sábado, 30 de setembro de 2017

Enquanto elas dormem

Ela dorme. Mas e quão profundo será esse sono? Vou chegando próximo à cama com passos macios, invejando os caminhar dos gatos. Pego a cadeira com cuidado, muito cuidado, a ergo do chão, trago para lado da cama, volto a baixá-la com o temor de quem coloca a última peça no topo do castelo de cartas. Sento-me em etapas, parando a cada microrrangido do chão, da cadeira, a cada farfalhar do tecido das minhas roupas; torço para que a lentidão dos movimentos vença a batalha contra qualquer barulho, o menor que seja. Estico a mão até o abajur, mas antes preciso desviar do copo de água; viro a lâmpada na direção da parede para abafar a luz, e é com crescente medo que vou pressionando o interruptor, temeroso de um tec por demais escandaloso. Tec, estala o interruptor. Prendo a respiração num minúsculo e tenso suspense: um, dois, três, quatro, cinco segundos... Não, ela não acordou com o tec e nem com a luz. E é assim que agora, na penumbra do quarto, posso assisti-la; com um sorriso bobo repuxando meus lábios, eu posso finalmente assisti-la. E como isso me faz bem.  


Completamente descoberta, posso vê-la por inteiro, uma paisagem emoldurada pela cama. A madrugada é quente, a janela aberta pouco ajuda, e por isso ela se esparrama toda sobre os lençóis. Está deitada de lado, rosto meio chafurdado no travesseiro. Os braços abrem-se como se fizessem uma mímica da boca de um jacaré, talvez do Bicho-papão. As pernas, igualmente afastadas, são o Papa-léguas no exato instante em que percebe o precipício e ainda não caiu.  Meu temor predileto, meu desenho favorito. 

A calma me invade numa onda avassaladora, o mais tranquilo dos tsunamis. Descubro que é assim que mais gosto dela: envolta na tranquila mística do sono. Ela respira a falsa eternidade, contrai minimamente o peito, ressoa pelos lábios timidamente abertos um tímido chiado. Que sonhos embalam esse sonho? Ela dormindo é suavidade, é leveza, é uma nuvem letárgica num dia fresco, azul e sem vento. Tudo isso eu sou também, aqui, ao lado dela. 

Meu desejo cresce. Mas desejo de quê? Reparo em seu pijama branco, macio, velho, um toque de infância misturado à tarde de domingo comendo pipoca. E meu desejo cresce. Noto os seios desenhados contra a etérea camisa; assisto às pernas orgulhosas saindo do breve shorts; diviso a trilha de três pintinhas muito ousadas que vão explorando o além-sul do umbigo. Meu desejo cresce, mas não, não é envolto em carne e prazer. É outra coisa, uma coisa funda, emaranhada, que vem puxando lá de dentro uma tranqueira que nem sabia existir; e é também essa coisa boba, adolescente, de borboletas batendo suas asas e desencadeando tufões aqui, bem aqui na minha barriga. Esse desejo me põe ao lado dela, inevitavelmente ao lado dela, ainda calmo, mas tão desejante. Mas, desejo de quê? Às vezes eu quase, tão quase, descubro, mas no fim é sempre nunca. 

Deixo estar. Ignoro seios, pernas, pintas, dúvidas. Permito o momento me invadir mais, sempre mais, e só o momento. E olho para aquele rosto posto sobre o travesseiro e enfeitado por uma dengosa mecha de cabelos. Então, ideia louca: e se eu lhe tirasse a mecha dali? Assim, um leve roçar de dedos, não mais do que a sutil carícia que as abelhas fazem às flores. Mas a ideia é louca e logo sucumbe ao medo de acordar a flor, ou de perceber, pasmado, a carne por trás daquela mística. Mas outras ideias, ainda mais loucas, começam a se animar: e se eu, ao invés de tirar a mecha, me tornasse a mecha? Ou me tornasse o travesseiro? Ou me tornasse um com ela, minha dorminhoca, e dormisse nela, e provasse daquela serenidade in natura? E se eu me diluísse no aroma daquele quarto encantado? E se eu fosse o ar que ela respira, e expira, respira, e expira...

Susto. Ela abre os olhos. Eles se arregalam numa fração de segundo e vejo-me refletido neles. E vejo-me pintado na cor do medo, do medo de sempre, do tipo animalesco e profundo. Uma mão rápida e pesada sufoca o grito ainda na garganta. Outra mão, a gêmea mais perversa e já bem ensaiada em suas diabruras, crava a lâmina na carne, que salta em espasmos desesperados. Crava uma, duas, três, quatro vezes. O som macio e molhado silencia o quarto. Apaga-se a trilha das ousadas pintinhas ao sul do umbigo, tomada que foi por um inesperado véu, uma cortina espessa e jorrando aos borbulhos. 

Ela voltou a dormir, já sem espasmos. Vejo, não sem tristeza, o vermelho no pijama branco e sinto que essa é a maior prova da realidade. Essa realidade úmida e quente que parece me subir pelas mãos, de novo. O encanto se parte e a magia vai se desprendendo da penteadeira, dos livros, duma inesperada coleção de vinis, das caixinhas recheadas de bijuterias, dum esquecido bichinho de pelúcia sobre o armário. Fracasso, sujeira, repetição, o vazio que torna a aumentar. Confuso. Desejo. De quê? No fim é sempre nunca. Confuso. Quase desesperado. Enquanto pulo pela janela, torço para que da próxima vez dê certo, que da próxima eu finalmente descubra.

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