segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Biblioteca e leitura: eu vou.


Por motivo das festas de fim de ano, a biblioteca pública de Campo Mourão está fechada. O que, confesso, é um tormento para mim, um concurseiro errante que fica agora sem lugar ou livros próprios ao estudo até que ela retorne a atender, lá pelo dia seis de janeiro.
Mas o tormento não é só por uma frustração de ordem prática e racional. É que eu adoro ler, seja o que for. E adoro, sobretudo, essa invenção chamada biblioteca. Tem algo naquele silêncio institucionalizado e perfumado de livros que me agrada enormemente. E tanto agrado me deixa incrédulo dianta da constatação que poucas são as pessoas em Campo Mourão que fazem da leitura, ou da visita à biblioteca, um hábito – e digo isso com a legitimidade de quem vai todo dia, quase o dia inteiro, achatar a bunda lá naquelas cadeiras. 
Uma pesquisa interessante mostra que esse desapego da leitura não é exclusivo daqui. Na verdade, os números indicam que a maioria das pessoas não usa bibliotecas, e também não tem na leitura a principal atividade em seu tempo livre – ela está em quarto lugar, bem distante da esmagadora liderança do 'assistir TV'. O curioso, ou não tanto assim, é que a mesma maioria reconhece que a leitura é positiva, reforçando aí a mais típica característica da espécie humana e sua consciência: o dizer/defender uma coisa enquanto faz/pratica outra inteiramente diversa.
Mas o que mais chamou minha atenção na pesquisa foram as associações feitas com a leitura. Sabedoria, conhecimento, desenvolvimento cultural, ou então um genérico 'algo importante', foram apontados. Já o significado dela que mais foi invocado foi o de constituir uma 'fonte de conhecimento para a vida'. Credo, quanta responsabildiade no ato de ler! Mais um pouco e a leitura apareceria quase ritualizada; deve-se lavar as mãos, jejuar e não pensar em nada mais quando se abre um livro.
Creio que essa seriedade exagerada sobre a leitura afasta os possíveis leitores e talvez tenha sua origem na forma com que as escolas tentam desenvolver o gosto da leitura. Folhear as páginas dum livro, duma revista ou do que quer que seja, não é necessariamente com o objetivo de tornar-se uma pessoa melhor e mais apta a esse mundo tresloucado. Pode ser, talvez, simplesmente uma prazerosa escapatória desse mundo tresloucado, uma brecha de paz e calmaria; e não há nada de errado em escapar assim. Deixemos o 'algo importante' da leitura para mais tarde, pois certamente ele virá e muito possivelmente nem será percebido.
Sobre o prazer também vale notar que poucos dizem encontrá-lo enquanto se lê um livro. E vale notar, sobretudo, que as crianças é que mais associam prazer e leitura. E são elas ainda que mais leem em nosso país – mas vão deixando de ler enquanto crescem. Há aí mais um dos perversos atrofiamentos a que somos submetidos(e submetemos a outros, claro) conforme cruzamos as intrincadas malhas da vida social?
A biblioteca de Campo Mourão tem seus leitores frequentes. Uns atrás de jornais, outros atrás de revistas, e alguns atrás de livros. E eles saudavelmente batem carteirinha lá quase todo dia.  Mas constituem uma pequena fração de vencidos, pois o cenário habitual aqui é o mesmo de outras tantas bibliotecas: mesas vazias e livros(bons e reconhecidíssimos livros) que não raro datam seus poucos empréstimos em passadas e bem espaçadas datas.
 Esses dias atrá senti-me fazendo parte da história da cidade por emprestar um livro que foi pegado, pela primeira e última vez, em 1988, e imaginei que talvez só daqui a uns vinte anos um outro cidadão o pegue novamente, talvez sentindo a mesma sensação difusa de inedetismo que senti. Pois é, lamentável assim.


sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Pão com ovo


Eu, Curitiba, lanchonete da rodoviária, quase seis da manhã. Duas senhoras, já velhas e bem curitibanas, sentam na mesa vizinha à minha. E por bem curitibanas digo aquelas do rosto tipo eslavo, dos cabelos pintados num corte moderninho, e daquele jeito de vestir-se e mover-se bem aristocrático; lembram essas vilãs de novela que fazem o diabo para que seu filho não case com a moça pobre.

- E o que vamos pedir? - pergunta uma delas.
- Hum... - a outra corre o olhar pelo cardápio, coisa de um minuto. Que tal um pão com ovo, hein?

E seguem os risinhos. Risinhos cúmplices, deleitados numa tiração de sarro legítima. Tão legítima como sacanear o coitado do Charlie Brown. 
E eu, ouvindo, pergunto a mim mesmo: ué, o que há de errado no pão com ovo?
Eis o famigerado
Fiquei ali, recém chegado de viagem, sentado na lanchonete da rodoviária, assistindo ao amanhecer de Curitiba naquele céu escuro azul-acizentado, e filosofando: qual é o problema do pão com ovo?
Várias vezes ouvi piadas sobre. Não é de hoje nem dali. Da infância à adolescência, cruzando cidades e distâncias, testemunhei acusadores e acusados sob o mote do pão com ovo.

- Fulano come pão com ovo! - em coro durante o recreio.
- É mentira! Eu não como não!

A negativa era pronta, pessoal. Vinha lá de dentro, algo instintiva - apesar de aparentar que tanto o acusado como os acusadores não sabiam, assim como eu não sei, o que há de essencialmente errado em comer pão com ovo.
Mas parece pairar algo - o quê? - sobre um belo sanduíche à base de ovo e que o faz um prato cheio - céus, que trocadilho! - para os perversos bullings da vida.
Ora. Um pão com ovo é deveras nutritivo. O lanche fornece energia pronta e proteína de alta qualidade. E outras peculiaridades do ovo caem cada vez mais nas graças dos nutricionistas, que chegam até a recomendá-lo na base de uma unidade por dia - não é mais o vilão abominável das dietas e da boa saúde –, logo sua ingestão é salutar.
Então por que diabos o pão com ovo é tão estigmatizado?
Como tenho vestígios de científico e estou em uma fase de romper com paradigmas - veja, já comecei trocando a carteira do bolso traseiro direito para o traseiro esquerdo -, decidi por ser cobaia e chamei pela garçonete. Nas fuças das velhotas eslavas pedi em bom português:

- Quero um pão com ovo, sim?

As velhas de pronto me olharam, seríssimas. A essa altura já comiam misto quente, o lanche mais quadrado e normatizado de qualquer lanchonete, o oposto do incompreendido pão com ovo. E além do das velhas tive ainda a impressão que outros olhares de outros clientes pesavam sobre mim, o cara que pediu um pão com ovo ali, no centro de Curitiba, mal chegadas as seis horas da matina.
Então um súbito desconfiar lampejou em mim.

- Mas hein, esse pão com ovo é só ovo no pão, né?
- Sim... é só.

Bem, depois da garantia da garçonete (que não sei por que hesitou um tanto em sua resposta) eliminei a hipótese de que a má fama do lanche em questão daria-se por um acompanhamento extra porém intrínseco – quem sabe alho, quem sabe cebola, outros injustiçados em termos de culinária. Então confirmei o pedido. Ele veio em instantes, e comi-o. Prazerosamente, aliás; do jeito que um cristão come carne vermelha em Sexta-Feira Santa: cada mordida era uma explosão de sabor pelo tabu quebrado.
E depois, enquanto me livrava dos incômodos resíduos da refeição que ficaram entre os dentes, a pergunta persistiu: o que há de errado no pão com ovo?
Nesse instante as velhinhas me olharam sorrateiramente, como se eu fosse persona non grata por estar ali, eu, o cara que comeu um pão com ovo e faz cara de quem gostou à beça - e agora causa mal estar geral em quem mais está no recinto.
Para afrontá-las quis intensificar essa cara de gosto. Mas como não tenho lá muita expressividade facial creio que as assustei mais do que impressionei - tanto foi que logo elas foram embora.
Deixa estar. Só não deixo estar a dúvida que permanece no ar, crudelíssima, beirando os anais dos grandes mistérios da humanidade: o que há de errado no pão com ovo?

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Mulheres e homens, as vítimas e os beneficiados

Há um discurso muito forte que diz que as mulheres são as vítimas de nossa sociedade machista enquanto que os homens, dominantes e no topo dessa sociedade, seriam os beneficiados. E o discurso é simples assim, à base do 8 ou 80. Vítimas e Beneficiados, só.
Recentemente li em um artigo a seguinte metáfora em muito consoante com esse discurso: a igualdade entre homens e mulheres pode ser pensada como uma torta de oito pedaços, da qual os homens detêm sete e as mulheres apenas um dos pedaços – e que dar mais para um é necessariamente tirar um pedaço do outro.
Bem, uma olhadela por cima já é o suficiente para desconfiar dessa simplicidade toda. Funciona mesmo assim? Na legítima militância feminina, não tenha dúvidas; na teoria, quem sabe; na prática, bem, certamente que não.


Sou homem e o resto é meu! Será?
Para me resguardar da alcunha de reacionário, explico que tenho consciência da desigualdade entre os gêneros e sou completamente contrário a ela. Mas como tudo que é humano e social e terreno, deve ser muito bem pontuada para captar suas dinâmicas. Ainda mais se se pretende uma abordagem mais real e menos extremista.
Voltando então às vitimas e aos beneficiados, e através de um exemplo corriqueiro.

Aqui em minha cidade não temos semáforos. O que não é problema algum para os carros, que gozam das placas de preferencial. O problema fica para os pedestres. Esses, nos horários de pico, só atravessam a rua se os motoristas respeitarem a faixa de pedestres. E anualmente a polícia daqui obriga o exercício dessa gentileza sob pena de multas. Mas é claro que esse exercícios tem pouca durabilidade e daí sua necessária repetição anual.
Então, lá estava eu esperando para atravessar a rua. Meio-dia, pessoas indo para suas casas ou para restaurantes, todos atrás de comida. Esfomeados e com algo de stress. E eu querendo atravessar a rua. E ninguém parava, claro. Eis que surge, do outro lado da rua que eu pretendia cruzar, uma atendente de farmácia – seu uniforme denunciava.
Era do tipo baixinha, com rosto de boneca, e longos cabelos castanho-claro. Aqueles olhinhos brilhantes e a boca viva chamavam a atenção. E quanto a outros detalhes, bem, digamos que apesar de baixinha se enquadrava harmonicamente dentro dos parâmetros de beleza de nossa sociedade esteticista.
Quem acha que eu só consegui atravessar quando ela atravessou, acertou em cheio. Os motoristas, tão logo a notaram, puserem o pé no freio e até descolaram a mão do volante fazendo aquele sinalzinho do 'pode ir, meu bem'. E ela? Até sorriu. Sorriso de triunfo, suponho. Na certa gozando também da minha cara pasma, barbuda e profundamente desapontada com a ordem social das coisas, ali do outro lado da rua.

Sem mulher é bem mais difícil
E não é de hoje que cenas assim se repetem. Já estou até pegando o jeito. Antes de atravessar a rua me aproximo de alguma mulher bonita qualquer. Às vezes, isso assusta – a mulher bonita, claro. Mas é eficiente.

O exemplo é bobo todavia extremamente representativo do que pretendo dizer. A desigualdade de gêneros é algo difícil de resumir a tortas e seus pedaços. É mais como um jogo (ainda)inevitável onde há quem saiba jogar de ambos os lados. Daí que se as mulheres sabem, elas podem conseguir vantagens, ao passo que se os homens não souberem, eles é que vão pagar alguns patos. E tanto situações cômicas quanto trágicas revelam isso, para lá ou para cá.
E nem esses benefícios são fixos ou absolutos, nem totalmente compensadores. A questão é muito mais intrincada e fluida. Exige decomposições em camadas, pede por análises mais atentas aos detalhes e, por que não, à subjetividade dos sujeitos.
Seja como for, fica um ensinamento para o manual de sobrevivência em centros urbanos médios: atravesse a rua somente ao lado de uma mulher que garanta que os carros vão de fato dar passagem. Sua saúde agradece.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Dia Mundial do Rock: legendas, amigos e música.

Que o bom senso me livre das divagações filosóficas vazias e das generalizações sociológicas tortas, mas digo que as pessoas não mudam, o que muda são os rótulos que colocamos nelas. As legendas, digamos as traduções. Coisinhas recortadas, fragmentadas, várias, um tanto transitórias, não-fixas - e por aí vai, pós-modernidade afora – que nos trazem alguém à memória. 

Hoje você acorda, acontece algo significante, e subitamente está atualizando todas as legendas. Upgrade realizado aos poucos.

Anteontem(13) acordei, era Dia Mundial do Rock, e as legendas começaram a coçar-se aqui por debaixo, doidinhas para sair.

Meus irmãos são Ultraje a Rigor e Guns N'Roses. Mas também um bom tanto de Raul Seixas, que não foram poucas as fitas do rockeiro baiano estragadas de tanto serem usadas – e lá se vai outra fita cassete...

Elvis vem denunciando minha mãe. Era um ritual seu escutar o Rei: o vinil sob a agulha fazendo ecoar pela casa inteira aquele vozeirão carregado.

Uma fita velha e gasta, batida a coitinhadinha, surgiu um dia no porta-luvas do carro: Bee Gees. Pertencia a meu pai e ao lendário tempo que não vivi, quando ele dirigia um Opala alaranjado-queimado e tinha os cabelos batendo no ombro.

Já na escola, estudei com uma garota alucinada, enérgica; às vezes, difícil de acompanhar. Simpática, claro, mas seus adjetivos pediam certos eufemismos... E ela vivia falando dum tal Eduardo duma tal música duma tal banda chamada Legião Urbana. E vivia apaixonada a priori por todo e qualquer cidadão chamado Eduardo. E eu vivia com inveja por não ter o nome de Eduardo. Ela se mudou, a inveja se foi, mas Legião Urbana ficou.

Poucos anos depois, num arrebatamento que só tem lugar na confusa pré-adolescência, caí de amores por uma garota. Parecia tímida, recatada, toda cuidados atrás de seus óculos e cabelos sempre presos. Até que ela lançou pra mim os estridentes refrões da Cássia Eller. A Cássia morreu, a garota casou, mas os refrões... bem, o clichê está subentendido.

Mas conheci uns caras que também ganham agora uma legenda do rock.

Ensino Médio é aquele tempo da tua vida que a tua vida toda tende a já desenhar-se imutavelmente. E o desenho aconteceu com Blink 182, Foo Fighters, Franz Ferdinand e The Killers, som devidamente apresentado em tardes de tererê, madrugadões com War, e manhãs de suposto estudo - éramos nerds e não pegávamos ninguém, mas geralmente felizes, eu diria.  

Na faculdade, em uma emblemática crise existencial típica de quem abriu uns livros errados em um curso duvidoso, olho para o lado durante a aula e peço ao amigo de faculdade: ei, mê manda uma lista de músicas deprês? Fossa que é fossa só é boa com trilha sonora, claro. E o cara era músico. Guitarrista com banda e tudo. Devia ter boas sugestões. Mandou-me uma lista. Busquei toda ela. Não serei falso para dizer que gostei de tudo, mas sou meloso o suficiente para dizer que Eric Clapton confunde-se desde então com o nome desse amigo agora já não mais delimitado à faculdade.

Houve ainda outras garotas, outros caras, outros familiares. Tantas bandas. Mais histórias, mais despedidas - pois todo início pede um fim. E foram tantos, mesmo nesses parcos 24 anos de vida. Tantos rocks... O disco gira e a agulha vai dum lado para outro, incansável. 

As pessoas não mudam, o que muda são as legendas que damos a elas. E nesse Dia Mundial do Rock consegui perceber que houve quem passou pela minha vida e deixou um tantinho de rock lá; legendas ricas, rótulos gostosos de se procurar.

Um presente desses que a gente curte com o passar dos anos, sempre e sempre, ao alcance do play.

domingo, 3 de julho de 2011

Russa má, vilã de filmes anos 80

Ela parece mulher de filme. Filme americano, de ação dos anos 80. Tem cara de soviética má, vilã. Comunista que come criancinhas e atira no mocinho. E sem perder o cigarro da boca ou o preto do lápis reforçandos os olhos. Fria e sanguinária. Mulher de filme. Mas isso não é um filme, é uma noite de sexta-feira, num bar, onde uns caras tocam rock no palco. E ela dança.

Dança como nunca dancei nem poderia. Desvairada, desviada de tudo. Não tem razão seu frenesi, não encontro. Mas tem ritmo e sexo. Olho, olho, olho, caio fascinado. É o estranho. Exótico dançando a minha frente. O absoluto desconhecido que atiça a imaginação. Fantasias rasgam meu desejo. Fogo em palha, esfumaçado e quente. Eu olho, ela dança, os caras no palco cantam. Já não sei de mim.

E nem deveria olhar. Olho por quê? É noite, é final de semana, ela bebe, eu também, e isso não diz nada, não conta. Nunca vou falar com ela nem ela comigo. Não é do tipo que vai no cinema e consegue aturar o papo cacete de caras como eu. Não é do tipo loirinha boba que estuda Direito com tipos como eu, e que só quer saber de churras e do cabelo para ir no churras. Não. Tem o cabelo preto, chanel revolto e liso. Descontrolado. Preto como o lápis em torno dos olhos. Olhos que olho e caio fascinado. Eu sei, repito-me na exata repetição de sua dança sem fastio. Cabelos pretos. Suados, desgrenhados. Dá para imaginar ela comigo?

Meu cabelo arrumadinho com mousse e dedos precisos. Rosto escanhoado, lisamente civilizado. Perfume empacotado dum Banderas, Bloom, Clooney, ou outro figurão desses. Esse sou eu. Meu eu que não é o dela. E nós juntos? Que piada! E essa minha camisa com a gola por fora do moletom? Rala meu pescoço e faço que nada sinto. Gola vermelha constrastando com o branco do moletom-presente-de-aniversário. Branco contra o vermelho altivo. Altivo, decidido, conquistador, a tua cara, disse-me a vendedora da loja toda dada pro meu lado. Contei o episódio pros caras e riram da piada que nascemos prontos para entender. Mas ela, a russa, a gente não entende. Eu não entendo, e bem queria. Ela dança sem cansar, escapa de mim.

Acende um cigarro. Soviética assassina que fuma LuckyStrike. Vira a cerveja. Virada brusca. Juro que vi a cerveja escorrer pelo canto da boca sedenta. Eu vi? Se há batom ali, ela tá dizendo um dane-se para ele. Bebe sem pudor, sem a frescura das minhas garotas que bebem evitando qualquer associação obscena. É boca na garrafa, sem rodeios. A garganta regada e sorriso maroto. Assumido. Eu com ela... piada. Eu que sou todo cuidados em beber para não ter ressaca. E a roupa preta – cabelo preto, lápis preto nos olhos, camisa preta, saia preta, bota preta, o preto reina sobre ela. Ela tende à sombra e eu cá de branco com essa maldita gola vermelha que já me dá vergonha. Se pudesse tiraria. Essa minha roupa toda eu tiraria só de olhar para ela, minha comunista cruel, tudo na tentativa de ser aceito. Essa gola já sufoca e eu sei que é meu futuro terno. Um dia vem o terno e a gravata. Pra isso estudo. O cara que usa sempre o mesmo terno com o mesmo sorriso trouxa aprendido anos a fio em churras, cinemas de papo mole, e perfume caro que um bonitão qualquer me convenceu a usar. Esse sou eu: terno e sorriso trouxa. Pra isso é que fui parido e chorei. E ela não é isso.

Ela bebe a valer e pouco dá por mim. Posso olhar mais, sempre mais. Displicente como colegial. Disseco sua existência nesse bar esfumaçado. Ela tende à sombra e a invejo por isso, a desejo. Olho e não consigo entender. Como desejo o que não posso entender? E quando foi que escolhi não ser como ela? Em que dia tirei isso do meu eu? Já não me entendo também. Esse é o problema, não entendo ou lembro, nada. A coisa foi natural. E agora estou aqui, eu e meus grandes amigos, eles e suas grandes namoradas. Nós, os pequenos príncipes que podem ir onde quiser desde que não amassem o carro do papai. Podemos até estar nessa espelunca só por gostar de uma ou outra música dos caras no palco. Nós: palavrinha chata que me põe no meio do que de repente me dá vergonha. Ela, a garota, a russa, russa de incomuns cabelos pretos, sanguinolenta e sombria; dela vem essa torrente inexplicável que me desagrada e me envergonha. Vergonha de cobiçar cada gesto, seu ar, vergonha de me perder nas fissuras daquilo que ela me desperta.

Ela não liga, nem que soubesse ligaria. Ela bebe mais. Não para de beber. Já contei cinco cervejas. É que não paro de olhar. Fixo. Hipnotizou-me. O cigarro já morreu e renasceu uma porção de vezes em sua boca, e esses eu não consegui contar. Fumei um tempo, mas parei quando começaram os estágios. Para os estágios até o amarelo dos dentes ferram com a gente. Não tem como esconder que é fumante... Que vontade dum cigarro a plenos pulmões! Beber ainda bebo, mas não daquele tanto. Amanhã à tarde tem futebol, domingo churras – essa constante em minha vida, eterna lei dos meus domingos -, e segunda-feira é outra semana de academia. Não posso beber muito numa sexta à noite, é quebrar o encadeado. Eu, meu terno, o sorriso frouxo e o pacote de vida que me obriguei a comprar: o encadeado. O clareamento dental, nada de refrigerantes, a conversa sacal no vestiário: o encadeado. Minha legenda. De repente quero fugir disso. E poderia. Poderia?

Chega, não dá mais. Preciso sair daqui. A gola, a fumaça, o refrão, a russa, qualquer coisa me aperta. Sufoco. Preciso dum ar, digo pros caras. Fazem piada, Seu fresco. Visto a cara de mau, uma de tantas outras, é minha cara de contrariado e meus amigos sabem. Foi treinada desde os meus cinco anos quando ganhei um Mega Drive enquanto queria mesmo um Super Nintendo. Patético e só agora noto. Ainda assim a cara de mau fica, hábito irresistível. Mando eles à merda e saio em direção à porta. Surpresa. Ela me olha. Essa é a cena: a soviética e seus olhos contornados de preto que me olham. Qual a cor deles, dos olhos? Fico envergonhado sem saber o porquê e baixo o meu olhar. Não enfrento, fujo. E não consegui achar cor nenhuma. Merda. Ando depressa, sair, preciso sair. Olho para trás. Surpresa. Ela ainda me olha, olhar afiado feito punhal, destroça algo de mim. Sair. Rápido. Ar. Tropeço na porta, quase dou com a cara na calçada. Mas eu vi. Sei o que vi. Ela, assassina imperturbável, olhou e depois sorriu. Para mim, ela sorriu para mim. Marota, perversa, cruel. Vilã de filme americano anos 80 escrachado, comunista má que se diverte com a desgraça desses porcos capitalistas. Sorriu triunfante. Sorriu do presságio. Sorriu da comédia que o mocinho encarna.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Você já teve um cão amarelo?

Uma das ranzinzices que permito a minha ignorância literária é a de rejeitar os best-sellers. Pelo menos os best-sellers de agora, do presente, como aqueles que saem nas atuais listas semanais dos mais lidos e vendidos
 
Mas já fiz algumas tentativas em direção contrária. Na época do boom tolkieniano motivado pela trilogia cinematográfica, tentei Senhor dos Anéis. Não deu. Aliás, antes ainda, quando era novidade, tentei Harry Potter. Não deu também. O Código Da Vinci parei nos primeiros capítulos. A Cabana nem sei porque diabos tive a ideia insana de tentar. 
 
Aí que até hoje só consegui terminar dois best-sellers. Um foi 1808, e que o vestibular me motivou a ler – jeitinho mais agradável de aprender a história do Brasil, dizem. E o segundo terminei esse final de semana, Marley & Eu (e detalhe que ambos lidos quando já não mais presentes na lista dos mais vendidos e lidos). 
 
Só fui atrás do segundo livro por causa do filme homônimo que, confesso, me ganhou. Chorei e tudo. Poxa, eu tive um cachorro amarelo. Sendo mais preciso, dois cães amarelos: um era vira-latas, outro um boxer. E os dois alternaram-se: o primeiro acompanhou minha infância até a pré-adolescência, e o segundo da adolescência até o momento em que saí de casa em busca dum diploma. Revezamento canino, perceba. O boxer até foi sacrificado, final clássico, batido e sempre traumático para os donos. Ele já estava cansado e debilitado por causa dum câncer na boca, típico da raça, e só restou aquela alternativa.
Por isso, não à toa, gostei do filme. Mas o livro...

Fui do início ao fim ameaçando largar. A escrita é bacana, estilo preciso e simples. História linear, de fácil digestão. A gente dá umas risadas descontraídas com as peripécias do Marley, e até admito que se fosse ter um cachorro hoje eu cogitaria ter um labrador. Mas a leitura foi forçada. 
Gosto de animais. Gosto de cães. Mas não esqueço nunca do que são: cães. E na minha cabeça existe um limite claro para a bajulação, para a personificação. Um limite também para a carência afetiva que este animal pode vir a suprir em uma vida humana. E o livro definitivamente extrapola ambos os limites – no filme, porém, é mais mascarado. Daí que não gostei. E tinha, claro, minha ranzinzice a priori contra best-sellers. 
 
Mas acabei levando o livro até o fim. E fiquei culpado com essa coisa de ter um cachorro amarelo. É tão filme norte-americano! Tão american way of life, tão aburguesado que até me envergonho de admitir que já tive dois cães parecidos. Vergonha maior ter usado de Marley & Eu como momento emocional catártico relativo ao Bidu – vira-latas mal-humorado mas fidelíssimo – e ao Max – boxer bobão, babão e infinitamente companheiro -, meus dois cães amarelos.

Ops, melhor parar. Estou por pouco. Mais alguns adjetivos e eu extrapolo também aqueles limites. Antes o fim abrupto do texto do que o fim de minha coerência!

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Sobre a virtude

Onze horas da noite. A rua vazia e fria. Calçadas úmidas, árvores pingando desoladamente ao vento, resquícios da chuva de pouco tempo atrás. E eu ali testemunhando a derrota evidente da parca iluminação-pública-alaranjada frente à escuridão da noite avançada e sem estrelas.

Na rua eu ia divagando. Com meu guarda-chuva marcava o ritmo dos meus passos. É um tique nervoso que eu tenho tão logo um guarda-chuvas me caia em mãos (sorte que até hoje só caíram guarda-chuvas grandes o suficiente para ir batendo no chão com sua ponta metálica).

Eu ia pensando na vida de meu umbigo como imagino que façam todas aquelas pessoas que, como eu, voltam para a casa a pé. Ia pensando e batendo o guarda-chuva no chão. Um, dois, tec. Um, dois, tec. Um, dois, tec. E assim neurose afora.

Até que dou pela existência de uma garota poucos metros a minha frente. Na rua escura e encharcada éramos os únicos. Às vezes um carro, mas raros. No mais, só eu e ela.

E noto que ela está perturbada com algo. Olha insistentemente para trás. Mas, oras, sou eu que sou esse atrás.

Ela olha e se encolhe. Olha e puxa a bolsa para perto de si. Olha e aperta o passo. Olha e vasculha ao redor como quem diz não tem ninguém mais por aqui?. Não, não tem. Apenas nós.

Então imagino o quão assustador deve ser para uma garota sozinha na rua, naquela rua naquelas condições, estar sendo 'seguida' por um cara envolto pelas sombras e que vem, imperturbável, com aquele irritante tec-tec do guarda-chuva.

Fico sensibilizado, paro com a bateção. Até diminuo a pressa de meus passos na tentativa de deixar claro que eu não intentava nada contra a garota. Ia inclusive trocar de calçada – sim, já estavamos perto o suficiente para dividir uma calçada – quando a garota dobrou, ainda apressada e pendurada em sua bolsa, a esquina próxima.

Não sou cristão mas senti-me enquanto tal. Regozijei-me em minha virtude que não pede público para dar as caras...

Quase sete horas da noite de outra noite. Noite fria de céu limpo e estrelado. Horizonte ainda pintado de cores inimitáveis.

O auê na rua está armado. Carros e ônibus e bicicletas na disputa por espaço nas vias. Nas calçadas os pedestres deixam de ser categoria genérica para dividirem-se em partículas urbanas cada uma mais atarefada do que a outra. Chegar, chegar, chegar, todos bufam em sua pressa, seja para casa, trabalho, faculdade ou sabe-se lá o que.

Eu também. Chegar, chegar, chegar. Aula de Português, aula de revisão para a prova de amanhã. Chegar, chegar, chegar.

Mesmo com pressa meus olhos ainda notam, ao longe, lá na próxima esquina, algo no chão. Nessa hora o clichê pesou: parecia lixo, mas era um homem. Já de longe via-se, apesar da possível confusão.

Homem deitado. Imóvel na calçada. E fazia frio, frio de doer as mãos e de deixar o nariz vermelho. E o homem esparramado no chão. E todo mundo passando por ele. E eu passando por ele. E ninguém parando pra ele.

Eu podia justificar com um argumento a minha decisão. Racionalizar a razão da minha não parada. Podia dizer que ele não parecia estar passando mal. Mas, bem, ele parecia estar sentindo-se bem? O que parecia era o que ele era: um homem estendido na calçada. E fazendo um frio ferrado.

E as pessoas passando sem querer notar. Desviando do corpo dele e dos olhares dos outros que também o ignoram: não sei por quê vocês estão me encarando, o quê vocês esperam que eu faça? Encaram e projetam sua própria culpa. Quem ignora espera que o outro, qualquer outro, des-ignore o homem-deitado ignorado, reestabelencedo assim a paz dentro da consciência coletiva.

O que não acontece, claro. Chegar, chegar, chegar. 

E nem me surpreendi, nem comigo nem com os outros – e isso deveria assustar, mas já não assusta, senão seria hipocrisia. Já não é a primeira vez. Estou(amos) sempre funcionando no chegar, chegar, chegar. Cristão ou não, chegar, chegar, chegar.

E nem sempre a rua é escura, e estão lá só você e seu caminho para a virtuosidade... A virtude, às vezes, é indolente.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Me devolve!

(Aproveitando o Dia dos Namorados, um conto antigo meio que reciclado) 
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   Junior tentava convencer Carol, mas estava difícil. Irredutível como nunca, ela só fazia dizer não.



- Poxa, Carol! Me devolva, né? Por favor...
- Não.
- Mas ele é meu! Sempre foi!
- Não, já disse que não, e nem adianta insistir.

   O fato: ele era mesmo de Junior. Observação: foi dele só até aquela noite em que conheceu Carol e o mundo explodiu em estrelas coloridas e adocicadas; desde então passou a ser dela e somente dela. E mesmo com o fim do namoro já há três meses.

-Tá me fazendo uma falta danada e sabe-se lá o que vai ser de mim se eu não tiver ele de volta.
- Quase fico com dó.
- E... e... sabe quanta gente morre, todo ano, por coisas assim? Hein? Você sabe? Isso mata, Carol, mata!
- Problema de quem? Meu é que não é – disse Carol cruzando os braços, empinando o nariz, virando para o outro lado.
- Caramba, que foi que eu te fiz? Te dei ele com tanto carinho e agora...
- Carinho o escambau! – interrompe incisivamente Carol. Aliás, com quantas antes de mim você foi ter essa conversa? Para quantas você pediu antes de vir pedir a mim?

   A resposta que Junior daria, supondo ser verdadeira, obviamente não agradaria Carol, que ocupava uma incômoda quinta posição. Mas a culpa não era dele. Que culpa tinha se era homem e homem nunca acerta essas coisas de primeira? E, afinal, antes quinta do que sexta, sétima...

- Veja bem, Carol, isso não é importante. O que importa é...
- Importa sim! – interrompe de novo. Ô se importa! Vamos, pra quantas!?
- Apenas o número necessário para perceber que só você é que poderia me dar o que eu quero, como tudo o mais em nosso namoro, uma história tão linda enquanto durou - arriscou o rapaz.
- Ih! Pode parar com essa ladainha que ela não cola mais. Já foi o tempo. Vamos lá, responda. Quantas? Aposto, ah, se eu aposto! que procurou a Ritinha bem antes de mim, não foi?

   Outra pergunta que, respondida com sinceridade, não agradaria Carol – e o dedo em riste, colado no nariz de seu ex-namorado, dizia isso com toda a veemência.
   Ritinha era a vizinha de Junior e apareceu em sua vida um tantinho de nada antes de Carol. E de visita em visita, fosse por lâmpadas a serem trocadas ou xícaras de açúcar emprestadas, Junior acabou tendo um affair com Ritinha. E jurava ter acabado tudo depois de ter conhecido Carol. O que não impediu Junior, um solícito e prestativo vizinho, de ainda trocar lâmpadas e ceder tantas outras xícaras de açúcar – na certa Ritinha estava trocando todas as lâmpadas de sua fábrica de doces, era o que sugeriam as ácidas amigas de Carol.
   E infelizmente, numa dessas escolhas irremediavelmente equivocadas, Junior tinha mesmo procurado Ritinha antes de procurar Carol.

- Responde, Junior! Procurou ela primeiro?
- Olha, ela é minha vizinha, então achei que pela proximidade eu poderia...
- Idiota! Procurou aquela oferecida antes de mim. De mim!
- Calma, Carol. Foi um erro, tá? O que ela tinha não me interessa. Não é aquilo que é meu e que só você tem.
- Interessante. E o que teu que ela tinha então, senhor Junior?

   Imediatamente Junior arrependeu-se da brecha que dera. Assumir que a outra tinha mesmo algo dele? Coisa de juvenil, censurou-se. E agora vinham as consequências. O senhor empregado antes do nome só podia significar um elevado grau de sarcasmo , com cobertura de ironia, algo que Junior aprendeu a temer havia tempo. Além do que, era a terceira pergunta que se respondida com sinceridade provavelmente não agradaria Carol – pobre rapaz! Mesmo assim a sorte foi tentada.

- Bem, primeiro acho melhor a gente deixar claro que sou homem. Portanto, às vezes, só às vezes, não consigo me controlar muito bem. Mas não é por maldade! É só por um tipo de fraqueza, entende? Algo que não corresponde ao que eu realmente sinto.
- Não, não entendo – diz Carol secamente. O que é que ela tinha de você?
- Meus olhos, mas só um pouquinho.
- Cretino! Cachorro! Eu sempre soube que você ficava de olho nela. E mesmo estando comigo! Seu safado!

   Aquela homérica empreitada já estava cansando Junior. Revivendo um orgulho que aos poucos descabava para a extinção, só restou então elevar o tom de voz e fazer valer de seu apelido 'Junão' cunhado pela rapaziada do futebol.

- Quer saber, Carol? Isso não vem ao caso e tô de saco cheio! O que importa é que você tem meu coração e eu preciso dele de volta.
- Ué, e por quê? Vai dar ele para a Ritinha? - cinismo já em nível tóxico.
- Claro que não!
- Então deixa ele aqui comigo. Vai estar bem guardado. Melhor aqui do que com uma sirigaita qualquer.

   Realmente, admitiu Junior em silêncio. Melhor com Carol do que com essas outras que arranjava por aí. Mas estava sentido falta do seu coração, e como sentia. Já eram três meses sem ele e podia mesmo ser seguro deixá-lo com sua ex-namorada, claro. Entretanto, parecia tão mais promissora a possibilidade de lançá-lo a uma ou outra garota! Existe chance de acertar, e sempre goza-se da excitação em apostar sem ver as cartas em quais se aposta. Junior lera em algum lugar que amor é como um jogo que no fim ninguém ganha e tomou isso como sua filosofia. Ora bolas, a graça toda está em jogar. E como jogaria sem um coração? Impossível!

- Sejamos racionais. Namoramos e foi legal, muito mesmo. Só que não deu certo. Você mesma me disse isso um dia! Lembra? Então, me devolve o que é meu.
- Não. Namorar contigo não dava certo, mas isso não quer dizer que eu não goste de ficar com o seu coração.
- Mas você já tem vários aí contigo! Pensa que eu não sei? O do Marcelo, do Cássio, até do Heitor, isso sem falar daqueles que eu nem conheço o dono. Então por que diabos você quer o meu?
- A gente nunca sabe o dia de amanhã, meu bem.
- Ah! Bem sei o uso que você faz dele e de todos os outros. É só para esnobar suas amigas com uma coleção de corações maior que a coleção delas, né!?

   Aos sábados era tradicional o encontro de Carol com suas amigas. Todas traziam enormes sacos contendo os vários corações que extirparam de pobres coitados vida afora. Davam algumas risadas contando como conseguiram cada um deles e faziam julgamento que envolvia notas e adjetivos. Ora elegiam qual foi o mais fácil, o mais divertido, o maior desafio, etc. Coisas de mulher.

- Olha, Junior, quer saber? Também cansei. Pega isso de volta. Seu coração nunca foi muito bem cotado mesmo. Todo mundo sabe que é fácil-fácil conseguir ele, basta uma Ritinha da vida ou coisa do tipo.
- Verdade. Para você ter conseguido, só sendo fácil mesmo.
- Como é que é!?
- Nada, Carol, só uma brincadeira pelos velhos tempos! – a risada forçada quase convenceu. Vamos, me dá meu coração.
- Hunf. Toma esse treco aí. Mas já vou avisando, se eu pegar outra vez não devolvo mais.

   Todo orgulhoso, Junior olhou para seu coração em mãos e foi para casa.

   Finalmente era seu novamente. Colocou-o no peito e sentiu o deleite das batidas, uma por uma, até se acostumar com aquilo e matar a saudade. Mas, que diabos! Sentiu que algo não estava igual, não ia bem. Alguma coisa mudara e não sabia o que era.

   Com atenção e concentração, em um esforço que levou dias, percebeu que seu coração agora tinha uma grande marca, a cicatriz de uma incisão. E estranhamente Junior sentia que atrás dessa incisão havia um grande vazio, um irreparável oco, um buraco sem nada. Um espaço frio, desolado, que mesmo assim exercia uma grande pressão. Era o centro de uma força se alastrando, apertando, sufocando, oprimindo todo o peito de Junior.

   Atordoado ante aquela sensação, pensou que talvez fosse só questão de não estar adaptado. Tanto tempo sem ter o peito preenchido dá nessas coisas, não é? Contudo, passaram os dias e o vazio, sempre oco, continuava ali, incomodando, doendo, sempre em expansão.

   Revoltado, com uma injúria tremenda, foi atrás de Carol. Queria uma reparação. Feito senhorio lesado, exigia a casa devolvida em perfeitas condições, exatamente como fora acertado no contrato de locação, com tudo dentro, com todas as paredes em pé. O coração não podia voltar assim, defeituoso, sendo que era são e perfeito quando foi para as mãos de Carol. Os olhos iam injetados, bufava sua indignação. Saiu em disparada, em plena noite de segunda-feira, até a casa de sua ex-namorada.

    Mas e como são as coisas! Quando Junior a encontrou... nada fez. Ficou entre murchar e derreter. As palavras de raiva embolaram todas na língua e voltaram para dentro. Estavam completamente perdidas. Nem deu-se conta de que ficou vermelho e gaguejou, tudo feito colegial que há tempos deixara de ser. Se não estivesse tão concentrado naquela voz, a tão conhecida e ritmada voz de Carol, perguntando o que é que ele queria, se não estivesse imerso nela, Junior teria escutado que o mundo explodia, aqui e ali, em estrelas coloridas e adocicadas.

   Mas ele não tinha mais controle sobre si. Seu coração acelerou e a cada batida – mais e mais rápido - aquele desconforto do vazio, do oco, do frio doído, tudo isso cedia e abrandava. Sim, aos poucos tudo era um calor reconfortante, e tudo o mais desfazia-se frente a Carol - ainda inquisitiva e perguntando o que é que ele queria àquela hora. Junior só conseguiu suspirar num meio sorriso pleno de alívio. Seu coração voltara à normalidade. 
  

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Cidade Grande

   São seis horas da tarde e a noite já vem caindo. Vou pela calçada desviando de quem caminha na direção contrária. Passos apressados, vontade de chegar logo, sair do barulho irritante das ruas. O caminho é conhecido, é rotina; não só minha, mas de uma porção de pessoas. Pelo olhar fatigado e camisa marcada pelo suor, sei quem volta de um dia cheio, dia de trabalho; pelo perfume fresco e maquiagem delineada sei quem ainda está só na metade dele. Algumas roupas ainda denunciam mais sobre quem as veste; ora passo por um mecânico, depois um grupo de colegiais, então um mendigo. Certas vestimentas são indecifráveis e por isso só gosto das fáceis, dos estereótipos que todo mundo espera por encontrar na rua. Não sei o nome dessas pessoas, mas isso de início isso é fonte de diversão. Brinco de adivinhar qual nome elas teriam. Depois de um tempo você descobre que são poucos nomes conhecidos para muitas pessoas desconhecidas, e acho que por isso me obriguei a decorar alguns rostos, fixá-los com nomes únicos que não dou a mais ninguém. Torno-os conhecidos íntimos de uma história por acontecer.

   Chego a mais uma esquina. Esperando o sinal fechar para que possa atravessar a rua me junto ao amontoado de pernas que tem a mesma espera que a minha. No meio dos outros vejo um instante que provavelmente nunca mais vai se repetir, não com aquelas mesmas companhias. E ninguém dá a mínima pra singularidade da coisa, só eu. Idiota. Do outro lado, vindo de onde eu estaria logo que superasse mais aquela rua, percebo a Fernanda. Um nome que achei combinar bem com o jeito dela. Parecia uma pessoa querida. Dava até para imaginar um namorado ou irmão menor chamando-a carinhosamente de Nanda.

   Ela estava com passos curtos, rápidos. Estranhei vê-la ali. Geralmente eu a teria encontrado quatro quadras antes, perto da pichação abstrata feita no muro - uma grande sombra negra, toda torta, meio humana, de olhos desproporcionais em um rosto sem boca nem nariz, provocando todos os transeuntes com a pergunta: você se enche de várias coisas e ainda continua vazio?. A julgar pela pressa que a Fernanda vinha e pelo seu aparecimento tardio no meu caminho, só podia estar atrasada para a universidade ali perto. Estuda Turismo pela noite e carrega orgulhosa sua bolsa estampada com o logotipo da universidade e do seu curso. Sei que é caloura já que só com o início das aulas desse semestre é que eu a notei e tivemos nossos caminhos cruzados. Agora ela está a poucos metros, continua com pressa. Dou um oi silencioso em pensamento, sou ousado. ‘Oi, Nanda, fico feliz em te ver aqui!’. Apelido e elogio, quem sabe assim ela sorria e se preocupe menos com o atraso. Não. Apenas passou por mim, sequer me fitou. Estava com muita pressa.

    Chego ao meu destino diário, um encontro marcado com a padaria. É meio lanchonete, parte confeitaria, um pouco também de casa de sucos, mas no letreiro sobre a porta está escrito que é padaria. Não importa, o que eu como mesmo é um prato feito. Enquanto espero a comida reparo como o local está movimentado. Sempre é assim. Pratos batendo, latinhas de refrigerante sendo abertas, um liquidificador que não para. E um monte de vozes. Um burburinho que carrega sempre um rolo de falas em fragmentos de conversas, em pedidos de cafés, bolos e salgados. Mas tento ignorá-las. Com o fim dos nomes que posso imaginar, eu me foco apenas nas vozes que eu consigo classificar separadamente debaixo de um substantivo próprio inventado por mim.

   Assim o Paulo estava lá, sem o Pedro; imagino que tenham brigado, o que é estranho. Sempre comiam juntos ali, combinando em camisetas pretas de alguma banda de rock que não conheço, em cabelos típicos de musico rebelde batendo no meio das costas, e combinavam ainda nos gostos quanto a música em si – confesso que certa vez ouvi com atenção especial a conversa dos dois. Aposto que o Paulo foi quem criou a confusão toda. Ele sempre era o que mais falava, mais fazia caras e bocas; de espanto, admiração, de ironia. E eu sei que emoção demais sempre causa confusão.

    Na porta acaba de cruzar Rita. Moça simples em tudo. Com um jeito gozado, parece que todo seu rosto foi feito tendo em conta um contrato com duas cláusulas: que os olhos, a boca e o nariz não chamariam, nenhum deles, mais atenção do que seus vizinhos podiam chamar, e de que por isso mesmo seriam todos muito comuns. É, ela tem o rosto mais comedido e simples que alguém pode imaginar, e isso lhe dava uma graça especial. Aquele rosto podia muito bem esconder um complicado mistério e estar só disfarçando. Mas aí é especulação. Só sei que Rita sempre ficava ali na porta aguardando o seu namorado, um sujeito que nunca fui com a cara e por isso se chamava Maldonato. Usavam aliança de compromisso e tudo. Era uma satisfação assistir os dois se encontrando. Ela parada na porta, ansiosa, então eis que um sorriso de criança lhe surgia ao rosto, daí bastava olhar pela janela para ver que do outro lado da rua vinha Maldonato. Apesar da minha birra contra ele, admito que sua felicidade ao ver Rita também causava satisfação a qualquer espectador. Mas aí certa semana nenhum dos dois apareceu. Na próxima, só ela veio; sem anel, sem esperar na porta, sem Maldonato. 'Você merece algo melhor, Rita. Ele não prestava', pensei comigo na esperança dela ouvir. Agora, já sentada, ainda sozinha, e tão simples de rosto, a observo e volto a repetir em silêncio que ela merece coisa melhor.

    Uma risada irrompe no ambiente, vem do balcão. José, policial fardado, algumas mechas grisalhas no cabelo, solteiro, provavelmente solitário. Ele ri forçosamente para a garçonete, Silvia, mãe de dois filhos pequenos que às vezes apareciam por lá na volta da escola. Silvia não ria muito. A julgar pelas suas olheiras e dedos sem anéis, eu sei que é uma mãe solteira, sem nem vinte e cinco anos na cara, que sustenta sozinha sua prole. Consigo imaginar ainda uma mãe, já velha, que Silvia também tem que sustentar. Não sei se José patrulha essa área ou só vem aqui graças a um misterioso encantamento que sente por Silvia, mas é claro que sempre tem tempo livre para gastar sua criatividade com piadas na tentativa de fazer com que ela sorria. Em vão. Ele sempre ri sozinho e vai embora sozinho; Silvia tem a cabeça em outro lugar e a boca não prova há tempos um riso gostoso.

    Por fim a comida chega e eu mastigo tudo. Depois fico mais um tempo. Sentado, olho os outros com discrição. Por aqui ninguém gosta de ser olhado. Ao ritmo de um carro que buzina, ou então por alguma freada brusca no alucinante trânsito ali fora, mudo o foco, alterno a pessoa. Se eu bobeio um pouco, me distraindo demais com alguém, acabo perdendo o momento exato em que uma outra pessoa vai embora deixando uma mesa vaga prestes a ser ocupada. Eu me sinto mal nessa hora. Bobeira, eu sei. Mas é o momento em que outras caras, com outras rotinas, vão chegar e não terei nome algum para elas. É também sinal de que o turno da Silvia chegou ao fim e que ela vai para casa cuidar dos filhos, deixando José com o que pensar quando for patrulhar as ruas novamente enquanto arquiteta novas piadas para o dia seguinte. Sinal ainda de que Rita vai tocar sua vida fora dali e sem o Maldonato – esse que eu nunca mais vi ou verei de novo. É o prenúncio da ida de Paulo, músico sem par. Lembro, nessa hora incômoda, até de Fernanda. Será que ela chegou a tempo ou o professor deu uma bela bronca pelo atraso?

    Decepcionado, vou embora. Concluí que preciso de mais alguns nomes para me salvar da multidão anônima. Tentando encontrá-los a caminho de volta para casa, torno a ver alguns rostos que reconheço. Não são muitos, mas os vejo. Em meio à agitação do centro da cidade, reparo que debaixo do intrigante caos de concreto, dos motores e das tribos, há uma pequena ordem. Fico um pouco mais feliz por me convencer disso, e a cada rua que me aproximo de casa sinto-me menos perdido do que estava há um instante atrás. Sei que essa sensação pode continuar a crescer, mas sei ainda que ela vai ser interrompida tão logo eu me atrase ou tenha que mudar de caminho, pois aí todo o mundo gira vertiginosamente num borrão sem sentido, permanecendo intacta somente aquela pichação no muro, sempre provocante. Provocando especialmente a mim, eu sinto. Por isso detesto atrasos e mudanças de caminho. Não gosto de ter que romper essa rotina, meu elo frágil com a ordem que são esses estranhos conhecidos que povoam minha vida cimentada. Estranhos que possuem nomes que talvez não sejam aqueles que escolhi e que talvez amanhã nem sejam mais nada.