Se existe uma graça na Sociologia – ou se preferir, as Ciências Sociais como um todo – é de explicar as coisas de modo terreno. Não apenas terreno, mas provocadoramente humano.
É mostrar como que comportamentos, atitudes e noções são manufaturadas em processos históricos e sociais. Que existem normas e padrões que são internalizados como naturais, e por isso sequer são postos em dúvida. Sociologia provoca a pensar que o que eu faço, sou e penso, não é natural e muito menos algo meu e só meu. Natureza e individualidade são duas coisinhas que, postas a prova, demonstram pertencer a esse treco esquisito e inventado chamado sociedade. E tão somente isso: sociedade.
Um treco que não apenas faz a intermediação do nosso contato com a natureza, como muitas vezes nos dita o que é a suposta natureza. Há quem chame isso de sociolatria, quase uma troca entre deuses: tchau ao deus-sagrado-que-tudo-criou, oi ao deus-sociedade-que-tudo-explica. Não concordo, mas entre um e outro, certamente prefiro o segundo.
Preferência dada somente pelos fatos.
Exemplo fantástico é sobre o efeito da sociedade sobre as condições físicas das pessoas. Imagine sociedade onde as pessoas morrem simplesmente porque a coletividade sugere isso. O sujeito de repente quebra um tabu, é alvo de alguma magia ou ofende aos deuses, e pá, começa a definhar até a morte. Coisa de dias, semana. Não se registra doenças, nem físicas nem mentais, tão somente essas noções importantes no seio da sociedade, noções de magia, tabus, proibições, espíritos, etc, coisas que o indivíduo compartilha, que o indivíduo sabe muito bem; coisas que dizem que de algum modo o efeito de determinada ação será a morte. E realmente se morre. E para se evitar a morte só se, no caso de alguma regra quebrada, se reestabeleça a ordem espiritual das coisas.
Ora, se uma sociedade pode ter noções que impelem o indivíduo a morte só por que ele acredita que deverá mesmo morrer, dá pra se supor que ela pode explicar e engendrar um monte de outras coisas.
Nesse caso comentado, resultado de um estudo do Mauss, é sobre sociedades primitivas – falta um termo mais politicamente correto -, e talvez fosse difícil encontrar qualquer possibilidade de diálogo com a nossa sociedade moderna, atual, complexa – falta um termo menos pedante. Mas se as sociedades são diferentes, isso não exclui semelhanças.
Assim sendo, com o perdão da heresia, não acho tão difícil um diálogo. Macumba é um treco que até hoje dá o que falar; mal olhado, encanto, simpatia, uma porção de coisas que ainda são sustentadas por meras crenças, mera sugestabilidade, mas que tem quem jure de pé junto e pela mãe morta que dá certo.
O mesmo com a religião – por isso o antecipado pedido de desculpas pela heresia. Particularmente não creio em nada, mas não duvido quando alguém diz que a igreja fez tal ou tal coisa tipo curar doença ou coisa que o valha. Não duvido que a igreja ajude de algum modo os corpos enfermos. Só acho que a causa é outra que não uma explicação divina. Não tem quem diz que pensamento positivo é tudo nessa vida? Boa parte do pensamento religioso tá vinculado a esse otimismo invejável sempre a espera das graças de Deus, algo que faz parte da vida moral, coletiva e portanto social, de uma religião.
Como diria Mauss, tratar do psíquico e do orgânico sem tratar do social é deixar escapar a percepção sobre o complexto inteiro. É ignorar o encontro da natureza biológica com a natureza social.
Para finalizar, retorno ao ponto inicial do texto: é essa a graça da Sociologia, seu charme, seu tom adorável de provocação.
O que nos é natural, o que nos escapa a compreensão, o que parece tão sublime, divino e etéreo, são coisas que podem estar bem aqui, dentro de nós, firmadas bem escondidinhas nos ossos da sociedade, coisas sem muita intenção nem razão; difíceis de se encontrar, e por isso vítimas há muito tempo de explicações supersticiosas. Sociologia é uma aposta generosa na capacidade humana.
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