Domingo, quase duas da tarde, a lasanha ainda descendo e o Roberto lá, todo estirado no sofá; pálpebras pesadas, ameaçava um cochilo gostoso quando o barulho seco de madeira batendo o trouxe de volta. Era sua esposa na cozinha preparando o chá e ruidosamente abrindo e fechando gavetas e portas dos armários, um aviso de que o programa para a tarde ainda estava de pé. Todo preguiça, mas bem treinado de outros domingos, ele levanta do sofá e vai juntando o que lembra: protetor solar, repelente, bonés, esteira de palha, óculos de sol... Óculos?
- Ô, Mô, cê viu meus óculos?
Mônica procurava agora a sacola grande retornável, aquela vistosa de sucessivas faixas coloridas. A compraram para a feirinha que acontece todo sábado na praça ali perto, porém só uma vez a sacola serviu ao propósito inicial ficando depois relegada a eventuais programas domingueiros como o de hoje. Quando a encontra Mônica logo desconfia; mete o nariz dentro e dá algumas fungadas feito cão de caça. O azedume denuncia que não foi lavada desde a última vez. Azar, pensa resignadamente. Ajeita lá dentro o pacote de bolacha de água e sal, um pano de prato, um potinho com duas facas e algumas frutas. Guardou um canto para a garrafa térmica com o chá, o que a faz lembrar de pegar o adoçante. É quando avista a caixa de bombons. Do fundinho do armário, como que escondida atrás do saco de arroz, a caixa de bombons surge reluzente e chamativa. Mônica fica indecisa, a mão vacila no meio do caminho. Levo a caixa ou não?, se pergunta e sente crescer a desconfiança de que esse presente inesperado dado pela sogra, que jurou não saber que o casal estava em dieta, tinha sido a última provocação daquela velha falsa. A indecisão lhe tomaria mais tempo caso não tivesse lembrado das frutas, do adoçante, do chá substituindo o refresco, da bolacha de água e sal(tão sem graça!), e não tivesse tomado consciência de como os bombons seriam uma traição a toda essa logística de baixa caloria, e sobretudo uma traição à promessa que ela e o Roberto fizeram no ano novo sobre emagrecer aqueles quilinhos a mais que a pacata vida de casados veio dando aos dois. Deixou a caixa de lado, a reservando mentalmente para um daqueles dias em que a vida se mostra azeda demais. Nisso a água ferve e é hora de colocar a erva em infusão.
- Tá pronto, Beto?, grita em direção ao quarto.
Passar um domingo de sol em um parque grande e verde tem algo de prazer e liberdade instintivos, como se houvesse o eco de uma infância da humanidade que permanecesse oculto no peito desses adultos chatos e só viesse à tona nessas ocasiões - ou talvez seja só o contraste com um apertado apartamento de dois quartos com vista direta para o prédio ao lado. Fosse pelo que fosse, Roberto e Mônica adoravam esse tipo de domingo. Abrigados sob a sombra das árvores, se espicharam sobre a esteira de palha e sentem o vento suave varrer o mormaço do verão; nisso até o chá quente dentro da garrafa térmica fica menos despropositado.
Os dois sorriem a dentes plenos, percebem-se despreocupados, transbordam boa vontade. E como que expressando isso arriscam algumas carícias de casal. Em público as carícias são sempre mais gostosas, como se carinhos e afagos ganhassem em sensibilidade quando com plateia. Claro que tudo muito comedido, afinal, há o bom senso – e há os cinco anos de casados servindo de barreira para a melação sentimental típica dos colegiais. No auge da descontração causada pelo parque, sol e domingo, concordam veladamente em brincar de ciúmes, porque a fulaninha assanhada do escritório do Roberto insiste em ficar curtindo tudo o que ele posta no Facebook, e também porque o filhinho-de-papai-saradinho do andar de baixo quando fala com a Mônica gesticula mais que italiano sindicalista só para desfilar os braços sem manga de camisa e provar que o dinheiro gasto em horas e horas de academia está dando resultados. Mas brincar de ciúmes refresca a paixão, devolve certo brilho na troca de olhares e sempre acaba em beijo dengoso.
Então alguém lembra do passado, das histórias que viveram juntos, dos amigos que já não veem mais. Recordam também que têm planos, como a grande viagem de férias para alguma belíssima praia no litoral nordestino e o cachorro – ou seria gato, tinham que decidir – que iam arranjar em breve, porque a experiência com os peixinhos já deu o que tinha que dar. E vamos combinar, né, Beto, com peixe ninguém se apega nem cria responsabilidade alguma! Sim, eles já estavam juntos havia um tempo, era hora de treinar a responsabilidade e logo imitar os casais conhecidos, acalentar aquela expectativa sem-fim das respectivas sogras. E quando tudo é dito e outro tanto lembrado, como que faltando o que mais dizer, concentram-se no chá e no molhar as bolachas dentro do chá.
Aos poucos reina esse silêncio só entrecortado pelo mastigar do biscoito e pelo sorver do chá quente. E aqueles lábios que iam sorridentes parecem desistir e se cansam, e murcham também aos poucos. Mônica vê boa hora para expressar seu arrependimento e se desculpa por ter esquecido de pegar as xícaras. É tão ruim beber nesse copo-tampa da garrafa térmica! Roberto diz que aquilo não tem importância.
Ela retira da sacola uma laranja e dos potinhos uma faca. Uma laranja sendo descascada faz um barulho gozado e em algum lugar do passado um deles notaria isso - mesmo já tendo notado outras vezes-, comentaria, e então ririam. Porém isso em algum lugar do passado. Porque agora ele repara num homem gordo, indo já pela meia-idade, todo encharcado de suor enquanto corre sofregamente debaixo daquele sol escaldante, e isso dispara a memória da lasanha que Mônica fez no almoço. Bichinhos invisíveis lhe roem por dentro deixando para trás a desconfiança que talvez ela não esteja levando a promessa da dieta tão a sério. Uma rachadura aparece e logo o dique todo se rompe. Uma ranzinzice que veio ali da última semana de trabalho, daquela encheção de saco que o babaca do chefe faz todo dia, se mistura difusamente com pequenas coisas sempre presentes da vida a dois - como o jeito egoísta dela em tomar decisões sem lhe consultar – e então algo precisa ser dito. Coisas que esperavam um momento de espetar o que quer que fosse e que precisam ser ditas. Ó, de lasanha em lasanha eu fico assim e você também. Acho que você deveria levar nossa dieta mais a sério, diz em tom de censura.
O vento ainda sopra sacudindo o mormaço, as folhas das árvores, e levando o domingo embora.
Final de tarde, o sol indo embora faz toda uma multidão voltar para suas casas. E Roberto e Mônica também, um casal contra o poente. Ele leva a sacola colorida, agora ainda mais fedida por mais um acidental vazamento de chá, e ela com a esteira de palha debaixo do braço. Uma cena bonita cheia de cores e sombras que talvez valesse uma foto para o Instagram. Roberto dá a ideia, parecendo uma compensação pelo azedume de quando falou da lasanha e da dieta. Contudo, ela recusa; diz que está com pressa para chegar em casa porque ainda precisam passar na padaria lá da esquina, e a essa hora deve estar apinhada de gente – e isso foi a ranzinzice ali de uma outra semana de trabalho, dos infernais filhos dos outros tumultuando a aula da professora Mônica, um outro quebra-cabeças de descontentamentos também aguardando sua brecha muito humana. E em direção ao poente os dois seguem sem conversa, sem contar para o outro a incômoda sensação de deja vu.
Mal entram no apartamento e já jogam as coisas num canto da sala. Vai primeiro ou eu vou?, pergunta Mônica. Ela vai pro banho e ele se esparrama no sofá, sentindo a mesma preguiça que sentia às duas horas da tarde, como se escondida até agora ali mesmo em algum canto só esperando o seu retorno. Mas agora já não é hora de cochilar, diz ao lembrar que amanhã é segunda-feira. Liga a TV, troca os canais, vê os gols da rodada, descobre que seu time perdeu, e acaba assistindo o depoimento molhado e orgulhoso da professa de primário do mais novo galã da novela das oito que, sorrindo sem graça, parece não lembrar muito bem da tal professora. E já ia fechando os olhos quando chegou sua vez de ir para o banho. Foi, mas não sem antes desligar a TV: tinham combinado que tentariam cortar em 10% os gastos com a conta de luz do jeitinho que o especialista em finanças domésticas do Fantástico sugeriu e garantiu ser possível – basta que todos na casa colaborem.
Com a toalha enrolada na cabeça e vestindo um roupão domingueiro daqueles que visita não pode ver, Mônica liga a TV. Não que queira assistir alguma coisa. É só que o apartamento pequeno que é, e com aquele estúpido aquário vazio sobre a mesa da sala, fica tão triste em silêncio que até a TV vem a calhar. E isso certamente justifica um gasto a mais na conta, racionaliza ela. Vai até a cozinha e põe a mesa com dois pratinhos para lanche. Ajeita sobre ela a sacola de pães, acha no fundo da geladeira o requeijão light, e fica nervosa por um momento quando não encontrou o peito de peru fatiado e pensou ter acabado. Mas estava lá, apenas escondido atrás da tigela com o restante da lasanha do almoço. Mônica pega também um tomate para rechear seu sanduíche. Então pensa em pegar e cortar logo dois, um para o Roberto. Contudo havia o cansaço do dia, e além do cansaço a visão da lasanha, bem a sua frente, que em algo lhe servia como argumento. Apanhou apenas um tomate e fechou a geladeira.
Depois de jantar os dois sentam em frente a TV e assistem o domingo entrar nas derradeiras horas. Ao longe, distante do apartamento, escutam motores de carros e motos; parecem surreais, como se saíssem de um lugar oculto só para entrar num túnel infinito, distante, até se abafarem por completo. Nessa hora o domingo é chato demais e eles percebem. Como numa defesa instintiva se aninham no sofá, só que evitam se encostar demais um no outro porque faz calor e os dois já não tem mais público. A tela traz uma sucessão de imagens, rajadas de sons diversos as acompanham, mas com dificuldade compõe algum sentido. Às vezes ele e ela riem, às vezes comentam algo, às vezes parecem economizar palavras, às vezes as sentem subtraídas. E não adianta, o silêncio entre os dois é reinante, quebrado só pela TV e pelas embalagens barulhentas dos bombons que os dois estão comendo e não lembram quem, ignorando a promessa, trouxe aquela caixinha de irresistíveis calorias – seria talvez um daqueles dias de vida azeda demais? E sem que se deem conta o apartamento vai ficando infeliz, todo pintado de azul, uma marcha lenta, aos poucos, como se alguma coisa gasosa e densa entrasse pela janela do quarto e contaminasse todo o resto, bem lentamente, feito bolo assando, estufando pelo calor e pelo fermento, finalmente surpreendendo por ter ficado tão grande.
De repente Mônica tem um sobressalto e abruptamente desencosta a cabeça do ombro do Roberto. O que foi?, ele pergunta. A sacola! É melhor por de molho e amanhã de manhã pendurar no varal, senão domingo que vem não dá pra ir no parque, ninguém vai aguentar o fedor! Ele apenas estala a língua com descaso e puxa a cabeça dela de volta, disposto a retornar o ombro à condição de travesseiro. Deixa pra lá, Mô, domingo que vem é domingo que vem, tá longe, quem sabe chova, quem sabe a gente almoce na casa dos meus pais, quem sabe a gente não faça nada e fique por aqui mesmo.
Por aqui mesmo, pensam os dois, por aqui mesmo já há algum tempo. E sem deixar que o outro perceba, temem que por aqui mesmo por muito mais tempo.