domingo, 7 de abril de 2013

Jack não é mais um bobão

    Luísa, caixa rápido número 11. Tem olheiras, cansaço, parece um humano comum que sente dor e frio, e certamente já teve um sonho. Está chegando na parte final do seu turno, mas isso já deixou de ser, há muito tempo, algo reconfortante. Tudo vai se repetir, afinal de contas.

    Filas serpenteiam diante dos caixas, enquanto que uma única, e maior, e iludida de que será menos demorada, estende-se debaixo da plaquinha dizendo caixa rápido. Há tempos no serviço, Luísa já desenvolveu a habilidade de atender ao cliente enquanto repara em tudo a sua volta. Assim vê que, não importa a fila, todos nela bufam; tornam-se lá as pessoas mais atarefadas nesse mundo. Olham no relógio, vigiam para ver se nenhum caixa está fazendo corpo mole, e ficam atentíssimos para pegar no flagra algum espertinho ultrapassando o limite de 15 itens do caixa rápido. Luísa percebe essas coisas e acha um saco. Todo dia é um saco.

    Enquanto atende também pode dar asas à imaginação. E imagina como teria sido se, de repente, por milagre, ela não fosse ela atualmente, mas sim fosse ela mesma de acordo com seu passado, com os tempos de escola. Xodó dos professores, elogiada por ser tão boa em números quanto com palavras. Notável por destoar da escola em que banheiros eram mercados de drogas e sexo. E se ela fosse, hoje, não o que é, mas uma versão continuada dessa aí do passado? Essa que foi interrompida pelas novelas da vida, versões chatas sem galãs nem loterias?

    Merda!

    Imaginando coisas Luísa passou o mesmo item duas vezes no leitor de produtos. Bip-bip. O cliente olha torto, dá um meio sorriso, e do alto dos seus cabelos levemente grisalhos diz:

- Opa. Presta atenção, menina. Não quero dar mais dinheiro pro seu patrão não.

    O tom é de brincadeira, como se estivesse tudo bem e o cara realmente não ligasse para o deslize. Tudo bem o caralho, falso do cacete. E Luísa chama a supervisora para estornar o item. A supervisora já vem de cara amarrada, cara de porra, Luísa, de novo?, mesmo que fosse a primeira vez no dia.

    E assim o carro toca. E vem clientes nervosinhos, outros tentam ser engraçadinhos. E tem sempre o cretino que se aproveita da perda da noção de tempo, inevitável naquele serviço, para quando Luísa disser bom dia o filho da mãe, todo gozado, emendar:

- Bom dia? Mas pra mim já é boa tarde!

    Pior ainda se o infeliz discorre sobre a teoria de que bom dia é até almoçar, e boa tarde é depois de ter almoçado. Luísa detesta esse tipo.

    Com o tempo tu te acostuma, dizia uma caixa experiente, que muito ajudou Luísa quando começou no trabalho, e que mais tarde foi despedida porque o gerente implicava com todo mundo que era negro. E Luísa realmente estava acostumada. A dor no punho e o mau jeito no braço passaram a dispensar remédios. Os bips infernais do leitor de produtos já não eram escutados quando ia dormir. O bafo azedo da maioria dos clientes não a fazia recuar. Os chiliques que as madames às vezes davam sobre o desrespeito com o tempo de espera, pois senhoras da idade delas não tinham pernas para isso e blábláblá, eram agora piada na hora do almoço. Luísa acostumara-se... Mas Luísa tem olheiras, cansaço, parece um humano comum que sente dor e frio, e certamente já teve um sonho. Um sonho. Por onde ele estará?

    Não aqui.

    Luísa hesita. Mas não por muito tempo. Larga a pizza congelada, pede licença para o rapaz que já ia empurrando uma coca-cola, e levanta-se. Todos na fila do caixa rápido a encaram, uns estranhando, outros já doidos para começar um motim porque aquilo significaria uns minutos a mais parados na fila. Luísa deu os ombros.

    Saiu da área de atendimento, deu a volta em todos os caixas, e dirigiu-se para dentro do mercado. Todas as outras atendentes, suas colegas, pararam o que faziam, estupefatas. Tentavam entender o que era aquela ousadia em abandonar assim o posto de trabalho.
Luísa caminhava reto para os fundos do mercado. Parecia ir até a grande seção de bebidas geladas. Sim. Abriu a porta, pegou uma Caracu. Adorava cerveja escura. Não qualquer uma, só Caracu, com seu gosto forte, encorpado, e com aquele restinho de sabe-se-lá-o-que no fundo da garrafa, aparentemente essencial ao sabor.

    Nisso a supervisora chegou. Estava vermelha, um pouco pelos passos curtos e apressados, um tanto mais pelo nervosismo. Luísa detestava a supervisora. Cretina, deu pro gerente e agora tá aí, enchendo o saco como se fosse dona dessa merda toda.

    Ocupada em dar o primeiro e delicioso gole na cerveja, Luísa pouco ouviu o que a supervisora dizia. Era algo sobre voltar ao trabalho, também sobre estar louca ou querendo deixar alguém louco. Algo assim. Luísa, nesse instante, só conseguia prestar atenção em engolir a cerveja e em caminhar para fora do mercado.

    Quando passou pelo vigilante na porta de entrada, esse falcão que fica ali pelos malandros e pelas senhoras de bolsas grandes, ela deu um sorriso e desejou um bom trabalho. O vigilante mesmo com o sinal eletrônico tocando pela retirada de um item, a cerveja, sem o devido pagamento, ficou imóvel e aturdido.

    Luísa estava na calçada, livre, e rindo. Enquanto esperava o sinal para pedestres abrir, inclinou a cabeça para trás e inspirou profundamente, até fechar os olhos. Quando os abriu, notou que o prédio próximo, que ocupava parte do horizonte, trazia uma grande pichação. Arte urbana, dizem. Conhecia o homem nela, um ator. Não lembrava o nome. Mas certamente era um ator bem conhecido. E ele dizia algo. De início ela não entendeu bem, mas depois, quando a Caracu facilitou a descida daquela frase pichada, Luísa riu mais e mais, até que partiu caminhando atrás do sonho perdido...

    Só trabalho sem diversão faz de Jack um bobão, era o que estava pichado.



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