Herman Hesse, ganhador do Nobel de literatura, escreveu Demian em 1917. O livro é considerado como um dos mais marcantes livros do século XX. Por detrás de uma simples narrativa em primeira pessoa, onde acompanha-se Emil Sinclair da infância até a juventude, tem-se ainda hoje uma leitura que conversa fundo. E a conversa pode ser feita aqui (download do livro).
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Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente de mim. Por que isso me era tão difícil?
Com o tempo, e inadvertidamente, a vida acontece e construímos escapatórias e fugas sem ter a consciência dos motivos elementares dessa covardia. Nunca paramos para notar como os nossos medos poderiam ser desconstruídos num simples momento de reflexão.
Quando temos medo a alguém é porque demos a esse alguém algum poder sobre nós.
Quantos são os reis que criamos? A quantas ditaduras nos submetemos calados, quase satisfeitos com a tortura? É com dificuldades enormes que percebemos que os poderes não são naturais, que os medos e toda a covardia não estão entranhados em nós e que podem sim ser removidos. É dificultoso aprender, mas com Demian é possível.
E por quanto tempo negamos o destino. A negação do destino de nascermos em nós mesmos e somente para nós. Com que determinação evitamos provar a fundamental e criadora solidão,
quando tudo o que chegamos a amar quer abandonar-nos e sentimos de repente em nós a solidão e o frio mortal dos espaços infinitos.
Amaciados, acostumados, viciados numa ilusória sensação de tranquilidade e aceitamento, nos privamos da construtiva reclusão diante a turba e sua massacrante sede por padronização.
Você, o bom aluno, o dedicado funcionário, o amigo que se enche de culpas e responsabilidades. Você, da existência pesada e que deseja profunda pureza moral. Você, que não é católico, talvez nem cristão, e ainda assim é refém de um maniqueísmo anacrônico. Você, que sufoca desejos, dilacera possibilidades, descultiva caminhos, que se afasta irracionalmente de tudo o que é o "mal". Mas e quantas respostas se perderam no "mal" não experimentado?
Não faço a menor objeção a que se adore esse Deus Jeová. Mas creio que devemos adorar e santificar o mundo inteiro em sua plenitude total e não apenas essa metade oficial, artificialmente dissociada. Portanto, ao lado do culto de Deus devíamos celebrar o culto do Demônio. Isto seria o certo. Ou mesmo criar um deus que integrasse em si também o demônio e diante do qual não tivéssemos que cerrar os olhos para não ver as coisas mais naturais do mundo.
Demian provoca: quem sabe dessa totalidade que não teme o mal, mas o compreende como parte de um todo real, quem sabe dessa totalidade venha o nosso destino em nós e somente para nós.
Para um homem consciente só havia um dever: procurar-se a si mesmo, afirmar-se em si mesmo e seguir sempre adiante o seu próprio caminho, sem se preocupar com o fim a que possa conduzi-lo.
Essa aceitação resignada duma busca eterna talvez uma vertente filosófica nos demonstre, talvez uma religião, talvez um misticismo doutros tempos. Mas é preciso manter a violência explícita dessa busca, a elevação do ato solitário em erguer-se a favor do próprio destino e não a favor da massa disforme, pois aquele que assim procede
já não tem semelhantes e se ergue solitário sobre a terra, tendo a seu lado somente os gélidos espaços infinitos.
Demian é um convite à dúvida, mas também um convite a entrarmos em nós mesmos. É um elogio à separação dos outros e ao encontro de si. É a legitimação da destruição que precede a criação, mesmo que aos moralistas possa soar ofensivo. É o caminho difícil, mas libertário, de entrar em nascimento.
A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo.
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