitiço do Tempo.
Feitiço Do Tempo / Groundhog Day (1993) |
Nesta pequena joia da cultura popular dos anos 90, temos Bill Murray vivendo um egoísta e orgulhoso repórter que é enviado para cobrir o Dia da Marmota (se você não conhece essa excentricidade americana, te apresento). E que sem razão alguma passa a acordar, sempre, neste dia, neste detestável dia de sua vida, num ciclo infinito que começa com seu despertador tocando I Got You Babe.
Phil (o repórter ranzinza) tenta de tudo para quebrar esse ciclo, mas nada adianta. E todo dia o dia se repete: o mesmo lugar, as mesmas pessoas, as mesmas conversas, as mesmas coisas a se fazer.
Claro, é uma daquelas comédias românticas dos anos 90 em que não é possível fazer spoiler pois você sabe o final logo nos primeiros 15 minutos. Mas mesmo não sendo um filme dirigido por um diretor escandinavo cujo o nome ninguém consegue pronunciar direito, ainda assim vale entrar na onda daquela aula de Sociologia do Conhecimento e refletir alguns instantes.
O que há numa história fantasiosa em que um sujeito vive todo dia o mesmo dia?
E se você se permitir ser franco, vai responder se olhando no espelho: acho que esse sujeito sou eu.
Porque acordar todo dia e viver o mesmo dia não é privilégio de Phil durante o Dia da Marmota. Porque nós estamos, com ocasionais exceções, no mesmo lugar. Encontramos as mesmas pessoas e, se duvidar, nos mesmos lugares e horários. As conversas se repetem, começando com bom-dia, e seguindo pelas estruturas rotineiras de um ambiente de trabalho, de uma sala de aula com colegas. E fazemos sim as mesmas coisas pois a vida de um cidadão médio e socialmente funcional é fazer sempre as mesmas coisas.
Phil entra em uma situação ficcional que é absurda, exagerada, ridícula, em que a repetição é perfeita. Já a nossa repetição é menos perfeita - mas é repetição. E acordar para viver todo dia o mesmo dia é algo muito concreto - mesmo que o calendário tente te consolar na direção contrária.
Feitiço do Tempo, com toda a displicência, inocência e abuso dos clichês, é uma ficção que vem de um ponto central de nossas vidas reais, que é esse regramento.
Algo tão forte que só conseguimos nos imaginar fora dele se fantasiamos (e para muitos de nós nunca passa disso, uma fantasia) estilos de vida radicalmente diferentes, como achar alguma comunidade alternativa, virar um hobo do século XXI, ir vender sua arte na praia, ou arrumar a mochila e ver pra onde as caronas te levam.
Caso contrário, cá estamos nós, acordando todo dia para viver o mesmo dia.
Mas Feitiço do Tempo não tem exatamente a mais das libertárias resoluções - e se eu fosse mostrar esse filme para meus alunos eu pararia ele por aí.
A saída do tormento ficcional e absurdo que propõe não está em Phil se tornando um hippie ou então fazendo um mochilão sem-fim pela América Latina. Phil não se torna um marginal liberto. O encanto da repetição é quebrado somente quando ele encontra o amor (na sua versão mais romanticamente idealizada), aceita placidamente seu trabalho (até então enervante), e se torna mais um membro feliz e sorridente da comunidade local (que antes o repugnava).
Ou seja, o encanto não se quebra pela revolução pessoal, mas sim quando Phil se torna o sapo que morre inchado mas feliz.
Se o filme é bom pelo diagnóstico, peca então pela resolução.
Feitiço do Tempo se presta a uma leitura fácil pela autoajuda e falar dele é incorrer no risco de fazer justamente esta leitura - ainda mais quando a gente linka com a fábula do sapo na panela! E é quase um exagero querer extrair dele qualquer coisa além de um passatempo de fim de noite.
Mas fazendo justiça à fala de meu professor, que heroicamente tentava nos ensinar algo em uma gelada manhã de inverno, toda ficção vem de um lugar, que é o nosso lugar. Neste caso, que é o nosso dia que repete, e repete, e repete, para o bem ou para o mal, com maior ou menor felicidade, queiramos ou não.
I got you babe, I got you babe...
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