segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Transitoriedade


Olho para o quarto revirado e o desconforto pulsa. Lá dentro do estômago e subindo para o peito, caminho fundo, visceral.
As roupas ao chão, ordenadas em pilhas. Os calçados dentro de sacolas plásticas. Os livros num outro canto, pois entrarão primeiro para fazer o chão da mala. E ela, a mala, aberta, vazia, apta a receber tudo. O quarto ainda vai cheio, bagunçado, mas quando tudo for para a mala a sensação vai ser pior. Estômago e peito unidos e torcidos.
Restará o desconsolo da cama com lençóis que não vou usar. Travesseiros onde não vou mais encostar a cabeça no ritual de toda noite. O abajur, velho de guerra e de páginas, não mais iluminará minhas leituras.

Tudo agora é um passado recentíssimo. Coisas a serem deixadas para trás.
Respiro fundo. E agora?
Num lapso lembro do budismo que já há um tempo que não leio. Deveria ler mais, censuro-me. Transitoriedade, não é?
Se um cair de folhas de uma árvore é belo, e se isso nada mais é do que o sinal da transitoriedade máxima e inevitável da vida, por que então a minha mudança, também manifestação da transitoriedade, há de ser sofrida?
Respiro de novo, mais fundo, tentando usar aquele canto aqui dentro que ainda vai torcido e repuxado. Lembro de pessoas, de lugares, de hábitos. Estão esvanecendo pelas mãos do amanhã.
Transitoriedade.

E agora, gozado!, na iminência da separação tudo é outra cor. Outro cheiro. Nunca notei como a cortina trespassada pelo sol colore o quarto num laranjado tão confortável. E nem reparara como o armário, já antigo, cheira à infância, bem àquela infância pela qual eu passei. Tudo isso agora é muito mais sentido. Descubro um novo nariz, novos olhos. Se eu tivesse tempo sei que experimentaria um outro mundo, todo inédito. Coisas que eu nunca parara para sentir, não até agora.
Transitoriedade. Tudo é transitório. Efêmero. E não tem aí a sofisticação intelectualoide dum conceito sócio-filosóficos feito o de pós-modernidade. É simplesmente o sentir que o agora já não é mais, e que por muito tempo, com muito esforço, negamos. Nos apegamos, nos aferramos, desejamos mais do que vivemos na tentativa de negar que o agora desmorona inevitavelmente.
Então eu respiro, fundo, um esforço mais suave do que antes. Outro lapso budista. O que me resta é o agora, e aí vai a beleza. Não há mau nisso. Olho em torno e vejo o agora. Isso estou, isso vivo, isso sou. Agora. E tudo é mais palatável, sem puxões ou desconfortos. É só o meu agora, intenso e vivo, caminhando para frente. Girando com o mundo, expandindo com o universo. Ele faz parte daquele brilho que cruza o espaço até olhos que não sabemos se nos observam ou não.

Respiro, nem fundo nem raso. Só respiro. Vou até a janela do quarto e sinto que está ventando. O vento leva algumas folhas avulsas – anotações de coisas a levar, coisas a serem feitas antes de partir. E não importa.
Olho o quarto, a mala aberta, os pertences a serem removidos. Não vejo mais bagunça. É só a mais natural e absoluta ordem de ser das coisas: vejo mudança.  

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