quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Por que os homens não nascem Homens?

Nossa cultura tem uma forte paixão pela natureza. Não no sentido de árvores e animais (quem dera!), mas no sentido daquilo que, acredita-se, está inscrito invariavelmente em nossos corpos e mentes e que, portanto, dita o modo como nos comportamos.

Genes, instintos, hormônios, essas seriam as chaves explicativas para o que fazemos e como fazemos. E principalmente para uma dimensão muito intensa de nossas vidas, que é a vida sexual.

Gostamos de pensar que nascemos homens e mulheres como que num pacote fechado e pré-determinado por natureza e nos ofendemos com quem insinua o contrário ou, pior, tenta viver fora desse suposto pacote natural, fechado e pré-determinado.

Em um ano que tanto se discutiu (e deturpou) a respeito das discussões de gênero na escola, este texto vai na direção de tentar mostrar como a sociologia explica esse treco complicado que é ter um gênero. Por questões de recorte e familiaridade, falarei especificamente dos homens, apesar de quase todo o texto poder ser adaptado às mulheres.

Afinal, por que é que homens não nascem homens?

Vamos a uma discussão introdutória baseada em alguns princípios elementares dos estudos de gênero.



O social por detrás do natural.

A Sociologia é uma ciência que se propõe a explicar os fenômenos a partir do social. Assim, as respostas que ela traz tentam demonstrar as construções sociais, e portanto culturais, por detrás dos acontecimentos - inclusive por trás daqueles fenômenos que pareciam ser naturais.

Deste modo, ser homem ou ser mulher, em termos sociológicos, é um processo de construção social entrecortado por fatores culturais e muito longe de ser simplesmente algo natural.

Abre parênteses. Ok, genes, instintos e hormônios podem ser relevantes. O ponto, porém, é reconhecer a importância dos séculos de história humana. Nela, uma infinita riqueza de produtos culturais e instituições veio sendo produzida, dando assim andamento ao complexo processo da vida em sociedade. E nunca seríamos o que somos fora da sociedade em que vivemos, nunca seríamos o que somos sem aqueles produtos culturais e aquelas instituições, que obviamente abrangem nossas masculinidades e feminilidades. Fecha parênteses.

Simone de Beauvoir (1908-1986), filósofa francesa, polemizadora dos ENEM's da vida ainda em 2015, em seu clássico livro O Segundo Sexo, foi precursora ao problematizar o processo social que existe por detrás do gênero feminino. Ora, ser mulher não é natural ou imediatamente dado ao nascer. E daí a máxima de que ninguém nasce mulher, mas, sim, torna-se mulher.

Mas e com os homens seria diferente? Nasce-se homem ou torna-se homem?

Seja homem!

É possível perceber que desde criança, seja na escola, nas brincadeiras, ou na relação com os pais, um constante exercício de masculinidade pesa sobre os meninos. Se insiste tanto em dizer a esse menino o que e como fazer, que é muito razoável questionar se ele chegaria sozinho às conclusões a que acaba chegando.

"Meninos não choram."
"Meninos usam azul."
"Meninos não brincam de casinha."

Longe de serem frases inocentes ditas ao menino, são a expressão do contínuo processo de formação e reprodução da masculinidade – isto é, do que um homem deve ser ou fazer. E é um processo que lida com valores artificiais.

Por que não chorar? Por que azul? Por que não brincar de casinha? 

E neste sentido, de valores artificiais incorporados, é que ninguém nasce homem mas sim torna-se homem.

Produtos culturais, como filmes, ajudam nesse tornar-se. Ali está o modelo de masculinidade que é perpetuado como o normal, natural, e esperado - mesmo que na prática poucos homens consigam ser como o modelo.

Ninguém consegue ser como James Bond, ter todas as suas mulheres, carros e autoconfiança; mas todos podemos achar que é assim que deveríamos ser – e, puxa vida!, como seria legal se fôssemos.

Os comerciais são outra fonte abundante do tornar-se homem.

Associando consumo e masculinidade, muitos são os produtos que garantem ao homem que ele será o que deve ser. O detalhe, porém, é que o próprio comercial está criando esse dever ser: o sujeito de muitas mulheres, o cara com o corpo impecavelmente malhado, o homem bem sucedido com boas roupas e carro de luxo, e por aí vai.

Repita isso desde a infância, nos mais diferentes contextos, das mais inventivas e variadas formas, e isto repercutirá no modo como nós intimamente entendemos o que é ser homem. E a tal ponto que acharemos que é natural ser assim ou assado, nos sentindo culpados se não o formos e até sendo agressivos com aqueles que não o são.

Aprendendo, na prática, a ser homem.

Sendo a masculinidade algo não-natural, então ela precisa ser ensinada. E mais do que isso, precisa ser praticada no dia a dia. Afinal, se somos homens é preciso mostrar que somos homens.

E para tanto existem desodorantes de macho, esportes de macho, roupas pra macho, e tantas outras coisas de / pra macho que tem como finalidade garantir ao homem sua identificação junto à masculinidade.

Isso faz girar perpetuamente uma roda acerca dos valores artificiais da masculinidade e garantindo assim que todos nós sejamos o produto mas também os produtores da masculinidade.

Essa necessidade de praticar diariamente a masculinidade (e também a feminilidade, apesar de não ser o foco desse texto) é o que a filósofa norte-americana Judith Butler (1956-) chama de gênero enquanto algo performativo



O natural que pode ser perverso. 

Há um processo social contínuo, que nunca para, e que é absolutamente intrusivo. Nele, engrenagens culturais giram aqui e ali para possibilitar que esse tornar-se homem alcance a nossa mais íntima consciência e autoidentificação - do que filmes e comerciais televisivos são apenas um exemplo.

Pelo viés sociológico, notamos ainda que existem modelos de masculinidade que são aprovados e outros que são reprovados, uma divisão que o discurso do "natural" reforça e tenta legitimar. E aí precisamos voltar o olhar crítico às tentativas de naturalizar comportamentos e modelos: muitas das vezes, o discurso do "natural" esconde um processo normatizador e profundamente violento, seja física ou simbolicamente, absolutamente desrespeitoso com a diversidade humana. 

O discurso do "natural", ainda, acaba sendo muito mitológico. O homem natural nunca existiu. E se restarem dúvidas quanto à não-naturalidade de ser homem (ou mulher), basta notar como as práticas relacionadas a este conceito mudam de cultura para cultura e de tempos em tempos.

Se houver qualquer gene, instinto ou hormônio determinando como ser homem, demos muitas provas de que há tempos já aprendemos como escapar deles e viver os gêneros com muito mais criatividade, o que só reforça a validade de pensar tais questões não por uma suposta determinação da natureza mas sim pela Sociologia e seus complexos processos sociais.

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Para saber mais sobre a perspectiva sociológica a respeito dos gêneros, recomendo a leitura do já citado O Segundo Sexo de Beauvoir, que trata especificamente sobre o gênero feminino, ou então A Construção Social da Masculinidade, de Pedro Paulo de Oliveira, cujo título não deixa dúvidas sobre o conteúdo.   

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