quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Vivências #1 - Um sábado com blues

O cheiro de novidade vinha do lugar e do som. 

Bar novo em cidade desconhecida, banda de fora tocando um blues. Não-sei-o-quelá-blues-band. Esqueço o nome mas não esqueço o som. Demais mesmo, de arrepiar a nuca de quem gosta da mistura de ritmo e sentimento. Sim, blues é sentimento e a banda lembrou bem isso.

As músicas admito que não conhecia, pois ignorante que sou – e com um ouvido musical nada treinado! – não reconheci mais do que umas três músicas mais comerciais tipo Georgia on my mind. 

Mas com o perdão da tirada, para curtir um blues não é preciso saber o que se toca, é só ouvir, bater o pé acompanhando o ritmo e curtir toda a esfera criada pelo som. E uma esfera que só precisou de uma guitarra, uma batera e um baixo sem traste(!!). 

Num trio assim, tocando um blues daqueles, até uma toupeira musical como eu pôde perceber a diferença que faz quando o baixo entra na música e mesmo ficando lá atrás, escondidinho, é o tchan da coisa toda.
Se não fosse a escravidão, se não fossem as cidades sulistas dos EUA, não fosse toda a angustia e melancolia afro-americana, e se não fosse toda a indústria cultural de um mundo sem fronteiras, a noite de sábado não teria sido tão boa. Maldades a parte, blues é história contada e marcada na batida do pé, com gosto de álcool na boca e cheiro de fumaça no ar.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Filmes #2 - Valsa com Bashir (2008)


Titulo Original: Waltz with Bashir

Ano: 2008

Gênero: Documentário / Guerra / Drama

Cabem alguns apesares para falar desse filme.

Apesar de ser animação, não é para criança (incrível como tem gente que ainda faz essa associação besta).

Apesar de ser uma produção israelense, ele foge daquela esfera do (pseudo)cult onde ninguém entende o que está sendo dito na telinha mas faz cara de quem entende.

Apesar de ser um documentário, parece filme, e o contrário também pode ser dito.

Ari Folmann quer lembrar do que aconteceu durante a Guerra do Líbano, na qual ele participou, mas de algum jeito sua cabeça bloqueou qualquer memória disso. Parte então ao encontro de velhos conhecidos, que também serviram com ele na guerra, para reconstituir seu passado. Das lembranças dos outros relembra sua participação no conflito, e do encontro das lembranças suas e alheias surge a recordação das atrocidades da guerra.

O detalhe do filme fica na mistura documentário/filme; apesar de toda a história se desenrolar a partir da narrativa dos amigos de Ari, como se fossem entrevistas, as imagens vão acontecendo como que independente das falas, como todo filme ‘tradicional’ faz. As vezes pareceque é um filme sobre um documentário.

Também vale notar que o filme flerta o tempo todo com o real, não só por que retrata uma guerra documentada e tudo o mais, mas por que os personagens do filme são pessoas reais; uma animação do que de fato existiu, inclusive as conversas, as histórias, os relatos. Só não é mais real por que tudo foi desenhado.

Alias, o traço e as cores colaboram para entrar no clima do filme. Não obstante só vejamos desenhos morrendo e matando, a todo instante percebemos que tudo aquilo é bem humano, cru; e quem não percebe isso no decorrer do filme, ao final é forçado a lembrar.

Vale a pena, tanto a título de descontração – quem aprecia um filme bom – como para de informação – saber mais sobre a Guerra do Líbano(não sei se fui eu ou a escola, mas confesso que pouco sabia sobre esse conflito e fui obrigado a googlar). E, claro, também para a reflexão; alguns diálogos e situações dão muito o que pensar.

domingo, 29 de novembro de 2009

Notícias #1 - O preço de uma igreja

Em cada esquina podemos encontrar um motivo para não se chocar com o material da reportagem(versão resumida).

Com cinco dias, alguns tramites burocráticos, e menos de R$500, tem-se uma igreja fundada. E não se faz vista grossa, então qualquer corpo doutrinário pode legitimar a criação de uma igreja; igualmente dispensável é tratar do número de fiéis, basta um que queira levar a papelada adiante.

O Estado não pode interferir, controlar ou sufocar assuntos de fé e crença, então a prática religiosa vai assim, rodando lisinha nos espaços jurídicos e institucionais. Nada mau para um Estado tão ciente das necessidades humanas transcendentais, não fosse o que a reportagem insiste em mostrar: apesar do módico dispêndio(5 dias e nem quinhentos paus), a igreja criada goza de privilégios consideráveis.

Não ferindo a lei, pode organizar-se como bem entender; seus ministros religiosos, apontados dentro dos próprios termos da igreja, são isentos do serviço militar obrigatório e tem direito a prisão especial. E o grande X da questão: a igreja tem todo seu patrimônio livre de uma pá de impostos que todos os filhos de Deus não-fundadores-do-templo-divino têm de pagar. É a principal vantagem material da abertura de uma igreja, destaca bem a reportagem.

Ou seja, é um treco que dá muita desconfiança. Quero dizer, há muita conveniência terrena por trás de uma igreja, tanta que fica difícil encontrar a sublime intenção de levar a palavra de Deus, seja qual for a palavra seja qual for o Deus. A vantagem implícita compromete a causa explícita. É como o homem que trai a esposa/namorada com várias outras mulheres, mas garante que só ama a esposa/namorada, enquanto as outras são coisas casuais, só sexo, imperativos incontroláveis do instinto. Enfim, conveniência tanta que só pode dar em suspeita.

E aí, para um ateu como eu (com o perdão da rima), fica a questão de saber onde é mais problemático depositar a fé: em Deus ou em quem fala por ele.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Filmes #1 - Impulsividade(2005)

Título Original: Thumbsucker
Ano: 2005
Gênero: Drama

"Você ja sentiu como se quisesse muito... Sei lá, mudar?"


O personagem principal é Justin: 17 anos, tímido, calado, cabeludinho, branquelo e franzino. E piora: não consegue deixar de chupar o dedão da mão. É fuga, é vício, é tranquilizante. Os personagens secundários dão o tom: essa mania é inaceitável. O pai implica, a mãe tenta compreender, o irmão caçula só enche o saco. Na escola vive nas nuvens e isolado. O que também é inaceitável. Como mudar isso? Como passar a ser normal? Como deixar de chupar o dedão? A história narra algumas respostas, e outras dúvidas, para essas perguntas.

E...bem, se essa trama ainda não sugere ser um filme americano alternativo, as câmeras lentas regadas à musiquinhas desconhecidas e também lentas – quase deprês principalmente com Elliott Smith – completam a sugestão, pois se trata mesmo de um filme americano alternativo.

Todo o drama que se desenrola é bem comum, o que certamente resulta em algumas identificações do tipo ‘eu sei do que ele está falando!’, ou 'eu sei como é'. Principalmente para os jovens que beiram a idade do personagem principal , mas a identificação, já um tanto sublimada, é totalmente viável para adultos também.

Trata do esforço pessoal para ser alguma coisa, a tentativa de encaixar a vontade com a realidade. Um quase traumático posicionamento entre os três cantos de si mesmo: o que somos de fato, o que queremos ser, e o que os outros esperam que sejamos. O filme fala de algumas ilusões que usamos como estratégia para tornar tudo isso menos desagradável: uma mentira ignorada, uma esperança tola, uma droga curativa.

"Somos todos viciados em algo. Talvez uma idéia de nós mesmos ou nossas vidas. Talvez em alguma idéia de sucesso ou fracasso."


Os personagens da história vão se mostrando quase patéticos, extremamente inseguros, redomas de vidro. Parece que todos estão ainda vivendo um rito de passagem incompleto: começaram a crescer, a amadurecer, a descobrir-se; mas em algum ponto disso, estagnaram e parecem evitar a completude. E curiosamente – e esse é um ponto de se notar em cada detalhe do filme -, Justin, o Thumbsucker, o garoto problema, no final é o que parece sair-se melhor desse momento de transição. Mas toda essa fragilidade exposta é extremamente reflexiva: talvez só fosse preciso aceitar toda a bagunça humana, como insinua o dentista de Justin, papel interpretado por Keanu Reeves.

Aliás, um papel sensacional. Apesar de possivelmente o mais secundário entre os secundários, o seu personagem dá o tom geral da história e da trama. Acompanhar a metamorfose do dentista-hiponga-esportista para um destista-engomadinho, e por fim vê-lo um dentista-largado-fumante que aceita a sua bagunça humana, é demais.

E quando o filme acaba vem a grande e agradável recompensa: um final libertador. Mesmo para um final feliz -o que as vezes tende a estragar o filme -, é um final digno de nota; encerra de forma sensível um drama que tem o mérito de não ser cansativo apesar de seu ritmo lento.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O charme da Sociologia


Se existe uma graça na Sociologia – ou se preferir, as Ciências Sociais como um todo – é de explicar as coisas de modo terreno. Não apenas terreno, mas provocadoramente humano.

É mostrar como que comportamentos, atitudes e noções são manufaturadas em processos históricos e sociais. Que existem normas e padrões que são internalizados como naturais, e por isso sequer são postos em dúvida. Sociologia provoca a pensar que o que eu faço, sou e penso, não é natural e muito menos algo meu e só meu. Natureza e individualidade são duas coisinhas que, postas a prova, demonstram pertencer a esse treco esquisito e inventado chamado sociedade. E tão somente isso: sociedade. 

Um treco que não apenas faz a intermediação do nosso contato com a natureza, como muitas vezes nos dita o que é a suposta natureza. Há quem chame isso de sociolatria, quase uma troca entre deuses: tchau ao deus-sagrado-que-tudo-criou, oi ao deus-sociedade-que-tudo-explica. Não concordo, mas entre um e outro, certamente prefiro o segundo.

Preferência dada somente pelos fatos.

Exemplo fantástico é sobre o efeito da sociedade sobre as condições físicas das pessoas. Imagine sociedade onde as pessoas morrem simplesmente porque a coletividade sugere isso. O sujeito de repente quebra um tabu, é alvo de alguma magia ou ofende aos deuses, e pá, começa a definhar até a morte. Coisa de dias, semana. Não se registra doenças, nem físicas nem mentais, tão somente essas noções importantes no seio da sociedade, noções de magia, tabus, proibições, espíritos, etc, coisas que o indivíduo compartilha, que o indivíduo sabe muito bem; coisas que dizem que de algum modo o efeito de determinada ação será a morte. E realmente se morre. E para se evitar a morte só se, no caso de alguma regra quebrada, se reestabeleça a ordem espiritual das coisas.

Ora, se uma sociedade pode ter noções que impelem o indivíduo a morte só por que ele acredita que deverá mesmo morrer, dá pra se supor que ela pode explicar e engendrar um monte de outras coisas.


Nesse caso comentado, resultado de um estudo do Mauss, é sobre sociedades primitivas – falta um termo mais politicamente correto -, e talvez fosse difícil encontrar qualquer possibilidade de diálogo com a nossa sociedade moderna, atual, complexa – falta um termo menos pedante. Mas se as sociedades são diferentes, isso não exclui semelhanças.


Assim sendo, com o perdão da heresia, não acho tão difícil um diálogo. Macumba é um treco que até hoje dá o que falar; mal olhado, encanto, simpatia, uma porção de coisas que ainda são sustentadas por meras crenças, mera sugestabilidade, mas que tem quem jure de pé junto e pela mãe morta que dá certo.

O mesmo com a religião – por isso o antecipado pedido de desculpas pela heresia. Particularmente não creio em nada, mas não duvido quando alguém diz que a igreja fez tal ou tal coisa tipo curar doença ou coisa que o valha. Não duvido que a igreja ajude de algum modo os corpos enfermos. Só acho que a causa é outra que não uma explicação divina. Não tem quem diz que pensamento positivo é tudo nessa vida? Boa parte do pensamento religioso tá vinculado a esse otimismo invejável sempre a espera das graças de Deus, algo que faz parte da vida moral, coletiva e portanto social, de uma religião.

Como diria Mauss, tratar do psíquico e do orgânico sem tratar do social é deixar escapar a percepção sobre o complexto inteiro. É ignorar o encontro da natureza biológica com a natureza social.

Para finalizar, retorno ao ponto inicial do texto: é essa a graça da Sociologia, seu charme, seu tom adorável de provocação. 

O que nos é natural, o que nos escapa a compreensão, o que parece tão sublime, divino e etéreo, são coisas que podem estar bem aqui, dentro de nós, firmadas bem escondidinhas nos ossos da sociedade, coisas sem muita intenção nem razão; difíceis de se encontrar, e por isso vítimas há muito tempo de explicações supersticiosas. Sociologia é uma aposta generosa na capacidade humana.