quinta-feira, 29 de abril de 2010

Você é gay?

Há tempos atrás – não tanto quanto eu gostaria – minha mãe me perguntou isso. Depois, com certa periodicidade, a pergunta se repetia. Certamente que eu não gostava. Nada tenho contra gays e afins, mas se eu não sou, não gosto que achem que sou. Ninguém gosta de ser visto como o que não é.

Enfim.

Buscando os motivos e razões para levantar tal dúvida na mulher que me pôs no mundo, encontrei vários – mais do que gostaria. E aí vale lembrar uma das possíveis definições de masculinidade:

um espaço simbólico em que o homem vai se estruturar enquanto tal, ou, em outras palavras, é aquele punhado de atitudes, valores e orientações que se espera de um homem dentro de uma cultura, e que, portanto, uma vez incorporadas e praticadas, acabam por legitimar e definir o homem-masculino.

Exemplo clássico é a máxima de que homem não chora. Ou, pelo lado da negativa, chorar torna alguém um não-homem. Pelo menos afasta o cidadão do ideal de homem.

Obviamente que essa definição tem o manjado pressuposto sociológico, o da construção social que não é inata ou essencial. Ser homem – entendendo isso como o individuo que incorpora a masculinidade é se enquadrar numa série de determinações que se desenvolvem pela história em contextos determinados e em sociedades específicas. Perpassa toda a dinâmica da construção dos gêneros. E convenhamos. A menos que você acredite que desde os primórdios os meninos preferiam usar azul e as meninas rosa, é um pressuposto muito válido.

E o que tem a ver a dúvida da minha mãe com isso tudo? Fato é, e preciso admitir, que estou contido naquela suspeita faixa de homens que não são o estereótipo de macho. Gosto de mulher e tudo o mais. Mas não faço uma porção de coisas que se espera de um homem. Talvez faça inclusive o que não se espera.

E esse é o problema. Ser homem-masculino é ter pego tantas garotas que até se perde nas contas; é andar com aquela altivez que permite arrotar, cuspir e coçar o saco sem nenhum constrangimento; é não baixar a cabeça para nada e crer-se inabalável; é secar as mulheres e exclamar para todos os outros homens em volta ‘Que gostosa!’.

E, acima de tudo, é ser um publicitário desse tipo de comportamento, pois não se pode ser homem senão em cima do palco onde familiares e amigos, conhecidos e desconhecidos, te observarão e julgarão tua interpretação: encarnou bem o papel?

Ninguém pode ser um típico homem-masculino no escurinho do seu quarto.

Por essas e outras, entendo as dúvidas de minha mãe. Para revolta das feministas e desgosto dos pós-modernos, o homem varão, o homem macho alpha ainda impera. E desvios não são bem vistos.

Há outro tanto de tempo atrás, numa dessas noites de sábado, fui ver um show de uma banda qualquer. Dancei, bebi, me diverti. Fiz tudo que a mídia diz que deve ser feito num sábado a noite. Aí, no outro dia, um amigo vem falar comigo mal segurando o riso.

- Cara, minha irmã perguntou se você era gay.

E isso porque eu tinha dançado de forma estranha, dizia ela. Eu ri. As duvidas da minha mãe já me deram um humor único par lidar com essa situação.

Mas dá o que pensar. Nunca é fácil se afastar daquele espaço simbólico que estrutura a identidade masculina, mesmo que você ainda continue sendo masculino.

domingo, 18 de abril de 2010

A little help from my friends - Joe Cocker

Uma música simplesmente nostálgica. Por natureza, por contexto: a voz rouca, um backing vocal despretensioso, um quase sinônimo dos anos 60 e de Woodstock.

E... bem, ainda tem muito de uma certa nostalgia midiática para quem assistia Anos Incríveis e se remoia de raiva diante da estupidez do Kevin e das constantes sacaneadas que a Winnie armava pra cima dele.

Mas a música fala por si.

E a apresentação naquele palco de Woodstock em 69 foi sinistra. Joe Cocker consegue ter uma série de ataques epilépticos e permanecer em pé, sem parar de cantar! O transe do cara era de tal tamanho, que se alguém perguntasse o que ele estava fazendo certamente que a resposta nada teria a ver com palco, música ou festival.

Há quem assista ao clipe só para ver se no final o barbudo-cabeludo-todo-suado explode, infarta ou sai voando dali rumo a uma psicodélica viagem a Júpiter.

E a impressão que fica é de que tudo isso estava mesmo prestes a acontecer.





domingo, 11 de abril de 2010

Pulseiras do sexo

E saiu mais uma reportagem sobre as pulseiras do sexo, dessa vez no Estado de São Paulo desse domingo. Aparentemente, nas escolas quase tão ruim quanto à gripe suína só mesmo as pulseirinhas.



Desde que ouvi falar disso, no final do ano passado, aderi à opinião de que todo o bafafá em cima do caso é porque os pais não suportam saber que seus filhos e filhas tem noção do que é sexo – em suas diversas modalidades e níveis – e, pior, em seguida quase morrem por saber que eles até se arriscam a praticá-lo de alguma forma. Claro que é potencialmente problemático o fato de adolescentes ou quase-adolescentes saírem por aí com brincadeiras maliciosas ligeiramente irresponsáveis, mas o medo dos pais frente ao sexo dos filhos é sempre descabido.

Podiam nascer filhos com preservativos embutidos e estéreis até os 25 anos que ainda assim pais e professores ficariam horrorizados com as pulseiras coloridas e libertinas.

Aí o que o medo não engloba, a eterna estupidificação dos jovens cai matando. O que a mídia dá a entender é que se você estiver usando uma pulseira preta e outra pessoa arrebentar ela, você vai mecanicamente ceder seu sexo. Ou então uma segunda possibilidade: se você não souber da história das pulseirinhas e alguém a arrebentar, a pessoa que arrebentou vai te explicar como funciona, você vai dizer ‘aaah tá’, e aí sim vai ceder teu sexo. Em suma, qualquer adolescente teria mais compromisso com o significado de uma pulseira em seu braço do que propriamente com o que acha, deseja, ou pensa. Uma verdadeira tábula rasa antes de vestir a pulseirinha colorida.

Eu, na minha insignificancia, não acredito que são as pulseiras que fomentem esse comportamento sexualizado. A coisa já está lá, e se as pulseirinhas servem a esse fim, elas são exatamente isso, uma ferramenta, um meio, um instrumento. Proibir e demonizar nada adianta; qual um caso bem sucedido em que proibição ajudou a atingir o objetivo pretendido? Aliás, as pulseirinhas não devem estar desconectadas do tradicional distanciamento negativo que os pais forçam, e que as escolas ainda tratam como tabu, sobre o sexo dos jovens.

Hoje, na reportagem a que me refiro na primeira linha desta pequena manifestação subjetiva, a autora defendia ainda que as pulseiras são, em síntese, mais uma manifestação do machismo. Garotas rotuladas e de fácil acesso aos homens. E por que elas se rotulam? Por sentirem pressão do grupo sobre a virgindade e a experiência sexual, logo necessitam entrar nesse joguinho mesmo contra suas vontades.

Aí é estupidificar especialmente as mulheres como sendo particularmente alienadas, além de fazer de conta que elas, e só elas, precisam vestir um papel ditado pelo todo – pais, escola, amigos, mídia – do que é ser um jovem quanto sua sexualidade. Tanto garotas quanto garotos sofrem dessa pressão, contraditória e imperativa, logo temos um mecanismo que aje tanto nelas quanto neles.

Claro, deve mesmo ter toda uma carga simbólica, talvez machista, notável na particularidade de que a mulher é quem tem sua pulseira rompida. Igual probabilidade é a de existir mesmo a tal pressão e um certo agravo nas consequencias para a parte feminina. Mas se a análise social nos diz algo, é que dois indivíduos em interação estrategicamente tomam a ação do outro como referência, e que por mais que existam imperativos coletivos – como a pressão do grupo sobre virgindade e outras coisitas -, o sujeito sempre reage de algum modo. Ninguém é pura repetição e acatação, nem mesmo as mulheres em uma sociedade machista. Culpar um e vitimizar o outro não dá conta da situação, só inventa um bode expiatório (evidente que não estou tratando de casos de violência e derivados, pois aí a coisa muda totalmente de figura).

Se para haver uma briga precisam de dois dispostos a brigar, para brincar com as pulseirinhas do sexo a necessidade de dupla aceitação permanece, cada qual com seus motivos, problemas, reflexões, traumas e o que mais quiser, porém tem sempre um ponto de confluência que possibilitou o ato e que o machismo por si só não explica. Aliás, visões binárias de bom e mau, certo e errado, opressor e oprimido, sempre tiveram sérios limites.

Enfim, deixando a eterna polemica feminista de lado, acredito que é preciso parar de secar o gelo.

Pais, professores, escolas e a mídia deveriam se focar muito mais em atualizar o trato da sexualidade juvenil do que ficar demonizando a curiosidade e o desejo que, em parte, eles mesmo despertam e cultivam em seus filhos, alunos e consumidores, e que o jogo das pulserinhas só vem trazer à tona.

Fé na ciência

O curso de Ciências Sociais molda nossas perspectivas em uma direção muito clara: a interpretação do mundo pelo viés social. Aprendemos a usar e abusar dos argumentos relativos, culturais e contextuais. Adoramos traçar as estruturas históricas por detrás de cada ato, fato ou padrão comportamental. Ressaltamos sempre como a sociedade forma e deforma homens, mulheres e crianças. Tentamos evidenciar que o que existem na maioria dos casos são papéis sociais construídos, legitimados e excluídos por algum tipo relação de poder. E por aí vai.

Isso é bom, é útil, é empolgante. Encarar as coisas como transitórias e não como verdades absolutas caminhando para a eternidade é uma atitude timidamente revolucionária. É crer no diferente e na transformação. Possibilita ações planejadas rumo a um determinado fim – que esperamos ser um fim que tome como prioridade o bem coletivo.

Mas essa perspectiva tão social tem seus percalços.

Me faço de exemplo: não creio em nenhum deus ou motivação divina, mas acredito fielmente que o social – no seu sentido mais amplo - pode explicar tudo, inclusive as próprias explicações que usam de deus e causas divinas.

Só que o problema pode começar justamente quando, sentado sobre o topo da sociedade enquanto argumento último, eu olho para baixo e vejo as outras coisas como mero fenômeno cultural; às vezes alienação, às vezes mecanismo de dominação, às vezes ainda por determinar o que é, mas certo de que nunca será algo que fuja do social como causa.

Isso, além de arrogância, parece uma contradição que surge fundada na própria atividade científica, pois não é novidade conceber a ciência como um poço ao qual nunca vemos o fundo, já que o plausível hoje amanhã pode ser motivo de risos – exemplo bobo, forçado e categórico, é o do terra plana -, e que quando vemos o fundo podemos apenas estar vislumbrando a ilusão de uma vontade.

Assim, delegar a explicação última na sociedade pode ser incorporar justamente o que tanto se criticou e ainda se critica, por exemplo, na religião: um discurso dogmático cego a qualquer contradição, seja interna ou externa. É recusar a ver que a ciência, e talvez principalmente a ciência social, tem tantas hipóteses, teorias e meias verdades quanto outros sistemas de conhecimento e interpretação do mundo.

Acredito mesmo, com toda minha consciência, na causa social como maior explicação possível e viável das coisas. Mas é somente isso: uma explicação possível e viável. E no campo do possível e do viável, há muitas outras explicações. Logo, a atitude mais correta pode ser não a busca da verdade prometida que ninguém sabe se existe, porém a busca do enfrentamento dos limites de cada perspectiva interpretativa, encarando um debate construtivo onde diversas explicações possam conversar.

Não basta trocar o deus lá de cima pelo deus-sociedade; pelo menos não em nome do que gostamos de chamar de ciência.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Falta do que mesmo?

A luz acabou, de novo, em parte do centro de Curitiba. Terceira vez em quatro dias. E basta isso, o apagar das luzes, para que a nossa cidade se veja entregue à barbárie.

E não é algo como voltar à barbarie, pois ela nunca foi embora, nunca nos deixou. Sempre esteve aqui, freada por nós, dentro da gente. Contida mesmo por aqueles semáforos em suspenso sobre as ruas.

E que falta fazem esses semáforos.

Quando eles deixam de dar a ordem repetida diariamente – tão diariamente que qualquer cidadão minimamente socializado sabe o porque e a intenção daquelas três luzinhas -, o caos volta a reinar. Parece que ninguém nunca pegou um carro, jamais tomou conhecimento da dinâmica do transito, e não sabe que se há uma pista que vai há outra que vem e que por isso todos precisam de espaço. Esquecem que todo mundo está igualmente a fim de voltar para casa antes que aquela tarde cinza vire noite chuvosa.


Esquecem ou fingem esquecer. Desafiam qualquer interpretação otimista da natureza humana.

Faixa de pedestre não existe. Cruzamento é de quem chegar antes. Cortesia e educação são duas coisinhas vagamente lembradas. Buzina, dedos e gritos, em contrapartida, estão afiadíssimos.

E quando uma boa alma - aquela que faz valer toda nosso intelecto desenvolvido ao longo dos séculos - lembra-se de frear para dar vez aos carros que estão do outro lado do cruzamento, uma multidão sobre rodas, atrás daquele que freou, esbraveja enfurecida. Ninguém acredita que um mané vai deixar os outros passarem assim, à toa, bem na frente dele.

Todo mundo tem pressa, mas quando a luz acaba e os semáforos falham, a pressa se multiplica pela ignorancia comum e vira um auê só. E que auê.

sábado, 3 de abril de 2010

O náufrago

Vai ficar aí até aprender a ser gente, disse a mãe enquanto fechava o filho no quarto. Levado ao pé da letra, seria um longo castigo, mas na prática isso se convertia no período de uma tarde. Isso não diminuía o aborrecimento de Jorge; em seus sete anos, estava inconformado pela punição. Tinha certeza de sua inocência.


A mãe insistiu para que ele brincasse com o filho da vizinha - aquela mulher gorda que as vezes aparecia para tomar café depois do almoço. Mas como iriam brincar juntos? Jorge era o único sobrevivente de um acidente aéreo, estava sozinho em uma ilha tropical deserta; teria que comer cocos, bananas, e o que mais a natureza selvagem lhe oferecesse. Não cabia na história uma segunda pessoa, menos ainda o filho da vizinha. O moleque tentou brincar a força, adulterando a história, tentando convencer Jorge de que dois poderiam ter sobrevivido ao desastre de avião. Não, só um pode sobreviver!, rebatia Jorge em sua lógica infantil. E como essa lógica não convenceu o filho da vizinha, que insistia em pentelhar, Jorge se atracou com o moleque puxando cabelos e dando socos espalmados. Daí veio o castigo.


No quarto, com o bico do tamanho de uma tromba, ficou deitado de bruços sobre a cama, deixando a cabeça pender para fora enquanto olhava o chão. Só um podia sobreviver, repetia seu argumento em silêncio.

Um pontinho preto, um pouco amarronzado, cruzava o chão do piso branco do quarto. Jorge olhou atento. O pontinho se aproximava, e quando chegou perto, podia-se ver que se tratava de uma formiga. Com suas mãos fofas e dedos roliços de infante, olhos em faísca pela descoberta, o menino atirou-se ao piso para cercar o pequeno inseto. Agora você é minha, bradou animado, esquecendo do castigo que cumpria.

Voltou a ser um homem ilhado, preso em uma ilha calorenta de palmeiras e praias, com a diferença de que tinha encontrado um outro sobrevivente do acidente aéreo, um cachorro. Mas faltava um nome ao animal, dilema que Jorge resolveu chamando-o amigavelmente de Bidu.

A formiga estava cercada, não podia escapar para lugar algum; as mãos de Jorge a impediam, e como se rebatesse nelas, ficava indo de um lado ao outro no pequeno espaço que o cerco deixara. O homem agora cruzava a ilha ao lado de seu animal, explorava cavernas nunca antes pisadas, procurava por água que não fosse do mar e frutos maduros que pudesse comer.

Mas para tanta exploração, tinha que se movimentar. Jorge não queria deixar a formiga escapar, mas também não podia deixa-la ir embora. Fazia parte da história. As mãos que até então cercavam o pequeno inseto, agora tentavam apanhá-lo. Jorge percebeu que era grande demais para pega-la. Pensou em uma pinça, mas também não daria certo. Dispondo só de sua engenhosidade de criança, esticou bem o indicador e tentou fazer com que a formiga subisse nele.

Para onde aquelas perninhas minúsculas corressem, Jorge antecipava seu dedo na frente do caminho, mas a formiga não cedia. Ao encontrar com o dedo, mudava a direção. O dedo acompanhava cada guinada dada pelo inseto. Na ilha Bidu fugira, e o sobrevivente do acidente aéreo corria a ilha toda em sua busca.

Por um instante, as tentativas de fazer com que a formiga subisse em seu dedo fez Jorge divertir-se mais com elas do que com a brincadeira que corria solta em sua imaginação. Dava aquelas risadas curtas e espontâneas, se animava cada vez que acreditava ter tido exito; o inseto não subia, evitava aquele indicador que o perseguia, mas Jorge se ria.


Tanta foi a animação que seu dedo ao invés de deslizar pelo chão no encalço da formiga, agora parecia digitar um teclado de uma tecla só. Dava pequenos tapas com o dedo, tão rápidos quanto conseguia. Sua exaltação pela perseguição fugiu do controle, e ainda tinha um sorriso divertido no rosto quando notou que seu indicador pousara violentamente sobre o inseto.


O rosto ficou cinza e os lábios murcharam. Temeroso, ergueu o dedo e pode ver que a formiga, em sua delicada natureza, estava morta. Mais do que isso, tinha esfarelado, desprendendo patas do corpo, e o próprio corpo se fez em duas pequenas partículas sem vida alguma. Pedaços inertes como o olhar surpreso de Jorge. Não teve reação.

O sobrevivente não encontrou mais Bidu. Sentiu brotar a tristeza e uma solidão implacável. Com a ilha toda só para ele, teria que procurar por água, cocos e outros frutos sem nada nem ninguém para lhe ajudar. Teria sido bom se mais alguém tivesse sobrevivido, concluiu cabisbaixo, sentado debaixo de uma palmeira enquanto contemplava o infinito azul do mar fundir-se no infinito azul do céu.