terça-feira, 8 de março de 2016

Por que os homens são tão reativos aos assédios homossexuais?

Nessa semana, a internet foi presenteada com uma interessante pegadinha bolada por um comediante francês. 

O título, algo como "Amor à primeira vista entre dois homens numa escada rolante”. Nela, um presumível homem homossexual (o ator) roça intencional e maliciosamente sua mão na mão de outros homens presumivelmente heterossexuais (os não-atores) numa escada rolante.

Basicamente, o tipo de assédio comum que as mulheres sofrem constantemente, com a diferença de que a vítima é um homem e o assediador outro homem.

As reações dos homens assediados não foram das melhores e quase todas foram pela via da violência, mesmo que contida.

E aí a pergunta: por que os homens são tão reativos aos assédios homossexuais?

Ora, assédio é por definição algo inoportuno, impertinente; num contexto sexual, é uma investida sem consentimento e portanto, no mínimo, desagradável. É claro que ninguém gostaria disso.

E é claro também que os homens podem reagir agressivamente a um assédio porque nossa sociedade os dá direito a tanto, diferente dos direitos concedidos às mulheres assediadas – um silêncio incômodo, solitário, doloroso e não raro com sensação de culpa.

Mas podemos levantar uma dúvida: a que é que estes homens assediados estão reagindo, ao assédio em si ou ao assédio homossexual?

Se a reação fosse pelo assédio em si, poderíamos supor uma conscientização masculina que teria o efeito prático de diminuir o assédio que os próprios homens praticam contra as mulheres… algo que a experiência de qualquer mulher desmente facilmente.

Definitivamente existem algumas sutilezas nesse rolo, e a Sociologia pode ajudar a explicar.

Afinal, por que os homens são tão reativos aos assédios homossexuais?


O grande medo.

Naquele grande pacote de significados e expectativas sobre o dito (e fantasioso) 'macho de verdade', tem um elemento muito importante, uma coisinha que via de regra afeta todos os pretendentes ao dito (e, repito, fantasioso) 'macho de verdade': o repúdio da passividade.

Estes homens podem perder muitos dos seus sinais virilizantes e ainda assim se sentirão como homens. Podem não ter barba, podem não ter músculos grandes, podem não ser os lenhadores rústicos que arrancam toco a soco e mascam abelha para conseguir mel; mas ainda se sentirão homens.

Entretanto, tire desses homens a sensação de atitude, de iniciativa, de serem os responsáveis por toda ação que domina as outras ações, e eles podem ficar com seus egos seriamente abalados.

O ponto X do problema é a passividade.

É tipo aquela ceninha clichê em filmes e novelas, quando o cara turrão fica todo mordido porque a mulher fez alguma coisa que no cabeçote neandertal dele era ele, e somente ele, que deveria fazer – tipo pagar a conta.

A passividade é um grande medo para a masculinidade tradicional.

Passivo ou ativo?

A masculinidade tradicional está moribunda, já respira por aparelhos, mas muitas pessoas insistem em manter os aparelhos ligados e ficam aplicando ultrapassadas fórmulas de reavivamento. Assim é que muitos homens foram e continuam sendo socializados nela.

Sob seus auspícios, os homens aprendem que devem ser o sujeito de todo verbo, o núcleo de toda ação. Se conseguem ou não, isso são outros quinhentos. Mas o desejo é sempre presente: ser dominante seja lá onde e com quem estiver (o comumente conhecido como orgulho masculino).

Não à toa, muitos dos heróis do imaginário masculino são homens que expressam de modo soberbo pelo menos um tipo de dominância.

E é óbvio que essa dominância também vai se projetar nos relacionamentos de teor sexual.

Oito em cada dez manuais de paquera afirmam: o homem é quem deve puxar conversa com a mulher, o homem é quem deve convidá-la para sair, o homem é quem deve dizer a ela o que farão e onde farão, e por aí vai, numa grande reprodução da crença na dominação masculina.

E essa dominação terá seu ápice na própria relação sexual. Relação essa que não à toa é sintetizada vulgarmente, na perspectiva masculina, através de um verbo carregadíssimo de significados de atitude, iniciativa e dominação: comer a mulher.

Tudo isso só reforça o quão ativo aquele homem deve ser, fiel adepto da masculinidade tradicional.

Mas eis que aí, numa tarde de sábado, durante um rolê descontraído no shopping, bum!, um outro homem lhe passa a mão.

Todo aquele aprendizado e expectativa cultivada se veem abaladas. O verbo era dele, todo dele, especialmente em termos sexuais; e agora apareceu um outro homem que se coloca numa posição de superioridade ao tomar a iniciativa e fazer um avanço sexual. Surge esse homem que passivizou o 'macho de verdade'.

Mais do que provar do próprio veneno (lá de quando fez alguma gracinha inapropriada para alguma mulher), esse homem assediado prova o grande medo da masculinidade tradicional: o abismo da passividade. Se tornar o objeto da ação, e não sua fonte, é um tipo de capitulação não aceitável. Tanto pior se for o objeto da ação sexual de um outro homem.

Rebaixado à passividade.

Fosse um homem heterossexual que tivesse sua mão alisada por uma mulher, a reação muito possivelmente não seria aquela da pegadinha. Afinal, como este texto tenta problematizar, parte do incômodo desse homens assediados não é o assédio em si (essa violência de muitas faces, inclusive sexual), mas sim o assédio sexual feito por um homossexual.

O problema, portanto, é quando o assédio é feito por outro homem.

Debaixo do medo da passividade, a aproximação sexual de outro homem é visto como o risco de ser o inadmissível passivo.

Voltando ao categórico verbo sexualizado comer, mas trazido para essa aproximação sexual de outro homem, o medo da passividade divide o verbo em dois lados: o lado que come e o lado que é comido. E certamente a masculinidade tradicional não aceita o lado comido; o lado que come, vá lá, com atenuantes aqui e ali, há 'machos de verdade' que até aceitam; mas comido, nunca.

Quando se é assediado, mesmo que por uma mão que roça inadvertidamente na sua, esses homens despertam para esse grande risco da passividade desvirilizante.

Não é apenas um assédio, é uma transgressão de uma norma masculinista. Homens devem exercem a dominação, não é o que dizem? E a dominação de teor sexual é sempre sobre as mulheres, os objetos da ação, correto?

“E agora... como assim!? Tem um sujeito tentando me afanar, me colocando na posição de objeto!?”

O sistema operacional trava, pede por atualizações, mas elas não existem, não na masculinidade tradicional. Aí dá bug, dos brabos, vide cara embasbacada dos sujeitos da pegadinha quando entenderam que acabaram de ser assediados – um incômodo inédito para eles e diário para as mulheres.

E os bugs da masculinidade tradicional, conforme longa história registrada nos livros e noticiada todos os dias nos jornais, são resolvidos preferencialmente através da violência – que mesmo contida num punho fechado em tom de ameaça, é violência.

Sobre assédio e masculinidade.

Pode-se considerar que os homens reagem tão mal aos assédios homossexuais não por um princípio humanitário anti-violências, incluso aí o assédio. Reagem mal pois o assédio homossexual ataca a autoidentificação enquanto homens.

Assim, fosse ou não a intenção da pegadinha, ela serve para refletirmos. E não apenas para nós, homens, refletirmos sobre quão potencialmente desconfortável é ser vítima de algum assédio, mesmo que este venha por algo tão aparentemente inocente quanto um tocar de mãos.

A reflexão é também sobre quais dispositivos são usados na construção do sentimento de masculinidade. De algum modo muito perverso, em nossos tempos esses dispositivos são tais que podem fazer os homens reagirem não contra um assédio, e sim exclusivamente contra um assédio homossexual.

Afinal, na internet, não faltaram reações que reduziram a pegadinha à palavra viadagem. Ou então, quase em tom de orgulho, comentários dizendo que se fosse uma mulher a assediadora tudo seria diferente - afinal, os 'machos de verdade' estão sempre a postos para aventuras sexuais, não é?

Claro que seria diferente; pois o que parece mais incomodar não é o assédio, a violência em si, e sim a sensação desvirilizante de ser objetificado por um outro homem. Se o incômodo fosse com o assédio em si, muito possivelmente teríamos uma sociedade menos machista e violenta para com as mulheres; como não é, temos então esse quadro em que o problema mesmo, de verdade, parece ser quando um homem assedia outro, enquanto que outras formas de assédio contam com uma relativa e problemática anuência.  

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