segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Por que o Facebook é uma vitrine de pessoas?

A metáfora não é complicada. Ali, entre Curtidas, Compartilhamentos e Comentários, é fácil ver os perfis da rede social como vitrines para seus usuários – seja essa vitrine sincera e honesta ou não.

Mostrar-se assim ou assado, anunciar-se simpático a essa ou aquela causa (e de quebra curtir uns vídeos de gatinhos fofos pois ninguém é de ferro): o Facebook como uma grande exposição de pessoas com seus gostos, preferências, opiniões e hábitos.

E de muitas pessoas, já que são mais de um bilhão de usuários no mundo todo.

Mas o que é que acontece para que a gente se renda a essa exposição online? De que modo pode parecer normal, e para algumas pessoas uma rotina indispensável, essa exposição pessoal dentro das telas de um computador ou smartphone?

Ou, na pergunta-título, por que o Facebook é uma vitrine de pessoas?

Vamos tentar dar uma possível explicação a essa metáfora da vitrine, e para tanto usar das discussões sociológicas sobre a identidade em tempos de internet.


Identidade: sempre por fazer.

A identidade é uma daquelas coisas bem complicadas na vida social.

Obviamente não nascemos com uma identidade pronta e acabada e, portanto, o caminho até conseguir responder ao “quem sou eu?” é longo e sinuoso. Como seres sociais que somos, a identidade só surge conforme adentramos na vida social.

E pior ainda, a identidade é um esforço contínuo durante toda essa vida. Todos os dias, a todo tempo, estamos construindo e mantendo uma identidade – que é, na verdade, uma composição de identidades simultâneas, como ser, por exemplo, funcionário público e pai e católico e politicamente à esquerda e vegetariano e tantas outras coisas mais.

O que os sociólogos da contemporaneidade dizem é que construímos nossas identidades e fazemos isso o tempo todo, mesmo que sem se dar conta. Trata-se de um perpétuo trabalho, e um trabalho ingrato, pois nunca chegamos ao fim – estamos sempre sendo algo, lutando para não deixar de ser outro algo, enquanto ainda queremos ser mais alguma coisa.

E quando a internet chegou, lá em meados da década de 1990, é claro que ela viria influenciar tudo isso.

O Laboratório.

Com o advento da internet comercial e a sua popularização, estudiosos da vida social começaram o que seria uma longa série de questionamentos: quais os efeitos do online em nossas vidas?

E, claro, os efeitos disso para nossas identidades.

Já naquele tempo, alguns estudos apontaram a facilidade com que as pessoas mudavam de identidades através da internet. Ou, melhor, brincavam com as suas identidades.

Nas poderosas palavras de Sherry Turkle(1948-), é como se a internet fosse um laboratório no qual podemos realizar experiências de construção e reconstrução do que somos.

Se a identidade estava sempre sendo feita, na internet a gente descobriu um recurso e tanto.

Seja por jogos eletrônicos, chats ou, mais atualmente, redes sociais, na internet podemos viver, inventar e encontrar facetas de nós mesmos que no offline podemos não conseguir viver, inventar nem encontrar.

Muito iconicamente, a internet veio mostrando como a identidade é algo por ser feito e que está sendo feito o tempo todo também através das auto-identificações online, dos relacionamentos à distância ou das comunidades virtuais a que nos afiliamos.

A sutileza desse oba-oba identitário virtual, no entanto, está num pequeno detalhe. E é o detalhe que nos joga ao Facebook como vitrine de pessoas.

A saber, as identidades, inclusive na internet, precisam ser mostradas, praticadas, ou, numa palavra, encenadas.

E é com muita dedicação que fazemos isso no Facebook usando de Curtidas, Compartilhamentos ou de mesmo modestos Comentários com emoticons.

Curtir ou não Curtir, eis a questão.

Podemos partir de um pressuposto: ao lado de outras possíveis razões e motivos que nos levam a usar do Facebook, toda manifestação no Facebook tende a ser uma afirmação identitária.

Curtir, Compartilhar, Comentar, sinônimos para um certo querer ser, mas que é expresso publicamente.

Anunciar a simpatia por um texto, imagem ou vídeo, mesmo que num simples Curtir, é compor uma pequena narrativa identitária que tenta assimilar o conteúdo curtido na identidade que estamos construindo para nós mesmos.

Algo como diga-me o que curtes e te direi quem és!

Neste sentido é que o Facebook é uma vitrine, e a razão disso é uma maneira muito particular de construirmos nossas identidades.

Não são elas apenas coisas sempre por serem feitas. Hoje, elas podem ser feitas ali, através das telas de um dispositivo eletrônico conectado à internet e usando das redes sociais.

Você não precisa mais conversar face a face com ninguém para anunciar que é a favor do impeachment da Dilma; basta Compartilhar na sua timeline qualquer texto que também seja a favor e todos os seus amigos facebookianos saberão da sua posição – ou melhor, saberão desse pedacinho da sua identidade.

E saberão mais, ou com maior fé, tanto quanto você Compartilhar o maior número desses textos, se perder em inúmeras e intensas discussões nos Comentários, Curtir provocadoramente os infinitos memes e afins anti-Dilma.

O Facebook é ainda uma vitrine no sentido de ser muito passível a estratégias.

Afinal, vitrines não são montadas à revelia ou ao acaso pelo lojista; elas precisam seduzir o olhar para aquilo que é mostrado, certo? Não raro, mais do que seduzir, precisam fazer com que o observador casual se torne um consumidor potencial.

Quer dizer, na internet, as pessoas controlam com maior facilidade aquilo que mostram aos outros. A exposição pessoal pode ser mais bem pensada, ajustada, corrigida conforme o objetivo visado – mesmo que às vezes isso não seja tão consciente quanto parece ser. Em frente a um computador, um tom de voz inseguro ou olhares esquivos não depõem contra a gente e fica muito mais fácil parecer seguro e assertivo através de textos e imagens. 

E assim, dar um Curtir aqui, Compartilhar uma notícia lá, ou ainda entrar numa agressiva discussão nos Comentários de postagem alheia, é também a linha de chegada de uma identidade sendo expressa e mantida. É um clique de mouse que traduz uma complexa mistura daquilo que somos com aquilo que queremos ser, mas temperado com aquilo que queremos que os outros vejam da gente. 

Algo que o vídeo What's on your mind?, sobre as mentiras que construímos sobre nós mesmos nas redes sociais, conseguiu problematizar muito bem.  

Se você é nerd, e não se importa com isso (e talvez até se orgulhe), não vai te custar nada dar um Curtir a página do Mundo Nerd. Mas supondo que você goste de, sei lá, sadomasoquismo, talvez pense duas vezes antes de Curtir uma página referente ao assunto - pelo menos com o mesmo perfil que você use para falar com sua vó.

Facebook, um sinal dos nossos tempos.

Mas o uso do Facebook como vitrine não é algo para ser condenado. Pelo menos não no nível analítico.

Considerando a configuração atual das identidades, é apenas um outro modo de vivê-las e construí-las, e um modo que é razoavelmente inevitável – hoje em dia Facebook é como uma segunda carteira de identidade.

Zygmunt Bauman(1925-), apesar de condenar horrores as práticas de identidades no online como essas construídas e mantidas via Facebook, acredita que elas existam justamente porque o mundo atual nos exige esse tipo de construção identitária.

Para este sociólogo, as identidades seriam assim (conectadas e um tanto efêmeras e descartáveis conforme a moda) pois nossa sociedade apresenta uma crescente individualização, particularmente expressa no consumismo, em que queremos ser uma porção de coisas – mais ainda, somos impelidos a querer ser uma porção de coisas. E a vontade do que queremos ser hoje pode não durar até amanhã, daí a conveniência de construímos identidades tão frágeis quanto um clique do mouse, descartáveis conforme o ritmo da moda exigir.

Sim, identidades rápidas e fáceis, como aquelas obtidas através de um Curtir, vêm muito a calhar.

Pode ser muito difícil, trabalhoso e cansativo mostrar-se um cidadão do mundo, ciente das mazelas internacionais, engajado nas discussões que estão na ordem do dia; mas é fácil colocar um filtro na foto do perfil e mostrar-se solidário aos ataques terroristas em Paris. E mais fácil ainda trocar por um outro filtro depois quando uma outra comoção coletiva atingir a internet.

(vale dizer que não está em jogo aqui a possível utilidade, dignidade ou validade de manifestações coletivas como essa dos filtros facebookianos, senão uma possível e breve análise de alguns [e somente alguns!] de seus fundamentos).

O Facebook como vitrine não é exatamente uma anomalia, um pecado, ou algo com o que você deva se envergonhar por participar. Não é ele que nos torna possivelmente superficiais e vaidosos. Ao contrário, por estarmos todos diluídos num mar de superficialidade e vaidade é que recursos como o Facebook podem ser atrativos.

Colocar-se em vitrine é só o efeito colateral, mais ou menos inevitável, da contemporaneidade.

sábado, 21 de novembro de 2015

Por que Star Wars faz tanto sucesso?

Politicagem espacial, sabres de luz, e uma relação muito desencontrada entre pai e filho: quem diria que isso faria o sucesso que fez?

Star Wars é uma das mais marcantes sagas cinematográficas. Foi tão fundo na cultura popular que se você não assistiu aos filmes é certo que já perdeu alguma referência feita a eles, seja em outros filmes, seriados, ou pelo seu amigo nerd que cantarolou uma imponente marcha imperial quando dominou toda a Ásia no War.

E é muito louco imaginar que desde a década de 1970 pessoas do mundo inteiro se reúnem, à distância, em torno de uma mesma história, com os mesmos personagens, sentindo muito possivelmente as mesmas emoções – e que, se a Disney não ferrar tudo, pode continuar acontecendo século XXI afora.

Céticos que somos, podemos praticar aqui a crítica vazia: tudo isso é criação de Hollywood e seus executivos diabólicos criando manipuladoras estratégias de marketing que nos tornarão espectadores bovinos frente a qualquer história com fascinantes efeitos especiais.

Bem, isso tem lá sua dose de verdade. Mas e é só?

Afinal, por que é que Star Wars fez tanto sucesso?

Vamos arriscar uma explicação mix: metade sociológica, metade antropológica, e com uma pitada de psicologia. Para isso, usaremos da Jornada do Herói que se você, meu jovem padawan, fez seu dever de casa, já deve ter uma ideia do que se trata.


A Jornada do Herói, ou como contar uma boa história.

George Lucas, ao criar a trama de Star Wars, confessadamente se inspirou na chamada Jornada do Herói, e foi esse o grande truque do cara.

Vamos supor que alguém analisasse as diferentes histórias que existem nesse curioso planeta azul que é o nosso. E analisasse não apenas as histórias de diferentes culturas mas também de diferentes épocas.

Desde narrativas mitológicas, passando pelas religiosas, e chegando até as narrativas literárias; vamos imaginar que uma boa parte disso tudo fosse analisado.

E que desta análise fosse percebido algo muito curioso: ora, existem elementos narrativos que se repetem!

Mesmo em povos que nunca entraram em contato uns com os outros, seja por distância física ou temporal, lá estão os mesmos elementos narrativos aparecendo e dando a impressão de que diferentes histórias são, num certo sentido, a mesma história, uma perpétua recriação, como se houvesse um padrão narrativo.

Joseph Campbell (1904-1987) foi um antropólogo dedicado ao estudo dos mitos e foi exatamente esta a análise que ele fez e foi a este resultado a que ele chegou.

Daí viria isso da Jornada do Herói.

O herói, que é o protagonista de uma história, realiza uma jornada que no seu plano essencial sofre mínimas variações, independente da cultura e do tempo a que pertença.

Basicamente, todo herói passa pela Separação (do seu mundo), pela Iniciação (noutro mundo) e finalmente pelo Retorno (ao seu mundo, mas agora noutra condição).

Lendas orientais, mitologia grega, as fantásticas histórias bíblicas, o herói tá sempre nessa trama separação-iniciação-retorno. O lance central é que o herói passa, sempre, por uma grande jornada de transformação.

Mas por detrás de um esquema simplista, que muito lembra a cobrança das nossas professoras de redação, que sempre insistiam que um texto deve ter Introdução, Desenvolvimento e Conclusão, essas três etapas da Jornada do Herói se complexificam em muitas outras subetapas.

E são tantas, e tão plásticas e adaptáveis, que um jovem diretor de cinema viria a usá-las como estrutura para uma grande saga numa galáxia muito, muito distante – George Lucas foi aluno de Joseph Campbell.

Esmiuçando a Jornada do Herói.

Comumente, e seguindo a divisão que Christopher Vogler (1949-) estipulou pensando justamente na aplicação pragmática para o cinema, divide-se a Jornada do Herói em 12 (sub)etapas para além da Separação, Iniciação e Retorno.

Assim, a jornada do herói começa com o (1) Mundo Comum, que é a apresentação do mundo cotidiano e sem-graça do herói – tipo uma fazenda de umidade num planeta desértico. O mundo comum é importante na medida que fará o contraste com o mundo especial que o herói descobrirá durante sua jornada.

É aí que vem o (2) Chamado à Aventura. É o problema, o desafio, um objetivo que forçará nosso herói a iniciar sua jornada. Seja intencional, por acaso ou mãos do destino, é algo que tira nosso herói do seu mundo chatinho.

Mas o herói, que até então não é herói coisa nenhuma, irá vacilar. Afinal, quem não sente medo diante das novidades, não é? É então que acontece a (3) Recusa ao Chamado; o famoso fazer doce, ou consumir-se em insegurança, que é o nosso herói sendo medroso e negando a aventura que se insinua - isso até que algo ou alguém o force a encarar de vez o desafio que surge à sua frente.

Não raro, é nessa hora que aparece o (4) Mentor. Tipicamente, um velho ou uma velha, seja ele verdinho e de um metro de altura ou não, com todo o ar de sabedoria, e que irá conduzir nosso herói. O mentor tem dupla importância: prepara seu pupilo mas também o empurra até a jornada tirando dele o medo que o deixava em inércia.

Nessa parte da história é que geralmente se chega na (5) Travessia do Primeiro Limiar. É o momento decisivo do início da jornada. É aqui que o herói aceita o seu papel e a sua responsabilidade e decide começar sua aventura, seja por um ato simbólico ou mesmo literal, tipo atravessar um portal ou algo que o valha – ou embarcar numa nave e viajar por aí por planetas nunca antes visitados.

Isto o conduz ao descobrimento de um novo mundo, aquele mundo especial diferente do mundo cotidiano, um mundo em que existem mistérios e magias, mesmo que sintetizados em divertidíssimos sabres de luz. Vai ser um lugar para (6) Testes, Aliados e Inimigos, todos colaborando de um jeito ou de outro para que o herói entenda como é que as coisas funcionam nesse novo mundo que está descobrindo – comumente, aquela parte da história que nosso herói se mete em confusão por não entender como as coisas funcionam nesse novo mundo, tipo arranjar uma briga de bar com um bandidão intergaláctico, ou então acabar precisando da ajuda de alguém deste mundo novo, como de um piloto espacial muito canastrão acompanhado por uma urrante bola de pelos.

Muito da história acontece aqui, nessa sexta etapa, geralmente a maior parte da história. Seu abandono vem através da (7) Aproximação com a Caverna Oculta, que é só um nome pomposo para aquilo que todos já vimos nas histórias que mais gostamos: o lugar que antecede o grande enfrentamento que o herói irá realizar. Sentirá medo inédito, hesitará novamente, terá de bolar planos infalíveis, realizar preparativos, pensar uma estratégia para destruir a Estrela da Morte, mas é preciso seguir adiante na perseguição do seu objetivo.

E então vem a (8) Provação, o momento de vida ou morte. É quando o herói se vê face a face com o que mais lhe mete medo, o final boss, e é quando nós, que acompanhamos a história, prendemos a respiração, seguramos a piscada, e duvidamos: o herói sobreviverá? O objetivo será alcançado ou não? Luke conseguirá atingir o alvo e destruir a Estrela da Morte antes que Darth Vader dispare? A provação é fundamental pois, através dela, uma vez superada, o herói renasce em nova condição.

Então é chegada a hora da (9) Recompensa: o herói conseguiu o que buscava, cumpriu o objetivo, resgatou a princesa, salvou o mundo, destruiu a Estrela da Morte. Mas o (10) Caminho de Volta pode não ser simples; as ações executadas até o momento geram consequências. Uma luta final com um vilão que se julgava morto, ou talvez a escapatória alucinada de base que está prestes a explodir; algo ainda precisa acontecer antes do retorno heroico ao mundo comum. É aquela parte da história que despeja uma dose extra de ação e tensão pois você já esperava pelo final feliz.

Aqui pode vir um grande apelo da história, que é o herói e a sua (11) Ressurreição, que as vezes é literal – em quantas histórias o herói estava morto mas então, subitamente, por algum artifício sempre criativo, volta à vida? É como que o exame final do herói, sua última prova na qual precisa demonstrar que aprendeu a lição, o momento que deixará claro que nosso herói atingiu uma transformação inquestionável, que voltou de uma morte, mesmo que simbólica, e a vida será diferente a partir dali – tipo se saber possuidor da Força.

Cumpridas todas estas etapas, resta somente o (12) Retorno com o Elixir, que é a volta, vitoriosa, do herói ao seu mundo comum. Mas é preciso ter uma conquista como que para deixar claro que sua jornada foi completa e bem sucedida. Pode ser um aprendizado, um item especial, ou simplesmente o reconhecimento da experiência que adquiriu durante a sua jornada.

A depender do acervo cinematográfico, é certo que o leitor mais atento reconheceu essas etapas em diversos filmes. Não só em Star Wars, como Harry Potter, O Senhor do Anéis, Matrix, O Poderoso Chefão, e inclusive algumas animações, como Shrek.

Claro, as etapas não funcionam como uma regra invariável ou um roteiro burramente fixo; como dito antes, é algo adaptável e plástico, que ora se estende aqui, ora economiza ali, pula daqui para lá, mas a ideia é a mesma: separação, iniciação e retorno.

Até aqui temos, se muito, uma macetinho para roteiristas e escritores, tipo um truquezinho para você bolar a história que vai te deixar rico e famoso, algo em que George Lucas foi exemplo concreto. Resta explicar por que isso não seria um simples macete e o que é que se esconde atrás desse truque que, afinal, fez Star Wars ser o que é.

Todos somos Lukes.

A Jornada do Herói representa, portanto, um padrão narrativo. É um jeito de contar uma história que existe desde sempre.

O fundamento teórico por detrás disso está dado numa perspectiva estruturalista, ou seja, é como se houvesse uma estrutura mental inata aos humanos, na qual está incluída esse esqueminha do herói que passa por separação-iniciação-retorno.

Sim, a teoria é grandiloquente assim.

Campbell, diante da descoberta desse padrão narrativo, e na tentativa de melhor explicá-lo, usou então de dois conceitos: arquétipos e inconsciente coletivo.

São dois conceitos cunhados por um outro estudioso, o pai da psicologia analítica, Carl Jung (1875-1961).

De acordo com Jung, nós, humanidade, possuímos como que ideias elementares, melhor chamadas de arquétipos, que são coisas que transparecem em nossos sonhos, por exemplo. Ou seja, temos esse chão comum, uma base mental dada em todos nós, da qual brotam ideias elementares que, a depender do contexto, encontrarão uma expressão assim ou assado, mas que são sempre a mesma ideia independentemente da pessoa – você, que acorda e dorme saturado por conexões WiFi, e um nativo de alguma isolada ilha do oceano pacífico, sim, partilham as mesmas ideias elementares.

Daí que podemos falar de um inconsciente coletivo, ou seja, esse local de onde espontaneamente vêm os arquétipos (nossas ideias elementares).

Louco, não?

Supondo, pois, que a Jornada do Herói tenha esse pezinho dado num inconsciente coletivo, e que portanto está expressando arquétipos profundamente encrustados em nós, ora, não é a toa que as histórias construídas conforme a Jornada do Herói façam tanto sucesso!

Independentemente dos personagens, do argumento, de quem morre ou do que é que está para ser salvo, a Jornada do Herói conversa com algo muito comum a todos nós. É como se fosse uma linguagem universalmente compreendida.

Existem essas figuras, como a do mentor, ou a do vilão, com as quais estabelecemos relações e que todos nós sabemos reconhecer essas relações pois estão dadas em nós mesmos. Existem essas dinâmicas, como a de sair do mundo comum, ou a de enfrentar uma grande provação, que todos nós sabemos dos sentimentos que brotam nessas situações pois todos já as vivemos.

Trocando em miúdos, e levando isto para a galáxia muito, muito distante, Star Wars, essa Jornada do Herói cinematográfica, estaria trazendo algumas questões que todos nós conseguimos decodificar e por isso é que nos identificamos tanto com a história.

Talvez a maior decodificação/identificação de todas esteja no dilema moral central da saga, que é quanto à Força: ir ou não para o lado sombrio?

George Lucas disse ter sintetizado na Força algumas grandes questões que perpassam todas as religiões. E não é difícil identificar isso. Na verdade, durante os filmes somos bombardeados com falas sobre a Força que são falas religiosamente genéricas, que poderiam ser colocadas dentro do discurso de muitos padres, pastores, monges, etc.

Como Yoda alerta, o lado sombrio oferece um poder que é rápido e fácil. E por isso sedutor. Quer dizer, o lado sombrio tem os stormtroopers e a Estrela da Morte; o lado iluminado, bem, tem os Ewoks... Independente da roupagem moral que adotemos, cristã, budista ou seja qual for, o mal é sempre tentador assim.

Já o lado iluminado é o lado da longa dedicação, da tranquilidade obtida com muito esforço, do clássico perdoar sem ressentimentos, da superação obstinada dos desejos e, portanto, de todo e qualquer medo – como aceitar que as pessoas que amamos morrem, algo que Anakin teve um ou dois probleminhas em aceitar. 

O dilema moral que a Força invoca é o dilema da eterna luta entre o bem e o mal que nós, crentes ou não, já sentimos em algum nível, mesmo que seja naquela dúvida quanto a se vingar ou não do nosso irmão só porque ele dedurou a gente pra nossa mãe.

No nosso dia a dia, com maior ou menor dramaticidade, nós entendemos esse dilema moral mesmo que nunca tenhamos assistido Star Wars. Somos Jedis e Siths, sem saber. Há sempre a possibilidade de escolher pelo ladro sombrio da Força, ou seja lá como você chame a escolha entre o bem e o mal, e por isso, de acordo com a teoria que sustenta a Jornada do Herói, nos identificamos tanto com a história de Luke – ou com a do Vader, né.

Aliás, enquanto a trilogia antiga explora o dilema moral pela face do bem (isto é, a trajetória do herói Luke até sua transformação benigna), a trilogia mais recente explora a outra face do dilema moral, complementar à primeira, que é a do lado do mal (ou seja, como é que o herói Anakin corrompeu-se e cedeu às tentações do lado sombrio). E ambas as trilogias, deixemos claro, usando do esquema separação-iniciação-retorno. 

Enquanto isso, a pergunta-isca que nos pega por dentro, é sobre quem nunca cedeu ou ficou profundamente tentado a ceder ao lado sombrio da Força.

Verdade ou não, é o que é. 

Teorias grandiloquentes a parte, a Jornada do Herói ressalta algo importante, e aí sim no âmbito mais sociológico – que até agora ia meio perdido entre explicações antropológicas e psicológicas.

É preciso quebrar a crítica vazia. Há a tendência em achar que produtos culturais que fazem enorme sucesso de público, como alguns filmes e livros, são pequenas lavagens cerebrais. Como se nós, a audiência, fôssemos bovinos passivos consumindo lixo sem perceber – perceberíamos, se muito, os efeitos especiais de última geração.

A Jornada do Herói levanta a questão recepção: o que faz com que as pessoas gostem mais de uma história do que de outras? E a resposta pode estar não na supervalorizada indústria cultural (e seu braço hollywoodiano), mas sim em nós, pessoas com subjetividade, que mobilizam recursos diversos que as fazem gostar mais ou menos de um filme ou livro.

Se a razão das pessoas gostarem ou não de uma história é dada em estruturas enraizadas em toda a humanidade, cabe discussão. Mas o fato é que George Lucas explorou conscientemente um padrão narrativo que é, hoje, forte e eficaz como se tivesse mesmo um respaldo em nossa estrutura mental com seus arquétipos e inconsciente coletivo.

Já estamos tão acostumado com a Jornada do Herói que filmes que não seguem esse macetinho nos parecem chatos e entendiantes. E já estamos tão acostumados, que a indústria hollywoodiana, e aqui aquela crítica vazia torna-se mais preenchida, vem explorando ao máximo as histórias passíveis de virarem jornadas: cria uma penca de heróis que saem de seus mundos comuns, encontram mentores, e embarcam em aventuras de transformação.

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Este texto foi escrito baseado no conceito de monomito (Jornada do Herói) estabelecido por Joseph Cambell, em particular no seu livro O Herói de Mil Faces. Para saber mais sobre o assunto, de forma didática e direta e aplicável aos filmes e livros, recomendo: 

- A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores (livro de Christopher Vogler)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Por que os homens não nascem Homens?

Nossa cultura tem uma forte paixão pela natureza. Não no sentido de árvores e animais (quem dera!), mas no sentido daquilo que, acredita-se, está inscrito invariavelmente em nossos corpos e mentes e que, portanto, dita o modo como nos comportamos.

Genes, instintos, hormônios, essas seriam as chaves explicativas para o que fazemos e como fazemos. E principalmente para uma dimensão muito intensa de nossas vidas, que é a vida sexual.

Gostamos de pensar que nascemos homens e mulheres como que num pacote fechado e pré-determinado por natureza e nos ofendemos com quem insinua o contrário ou, pior, tenta viver fora desse suposto pacote natural, fechado e pré-determinado.

Em um ano que tanto se discutiu (e deturpou) a respeito das discussões de gênero na escola, este texto vai na direção de tentar mostrar como a sociologia explica esse treco complicado que é ter um gênero. Por questões de recorte e familiaridade, falarei especificamente dos homens, apesar de quase todo o texto poder ser adaptado às mulheres.

Afinal, por que é que homens não nascem homens?

Vamos a uma discussão introdutória baseada em alguns princípios elementares dos estudos de gênero.



O social por detrás do natural.

A Sociologia é uma ciência que se propõe a explicar os fenômenos a partir do social. Assim, as respostas que ela traz tentam demonstrar as construções sociais, e portanto culturais, por detrás dos acontecimentos - inclusive por trás daqueles fenômenos que pareciam ser naturais.

Deste modo, ser homem ou ser mulher, em termos sociológicos, é um processo de construção social entrecortado por fatores culturais e muito longe de ser simplesmente algo natural.

Abre parênteses. Ok, genes, instintos e hormônios podem ser relevantes. O ponto, porém, é reconhecer a importância dos séculos de história humana. Nela, uma infinita riqueza de produtos culturais e instituições veio sendo produzida, dando assim andamento ao complexo processo da vida em sociedade. E nunca seríamos o que somos fora da sociedade em que vivemos, nunca seríamos o que somos sem aqueles produtos culturais e aquelas instituições, que obviamente abrangem nossas masculinidades e feminilidades. Fecha parênteses.

Simone de Beauvoir (1908-1986), filósofa francesa, polemizadora dos ENEM's da vida ainda em 2015, em seu clássico livro O Segundo Sexo, foi precursora ao problematizar o processo social que existe por detrás do gênero feminino. Ora, ser mulher não é natural ou imediatamente dado ao nascer. E daí a máxima de que ninguém nasce mulher, mas, sim, torna-se mulher.

Mas e com os homens seria diferente? Nasce-se homem ou torna-se homem?

Seja homem!

É possível perceber que desde criança, seja na escola, nas brincadeiras, ou na relação com os pais, um constante exercício de masculinidade pesa sobre os meninos. Se insiste tanto em dizer a esse menino o que e como fazer, que é muito razoável questionar se ele chegaria sozinho às conclusões a que acaba chegando.

"Meninos não choram."
"Meninos usam azul."
"Meninos não brincam de casinha."

Longe de serem frases inocentes ditas ao menino, são a expressão do contínuo processo de formação e reprodução da masculinidade – isto é, do que um homem deve ser ou fazer. E é um processo que lida com valores artificiais.

Por que não chorar? Por que azul? Por que não brincar de casinha? 

E neste sentido, de valores artificiais incorporados, é que ninguém nasce homem mas sim torna-se homem.

Produtos culturais, como filmes, ajudam nesse tornar-se. Ali está o modelo de masculinidade que é perpetuado como o normal, natural, e esperado - mesmo que na prática poucos homens consigam ser como o modelo.

Ninguém consegue ser como James Bond, ter todas as suas mulheres, carros e autoconfiança; mas todos podemos achar que é assim que deveríamos ser – e, puxa vida!, como seria legal se fôssemos.

Os comerciais são outra fonte abundante do tornar-se homem.

Associando consumo e masculinidade, muitos são os produtos que garantem ao homem que ele será o que deve ser. O detalhe, porém, é que o próprio comercial está criando esse dever ser: o sujeito de muitas mulheres, o cara com o corpo impecavelmente malhado, o homem bem sucedido com boas roupas e carro de luxo, e por aí vai.

Repita isso desde a infância, nos mais diferentes contextos, das mais inventivas e variadas formas, e isto repercutirá no modo como nós intimamente entendemos o que é ser homem. E a tal ponto que acharemos que é natural ser assim ou assado, nos sentindo culpados se não o formos e até sendo agressivos com aqueles que não o são.

Aprendendo, na prática, a ser homem.

Sendo a masculinidade algo não-natural, então ela precisa ser ensinada. E mais do que isso, precisa ser praticada no dia a dia. Afinal, se somos homens é preciso mostrar que somos homens.

E para tanto existem desodorantes de macho, esportes de macho, roupas pra macho, e tantas outras coisas de / pra macho que tem como finalidade garantir ao homem sua identificação junto à masculinidade.

Isso faz girar perpetuamente uma roda acerca dos valores artificiais da masculinidade e garantindo assim que todos nós sejamos o produto mas também os produtores da masculinidade.

Essa necessidade de praticar diariamente a masculinidade (e também a feminilidade, apesar de não ser o foco desse texto) é o que a filósofa norte-americana Judith Butler (1956-) chama de gênero enquanto algo performativo



O natural que pode ser perverso. 

Há um processo social contínuo, que nunca para, e que é absolutamente intrusivo. Nele, engrenagens culturais giram aqui e ali para possibilitar que esse tornar-se homem alcance a nossa mais íntima consciência e autoidentificação - do que filmes e comerciais televisivos são apenas um exemplo.

Pelo viés sociológico, notamos ainda que existem modelos de masculinidade que são aprovados e outros que são reprovados, uma divisão que o discurso do "natural" reforça e tenta legitimar. E aí precisamos voltar o olhar crítico às tentativas de naturalizar comportamentos e modelos: muitas das vezes, o discurso do "natural" esconde um processo normatizador e profundamente violento, seja física ou simbolicamente, absolutamente desrespeitoso com a diversidade humana. 

O discurso do "natural", ainda, acaba sendo muito mitológico. O homem natural nunca existiu. E se restarem dúvidas quanto à não-naturalidade de ser homem (ou mulher), basta notar como as práticas relacionadas a este conceito mudam de cultura para cultura e de tempos em tempos.

Se houver qualquer gene, instinto ou hormônio determinando como ser homem, demos muitas provas de que há tempos já aprendemos como escapar deles e viver os gêneros com muito mais criatividade, o que só reforça a validade de pensar tais questões não por uma suposta determinação da natureza mas sim pela Sociologia e seus complexos processos sociais.

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Para saber mais sobre a perspectiva sociológica a respeito dos gêneros, recomendo a leitura do já citado O Segundo Sexo de Beauvoir, que trata especificamente sobre o gênero feminino, ou então A Construção Social da Masculinidade, de Pedro Paulo de Oliveira, cujo título não deixa dúvidas sobre o conteúdo.   

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Por que nos (des)apaixonamos tanto?

Todos temos nossa primeira paixão. E aí vem a segunda. Depois, quem sabe, a terceira. E a quarta, a quinta, a sexta, e por aí afora, numa sequência que pode ser bem, mas bem extensa, mesmo.

Nossos avós talvez se choquem com isso, com essa molecada do tempo de hoje que não tem juízo mas já tem uma coleção razoável de relacionamentos.

Mas o que espanta não é somente a aparente facilidade com que as pessoas se apaixonam; em outras gerações, causa estranhamento também a facilidade com que as pessoas desapaixonam nos dias de hoje.

- Ué, mas teu namoradinho não era o Bruno?
- Ih, vó, o Bruno foi mês passado.

E nossos avós não estão errados em se espantar. Algo aconteceu e tornou bem mais fácil o (des)apaixonar.

Afinal, por que nos (des)apaixonamos tanto?

Vamos tentar uma explicação sociológica usando da análise de Zygmunt Bauman sobre dos dias atuais.



Os tempos líquidos. 

Sociólogo polonês ainda em atividade, Bauman (1925-) é muito famoso e popular pelo uso do adjetivo líquido para explicar a atualidade.

Esse adjetivo tenta sintetizar uma série de rupturas e continuidades que ocorrem em nossa sociedade desde o final da Segunda Guerra Mundial, algo que abrange desde o modo com que pensamos até o modo com que sentimos (que, afinal, não são coisas tão separadas assim).

Diferente do passado, quando as coisas ainda eram sólidas e duradouras, quando as tradições ainda davam sentido, coerência e certa segurança às nossas vidas, nas últimas décadas tudo tende a ser líquido. Ou seja, as coisas se tornaram frágeis, escorregadias, indeterminadas, sem forma fixa ou previsível, e por isso incomodamente inseguras.

A dualidade que Bauman lança é a de uma vida social passada organizada em regras sólidas versus uma vida social atual organizada em regras líquidas.

E tudo que é líquido é bem dramático. Coloque algo sólido sobre a mesa e ele permanece parado; derrame algo líquido e será uma sujeira enorme. Conter, manusear, controlar, segurar, dar forma... tudo isso é perturbadoramente difícil de fazer com as coisas líquidas.

E, para Bauman, nós somos pessoas envolvidas num mundo líquido.

Consumismo, a nova religião.

Uma importante chave para entender os tempos líquidos de Bauman é o consumismo.

O consumo, é claro, sempre existiu na história humana, mas consumismo é algo bem diferente.

Consumismo é quando o ato de consumir se transforma no centro da vida social, algo como a força propulsora do nosso modo de vida, e isso definitivamente não existiu desde sempre na história humana.

Assim, adquirimos coisas não mais pela necessidade que satisfazem, mas sim porque sentimos uma necessidade absurda de adquirir coisas, mesmo que dispensáveis à nossa sobrevivência.

A lógica que guia o consumismo é a dos desejos que nunca cessam, e a consequência disso é nos atirar numa perpétua substituição das coisas que prometem satisfazer nossos desejos - que, repito, muitas vezes nada tem a ver com nossa sobrevivência imediata.

E sim, tudo isto é um buraco sem fundo, um ciclo infinito e insaciável, o cachorro que corre atrás do próprio rabo, mas que o mercado capitalista sabe explorar muito bem ao lançar periodicamente novos modelos de smartphones

O problema para o qual Bauman alerta, porém, é que o consumismo virou quase uma religião - e tem até seus templos, como shopping centers e afins. E assim começamos a pensar, sentir e agir como um consumidor em todas as esferas de nossa vida; os tais bons costumes, as regras, a moral, ou simplesmente a tradição, nada disso mais importa, só o que importa são os desejos e a possibilidade de satisfazê-los (mesmo que a satisfação dure pouco tempo e logo seja substituída pela busca de outra).

E isso pode fazer uma bagunça enorme, como de fato faz.

Quando elegemos como critério máximo nossos desejos e nossa vontade de obter prazer, e portanto adotamos uma postura de consumidores para tudo, dissolvemos as antigas certezas que regiam o mundo, mas eram tais certezas que nos conferiam segurança. Sabíamos o que fazer, como fazer, ou ao menos sabíamos o que podíamos esperar que o outro faria e como faria. Em tempos de consumismo, isso tudo se perde e é substituído pela liberdade de cada um agir como quer na busca pela satisfação dos seus desejos.

Este cenário reforça os tempos líquidos de Bauman. O consumismo desvairado torna as coisas ainda mais incertas, indeterminadas, imprevisíveis, difíceis de se conter, pegar ou manusear. As coisas tornam-se um fluxo, não estado fixo. 

E, naturalmente, isso alcança também os relacionamentos humanos. Envoltos pela lógica consumista, passam a dançar conforme a música dos tempos líquidos.

E aí haja (des)apaixonar-se!

Consumidores ou apaixonados?

Somos consumidores espertos. Não aceitamos ficar com produtos defeituosos, não aceitamos pagar caro pelo que em outro lugar é mais barato, e não aceitamos ficar com um modelo velho quando já saiu um modelo mais novo e melhor no mercado. Somos assim com computadores, carros, smartphones, roupas, calçados - e também pessoas.

O mesmo critério avaliativo que usamos na troca de um produto, nós usamos também para as pessoas com quem nos relacionamos, inclusive afetivamente.

E assim, a comparação que Bauman faz, mas que em sua visão é quase literal, é a de pessoas como produtos para consumo.

Tal como num shopping center, onde somos fisgados instantaneamente por algo exposto na vitrine e que nos promete algum tipo de felicidade, somos fisgados instantaneamente por uma pessoa que, quem sabe, possa satisfazer nossa vontade de prazer.

E ficaremos com essa pessoa conforme a satisfação durar. Quando a satisfação começar a fraquejar, ou a pessoa começar a dar problemas (esses defeitos que só aparecem depois que compramos algo!),  bem, há tantas outras pessoas, tantas outras possibilidades, então por que diabos eu deveria insistir nesse produto já ultrapassado e defeituoso?

O que torna esse raciocínio legítimo ao invés de frio e calculista é justamente a lógica consumista que permeia toda a nossa vida.

Quando as escolhas não são amarradas por tradições ou normas, e sim pela vontade individual dos envolvidos, pessoas podem ser avaliadas e descartadas sem muito drama - bem, a menos que você seja o avaliado e descartado, daí dá-lhe música de dor de cotovelo.

As paixões que se acumulam em nossas vidas, que podem ir de algumas até dezenas, parecem atender a esse modus operandi consumista. Não buscamos compromisso ou durabilidade; buscamos prazer, satisfação, felicidade, e sentimos muitas vezes, na verdade, que para conseguir tudo isso devemos mais é evitar compromissos e durabilidades.

Como se diz por aí entre os enamorados de longa data, o melhor do namoro são os três ou quatro primeiros meses, depois é só dor de cabeça.

Ora, por que não viver então numa eterna sucessão de três ou quatro primeiros meses, mesmo que o preço seja a troca das pessoas?

Conectar e desconectar.

Nesse sentido, Bauman usa a ideia de estar conectado para se referir aos relacionamentos típicos desses tempos líquidos.

Uma conexão é atrativa porque é possível fazer várias, mesmo que não muito profundas; amizades coloridas, rolos, ficantes, peguetes, podemos nos conectar com muitas pessoas, e são conexões flexíveis, que não precisam de muito gasto, investimento, dedicação ou mesmo proximidade - um viva para o Facebook.

Mas gostamos do estar conectado a outra pessoa principalmente porque é extremamente fácil desconectar. Conexões são superficiais e facilmente rompidas, e aí está seu atrativo. Em tempos de incerteza, onde não sabemos o que esperar das outras pessoas, mas que também buscamos continuamente uma promessa de satisfação que pode surgir a qualquer instante, como na fila do banco ou na festa de aniversário do seu primo, a possibilidade de estar livre, leve, solto e solteiro assim que desejarmos isso, é crucial.

O pavor com que imaginamos aqueles tempos loucos em que as pessoas se casavam com 20 anos, e com pessoas que talvez nunca tinham visto antes, ou então que eram seu primeiro e único amor (!), é só um reflexo de um tempo em que desconectar das pessoas está na ordem do dia.

Nos (des)apaixonamos tanto, e tão fácil, porque o consumismo toca nossas vidas e enche de incerteza e expectativas todas as nossas escolhas. Neste cenário, compromissos a longo prazo, ou decisões em definitivo, são difíceis.

Como saber se minha escolha em definitivo coincide com a escolha em definitivo da outra pessoa? Como saber se nunca vou me arrepender da minha escolhe em definitivo, ainda mais quando há tantas opções?

Temos que provar, experimentar, estar abertos à novidade que ainda está por vir mas que nem a imaginamos, ter sempre um botão de emergência para apertar caso se desconfie que a outra pessoa não está tão envolvida quanto desejamos e preservar assim nossa autoestima. O caminho da desconexão tem que estar sempre próximo e liberado. 

Afinal, quem é que compraria um celular hoje assinando um termo de que nunca, jamais o trocaria, que permanecerá com ele até que a morte os separe?

Celulares à parte, para as paixões o drama da questão se repete. Em tempos incertos e consumistas, é mais fácil se apaixonar e depois, quando bem calhar, desapaixonar.

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Este texto foi escrito baseado na obra de Zygmunt Bauman, principalmente Amores Líquidos. Se quiser saber mais sobre o autor, sua teoria e os tempos líquidos, recomendo os seguintes vídeos no YouTube: