De canto de olho, quase automaticamente, notei os dois quando chegaram atrás de mim. Um cara e uma garota, cada um com no máximo seus vinte anos. A primeira impressão foi de que eram um casal, algo entre namorados e ficantes. Que nada.
O tal cara tinha todos os trejeitos na fala, bem como a linguagem corporal mais estereotipada possível daquilo que nossa sociedade moderna chama de um cara gay. Entendi então serem só amigos. Ou amigas, sabe-se lá.
A minha vez no caixa do supermercado ainda ia longe e, sendo assim, meu ouvido ficou a mercê da conversa dos dois – era a conversa ou a irritante música ambiente no melhor estilo música-de-elevador só interrompida para anunciar a cenoura por 49 centavos o quilo e algumas outras promoções.
A garota falava de um pedaço de tecido azul, algo que ela tanto precisava para sua fantasia. Para uma festa decerto. E ela precisava com urgência, tanta urgência que até transferia sua agonia para uma ênfase descabida nas silabas tônicas das palavras desesperada, preciso e urgente. Mas isso era só a primeira marcha; logo ela engatou a segunda.
Contou que foi na loja da rua X onde a vendedora fez pouco caso e disse que não trabalhava com aquele tipo de tecido. Daí, na loja da rua Y, em frente a loja da Bruna – sabe a Bruna, né? -, a vendedora trouxe tudo quanto era tecido, de tudo quanto era cor azul, mas nada do tecido azul que queria. Ai, que ódio! Foi uma hora inteira só nessa loja.
E engatou a terceira.
Explicou ter ficado muito nervosa, já estava para desistir de achar o tecido por aqui. Já planejava ir até Maringá, talvez Londrina, para ver se lá achava o tipo de tecido. Porque cidade pequena é um inferno, não se acha nada, detesta esse provincianismo, é mais fácil comprar no Mercado Livre do que comprar nesse fim de mundo. E quando estava voltando para casa, menino, quem me liga? A Ju. E sabe as sandálias que eu tinha te falado? Ela contou que chegaram um modelos lindíssimos lá na loja A! Eu estava louca há tempos atrás delas.
Isso foi a quarta marcha engatando.
A garota falou então que bateu perna até a loja A, mas ficou decepcionada pois não tinha o modelo que queria e por isso jurou vingança contra a Ju. Essa sacana me paga. Mas como a loja B era pertinho, foi até lá ver se não encontrava, por acaso, a sandália desejada. Encontrou nada. Reclamou de andar meio mundo, depois reclamou também do calor, do sol e do suor que a melou inteira; esforço à toa.
E se a coisa parecia morrer aí, a garota contou que viu na rua o Marcelo com a Camila. Quinta marcha no osso, alta velocidade.
Porque os dois tinham se separado com briga e tudo. O cretino havia traído ela com a melhor amiga, e ela, como troco, ficou com uns tipinhos aí que eu nem comento. E agora estão juntos, de beijinho pra lá e pra cá? Me poupe. Porque se fosse comigo eu não voltava atrás, nunca ia me sujeitar a isso. Eu? Nunquinha. Homem assim pra mim não cola. E depois, ainda por cima, sair agarrando qualquer um só para fazer dor de cotovelo no Marcelo, e daí voltar com ele? Ah, tenha santa paciência!
Enquanto a garota narrava sua homérica jornada consumista, o amigo gay se limitava tão somente a pronunciar uns Jura?, ou então Nossa!, ou, para entrar no clima da narrativa, um ou outro Não creio! Isso me fez pensar que na cabeça de algumas mulheres o que separa um amigo gay atencioso 'que te dá ouvidos' de um namorado grosso que 'não te ouve nunca', é uma tênue linha, tão somente uma linha; algo simples como a entonação de voz, pois ambos usam das mesmas palavras.
Pensei ainda, com muita empatia, a respeito da potencial aflição daquele cara. Além de ter de encarar todo dia o machismo estúpido institucionalizado, ainda tem de aguentar aquele tipo de amiga que acha que ser gay é ter de emprestar o ouvido para tudo quanto é coisa. Tudo no mesmo pacote, colado e inseparável. Gay como sinônimo de platéia para um monólogo sem fim.
Se o cachorro do cara tivesse sido atropelado; se seu pai tivesse tido, há pouco, um enfarte; se sua mãe morresse atropelada junto do cachorro; ou podia ser que ele mesmo,o cara, acabasse de descobrir um câncer fatal; nada disso faria diferença nenhuma, nada lhe daria o direito de ser aquele que fala. Parece que a garota ia continuar falando de tecidos, sandálias e traições, se segurando para não atropelar as palavras, mas tão rápido quanto podia para poder, afinal, falar mais e mais.
E ela poderia ter resumido a história em poucas frases.
Fui atrás de um tecido azul para minha fantasia, não achei nada. Aproveitei e procurei aquelas sandálias de que tinha te falado, mas também não achei. De quebra vi o Marcelo e a Camila na rua; acredita que eles voltaram?
Pronto, simples e conciso.
Sei lá. Vai ver ser gay é ter uma paciência louvável, ou mesmo um interesse legítimo em ouvir essas coisas extensas e, digamos assim, descartáveis. Mas que dá pena, ah, isso dá. Pois enquanto eu estive na fila do caixa, e eles ali atrás de mim, pude ouvir como a garota falava, expandindo seu ego até os tímpanos do amigo. E sem sequer diminuir ritmo ou perder a respiração – e nisso ela merece aplausos.
Como sempre acontece nas conversas roubadas, senti um ímpeto de virar para trás e puxar conversa com o gay. Perguntar do seu dia, do pai, da mãe, do cachorro dele. Talvez fingir ser um conhecido lá da já distante escola primária, fingir ser do IBGE, qualquer coisa, só para dar uma pausa aos seus ouvidos certamente cansados e deixar ele falar um pouco, desafogar suas histórias. Claro que me contive.
Bem, vai ver ainda que é por isso que algumas mulheres sonham tanto com um amigo gay, esse amigo que ouve, ouve e ouve, em recatado silêncio, e ainda sorri de volta para essas coisas que muita gente classificaria como bobagem. Ora, não custa poupar o ouvido do amigo gay.
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