sábado, 12 de fevereiro de 2011

Crônica cuspida (e febril)

A casa está em destroços. Tudo batido, tudo quebrado. A cadela corre alucinadamente pelo quintal, arrepiada de dorso inteiro. Ela é quem bate em tudo, quebra tudo, morde tudo. Que merda é essa!?, censuro. A cadela me ouve e corre em minha direção. Rosna, mostra os dentes, a baba escorre do focinho tenso.

Dou três passos para trás para me afastar, é quando tropeço e caio. Agora a cadela está em cima de mim, vem e me acossa por todos os lados. Na perna, no braço, no ombro. É rápida e sempre consegue pregar seus dentes. Dói, dói. Então ela pula direto no meu pescoço, sinto o calor doloroso de sua mordida e então eu tento gritar...

Acordo.

A cabeça dói. Estou com calor. A boca está seca e parece cheia de terra. Tenho a impressão de já ter acordado outras vezes, mas é confuso. Estou confuso. O que é isso? Encosto a mão na testa, pareço quente. Febre, claro.

Da cama ouço um barulho minúsculo. Aguço os ouvidos. Cadê? Sumiu.

Acendo a luz, sento na cama. A cabeça lateja lá dentro. A dor acompanha o suspense de um tambor: tum!, tum!, tum!.

De relance percebo um movimento delicado na parede. Uma lagartixa. Entendo que foi ela quem fazia aquele barulho de antes. Mas é uma lagartixa sem rabo. Sim, é isso. Ela soltou o rabo e daí veio aquele barulho tão leve. Imagino que a cauda caiu pois levou um susto; vou além e continuo imaginando um conto metafórico em que numa sociedade de lagartixas as mais sacanas entre elas se divertem maliciosamente pregando peças e sustos em outras lagartixas só para vê-las perderem a cauda e então troçarem disso. Medrosa, medrosa, medrosa!, diz o coro de lagartixas más.

Que absurdo! É essa febre.

Fecho os olhos, com as duas mãos aperto a cabeça. Ainda dói muito. Quando volto de minha escuridão, a lagartixa medrosa sumiu. Como se fosse uma ilusão. Não existiu. Ou existiu. É febre.

É a febre e essa sede de boca cheia de terra. Língua grossa e áspera. Vou até a cozinha e com vontade mando pra dentro um copo d'agua. Passo também no banheiro e vasculho a caixa de remédios atrás da dipirona. Sem querer me encaro no espelho, concluo que as olheiras em nada contradizem a dor de cabeça, o pesadelo insano, essa febre escaldante.

Já no quarto, sentado na cama, com sono que existe mas que me mete medo – se eu deitar vai começar tudo de novo numa repetição incerta de acordado e dormindo, com uma ideia fixa na cabeça -, tento achar a causa disso. Não sou de ficar doente, então de onde isso veio e por quê? Se minha mãe pudesse opinar diria que foi algo que comi. Mas não comi nada estranho. Nem bebi.

Ah, não sei.

Enquanto encaro estupidamente o chão do quarto, acho que penso em algo. Então outro algo me chama a atenção. Um fio preto e grosso, em forma de S, está colado na perna do criado-mudo. Não se move ou dá sinal de vida.

Me aproximo e classifico: piolho-de-cobra. Como isso veio parar aqui dentro? Essa porcaria podia estar na minha cara se quisesse.

Com as pontas dos dedos massageio as têmporas, fecho os olhos maravilhado com a pequena sensação de prazer que retiro disso. Mas dura pouco. A dor volta mesmo com a massagem e a febre ainda arde.

E então o fio sumiu. Não está mais no criado-mudo! Tal qual a largartixa, o piolho-de-cobra era feito de ilusão. Eu poderia me agachar junto ao chão e procurar melhor, também acender a luz do quarto em substituição a essa penumbra de meu abajur. Poderia até ir onde estava a lagartixa e procurar pelo rabo dela. Poderia.

Mas tudo – dor, febre, quase cinco da matina, aquilo que preciso fazer amanhã - logo amanhã! - me deixa satisfeito com aqueles estranhos sumiços.

Preciso dormir.

Deito e sinto que aos poucos a cabeça volta ao normal, meu corpo esfria. Embalado na moleza da dipirona, as pálpebras recusam-se a abrir e as ideias, agora numa confusão tão palatável, dançam e se misturam na oculta existência de minha imaginação.

Durmo o sono de quem nunca acordou.

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