sábado, 30 de outubro de 2010

Dançarina

O desconforto generalizado me avisa: estou acordado. Mas, hoje, não estou sozinho.

Ela dança em torno da minha cama. Suave, os pés parecem não tocar o chão. E não ouço nada, nem música nem o farfalhar de suas roupas largas – onde estarão os sons que a movem?

Não vejo seu rosto, não sei quem é. Num rodopio tudo se distorce, consigo apenas notar sua pele clara, acetinada. Talvez uma estátua de mármore não fosse o calor que exala.

Ela se aproxima e me sinto confortável. Sensação rara com essa doença me consumindo. Ela ainda dança e se aproxima. Conforto, calor, leveza. Conforto.

Quem é você?

Sinto que estou delirando, não sei se penso ou se falo. Minha boca chegou a abrir? Ela continua a aproximação. Vem por rodopios sensuais, misto de luxúria e mistério.

Quem é você?

Ela chega lenta ao meu lado. Sem sair do lugar, mantém o corpo num balanço brando, a dança prossegue noutro ritmo. Me encara, espera por algo. Mas seus olhos inexplicáveis trazem uma estranha paz. Fico assustado. Preciso saber quem é ela. E então eu a sinto mais do que nunca quando pousa os finos dedos sobre meu peito. Num passe de mágica minha curiosidade cessa. Não preciso saber nada. Não preciso mais de nada... Confortável como há tempos não ficava.

Digo num último suspiro tudo bem, está tudo bem.

Ela para de dançar, interrompe seus movimentos atemporais – agora, depois, antes, nada importa naquela dança. Sorri para mim feito velha amiga e então fecha os olhos. Eu a imito, embarco na escuridão.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dia das Crianças, parque e promessas.

Caminhando no parque, dando voltas e voltas numa pista de concreto que circunda um lago, dentre bosques e pontes e gramados, as pessoas se esbarram pela estreiteza da pista; não esbarrões físicos e truncados. Não, é um esbarrão de outro tipo.

O que acontece é que pessoas, feito universos de diferentes lógicas e leis, por um segundo - bem naquele preciso segundo que comporta lado a lado o que vai e o que vem, o ponto de encontro do sentido horário com o anti-horário - se encontram, colidem em um nível imaginário, e tomam conhecimento uns dos outros. Olhar nos olhos, cumprimentar, prestar atenção de verdade ou não, ignorar com toda a prerrogativa de suas individualidades; as reações são várias. Mas o que acontece é que vidas alheias chegam a ouvidos alheios, e sem nunca encerrar por completo o sentido desta descoberta. Afinal, as pessoas, feito universos, são coisas de medidas nunca precisas.

***

Completamente cobertos pelas sombras das árvores, exatamente na parte mais afastada e por isso mais tranquila da pista de caminhada, os dois traziam um quê de solidão nos ombros. Caminhavam lado a lado, de mãos dadas, lentos, sem pressa; ele já trazendo uma insidiosa calvície dentre os cabelos parcialmente grisalhos, enquanto ela trazia, no máximo, seus 7 anos – ou menos? - e um vestidinho rosa combinando com fita vermelha amarrada em laço no pulso . Resquício daquele Dia das da Crianças, na certa.

Vistos de longe, pareciam não mover as bocas. Traziam juntos o silêncio – que tal qual a solidão, parecia maior no lado dele - e parecia ser um silêncio em suspenso, daqueles que pairam feito nuvem de chuva e cedo ou tarde há de desmanchar terra abaixo. Depois de tomar folego, é ele quem dá os primeiros pingos:

- Mas eu vou cuidar de você, tá bom? Mesmo só nós dois, o papai cuida de você, tá?

A menininha prosseguiu seus passos lentos. Guiada pela mão do pai que gentilmente segurava a sua, não disse nada. Porém, com a boca entreaberta, aqueles olhinhos vivos e úmidos matutavam alguma coisa, reagiam àquela singela promessa. Então, como se tivesse sofrido de um pequeno atraso no processamento das informações e elas surgissem assim, de supetão, num sobressalto ela levantou a cabeça com toda decisão.

- E eu cuido de você também, pai!

Corajosa, ela não quis ficar fora das promessas. Como para selar o pacto, usou então das duas mãos, suas diminutas mãos, para segurar a do pai.

As árvores à beira da pista continuavam a fazer uma só sombra, densa e pacata, enquanto os dois continuaram caminhando pelo parque; iam agora num silêncio não tão suspenso, pois os primeiros pingos da esperada chuva já se faziam sentir. A chuva que lhes levaria embora a solidão.

sábado, 9 de outubro de 2010

9 de outubro de 1967

Minha primeira camiseta do Che arrancava comentários de todos os lados. Uns poucos de simpatia, a maioria de provocação. Coisas de cidade pequena, eu acho. E nada que fosse além de um 'bonita camiseta!' vago, ou então as famigeradas piadinhas típicas do ensino médio – então eu tinha 15 anos e vivia nos ambientes próprios da idade -, todas aproveitando-se da ambiguidade sonora latente de Che Guevara.

Por sua vez, um amigo, quando notou que eu insistentemente usava a camiseta do Che, como um desabafo, disse: Meu, esse cara aí saiu de moda na década de 60!

Bem, em parte. A avalanche de produtos Che diz o contrário. Como os BelduinoS bem cantaram, capitalizam o Che. Essa moda comercial, fria e consumista, nunca abandonou o guerrilheiro da nossa américa.

Seja como for, eu tinha uma paixão genuína pelo mito Che. E como toda paixão, olhada agora em retrospectiva, algumas coisas podem ser contabilizadas enquanto outras não.

Conto quatro camisetas baratas, uma boina e uma tatuagem, tímida, de henna. A contagem envolve ainda cerca de um ano e meio deixando os cabelos crescerem desgrenhosamente, e cerca de dois de boicote ideológico a tudo que era de grandes marcas, principalmente da Coca Cola... Ímpetos um tanto ingênuos, admito.

Outras já não se contam facilmente. Um senso ético bem afiado – em uma palavra, chato -, um até então inédito abrir dos olhos, e também uma suspeita opção por cursar Ciências Sociais.
Porém, ao lado da contagem, de alguma forma, quando olhada em retrospectiva, essa paixão parece apagada. A clássica imagem do Che vira apenas uma sombra que ignora o olhar altivo e inexpugnável de um dos mais importantes homens do século passado. Os textos inspiradores, as anedotas de guerrilha, os discursos inflamados, tudo perde-se em uma neblina dada pela memória que vai, aos poucos, se enchendo de outras coisas.

Mas lembro ainda do meu amigo dizendo que o Che saiu de moda.

E sei que em parte ele saiu mesmo. Mas essa parte que saiu, essa parte que não diz respeito à avalanche de produtos Che; essa parte realmente fantasiosa é aquela que no alto de sua retirada forçada nos faz exclamar, ante sua ausência, um profundo que pena. É um desencantamento a mais.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Folha em branco

No horizonte do tempo os anos luzem, promessa convidativa de uma folha em branco. O que escrever, o que desenhar? Pode-se tanto e tanta coisa é possível.


Então o pulso fraqueja e os dedos entortam.
Frágil, a mão vacila sobre a folha.
Nenhum traço, sequer uma letra. Nada sai.

A folha em branco, indiferente, permanece. É cravada à força na retina dos olhos assustados, os olhos donos da mão e do medo; esses olhos vitimados pelo branco perturbador que ameaça ser eterno.