segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Cara, honre suas bolas!

     Dois caras conversavam perto de mim. Na mesa ao lado para ser mais exato. E não sei se foi pelas cervejas que eles tomavam, mas conversavam de tal modo que escutá-los não era indiscrição nem esforço. Um deles contava da infelicidade amorosa: gostava tanto da garota mas ainda assim não conseguia se aproximar dela, nem sequer fazer algo que o conduzisse ao sucesso afetivo. E depois de contar casos e acontecimentos, tantos quases e outras tantas possibilidades, seu interlocutor interrompe:

- Cara, honre suas bolas! Deixa de frescura e fale com ela. 

É, você mesmo, honre-as!
   Tá aí. Esse tal do honre suas bolas é mesmo uma expressão curiosa. Curiosa e corrente na vivência masculina. Talvez não com essas palavras, talvez em outro contexto, mas o sentido está lá, sempre presente.  

   Que sentido?

   Um sentido de regra, de norma, de enquadramento. Isto é, ter bolas é ter de agir de um tal modo.

   Geralmente as bolas são invocadas para lembrar justamente como um homem deve ter atitude. Homens não vacilam, homens não sentem insegurança; não, homens honram suas bolas.

   Homens tomam a frente, fazem acontecer, marcam presença, enfrentam desafios, não fogem do confronto. Isso é ter bolas, ter colhões, ter o saco roxo(salve, Collor!).

   No fundo, temos aqui nada mais do que nosso regime de gênero se fazendo valer. Mais do que expressões, são expectativas acerca de um comportamento legitimado e que diz o que é masculino e o que é feminino. Neste caso, que o masculino honra suas bolas e com isso é um homem de atitude e ação. 

   E nestes termos, é interessante perceber como a noção de um homem tímido é problemática para aquele regime. Afinal, não raro se pede(exige) justamente que um tímido vá lá e honre as suas bolas – como parecia ser o caso dessa conversa que roubei.

   É que um homem tímido, sim, vacila, ele, sim, sente insegurança. É um homem que tem dificuldades(sem entrar no mérito das origens) para o conflito, para as decisões. Um homem que não raro o acusam de falta de atitude, de total ausência de presença. Muito sumariamente, timidez como sinônimo das bolas sendo desonradas.

   Mas tal qual são muitas as dinâmicas de gênero, isto se naturaliza e se mascara.

   É dito que não se trata de gênero, se trata exclusivamente de personalidade. E subitamente o homem é aconselhado a perder sua timidez não por que o homem masculino não deve ser tímido, e sim porque não é normal para qualquer pessoa ser tímida. Mas aí ocorre a exposição da fissura. Pois mesmo imperando o discurso de que não é normal para qualquer pessoa, isso não impede que a timidez seja melhor tolerada, ou mesmo valorizada, nas mulheres – recato, submissão, silêncio, atributos tímidos que ainda abundam nas personagens e representações femininas.

   Podemos perceber então esse recorte de gênero por detrás da noção de timidez(e tudo o que muito genericamente lhe é atribuído), e que se torna claro também quando a timidez não existe, ou seja, quando a pessoa exorciza de si qualquer sinal tímido.

Dilma e seu epíteto de gerentona
   Nestes casos, quando o masculinoassegura não ser tímido isto é lido num tom do já esperado, daquilo que não causa surpresa nem merece menção: é o que todo homem deveria ser. Já quando femininopatenteia a sua não timidez, não raro isso vem em um tom de destaque, daquilo que é extraordinário: basta ver como as mulheres líderes são exaltadas pelo seu poder de decisão, seu punho forte, sua atitude pró-ativa(coisas que não se elogia no homem líder pois, repito, se supõe que ele tenha quase naturalmente).

   Deste modo, quando um homem é convocado a honrar suas bolas trata-se, simplesmente, de uma convocação a atender as demandas do nosso regime de gênero. É como um alerta: eivocê está se distanciando do que deveria ser, volte lá e honre as suas bolas. É um lembrete, ainda, de todo o cultural-machista em que esse homem está inserido e que não pode muito displicentemente ir contrariando.

   E aquele cara em específico estava sim contrariado o cultural-machista. E pior ainda, num setor muito frágil da masculinidade padrão que nos é passada: a interação afetivo-sexual com o sexo oposto. Setor onde certamente as bolas devem ser honradas, pelo menos é o que nos diz nosso regime de gênero. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Domingo no parque

   Domingo, quase duas da tarde, a lasanha ainda descendo e o Roberto lá, todo estirado no sofá; pálpebras pesadas, ameaçava um cochilo gostoso quando o barulho seco de madeira batendo o trouxe de volta. Era sua esposa na cozinha preparando o chá e ruidosamente abrindo e fechando gavetas e portas dos armários, um aviso de que o programa para a tarde ainda estava de pé. Todo preguiça, mas bem treinado de outros domingos, ele levanta do sofá e vai juntando o que lembra: protetor solar, repelente, bonés, esteira de palha, óculos de sol... Óculos?

- Ô, Mô, cê viu meus óculos?

   Mônica procurava agora a sacola grande retornável, aquela vistosa de sucessivas faixas coloridas. A compraram para a feirinha que acontece todo sábado na praça ali perto, porém só uma vez a sacola serviu ao propósito inicial ficando depois relegada a eventuais programas domingueiros como o de hoje. Quando a encontra Mônica logo desconfia; mete o nariz dentro e dá algumas fungadas feito cão de caça. O azedume denuncia que não foi lavada desde a última vez. Azar, pensa resignadamente. Ajeita lá dentro o pacote de bolacha de água e sal, um pano de prato, um potinho com duas facas e algumas frutas. Guardou um canto para a garrafa térmica com o chá, o que a faz lembrar de pegar o adoçante. É quando avista a caixa de bombons. Do fundinho do armário, como que escondida atrás do saco de arroz, a caixa de bombons surge reluzente e chamativa. Mônica fica indecisa, a mão vacila no meio do caminho. Levo a caixa ou não?, se pergunta e sente crescer a desconfiança de que esse presente inesperado dado pela sogra, que jurou não saber que o casal estava em dieta, tinha sido a última provocação daquela velha falsa. A indecisão lhe tomaria mais tempo caso não tivesse lembrado das frutas, do adoçante, do chá substituindo o refresco, da bolacha de água e sal(tão sem graça!), e não tivesse tomado consciência de como os bombons seriam uma traição a toda essa logística de baixa caloria, e sobretudo uma traição à promessa que ela e o Roberto fizeram no ano novo sobre emagrecer aqueles quilinhos a mais que a pacata vida de casados veio dando aos dois. Deixou a caixa de lado, a reservando mentalmente para um daqueles dias em que a vida se mostra azeda demais. Nisso a água ferve e é hora de colocar a erva em infusão. 

- Tá pronto, Beto?, grita em direção ao quarto.

   Passar um domingo de sol em um parque grande e verde tem algo de prazer e liberdade instintivos, como se houvesse o eco de uma infância da humanidade que permanecesse oculto no peito desses adultos chatos e só viesse à tona nessas ocasiões - ou talvez seja só o contraste com um apertado apartamento de dois quartos com vista direta para o prédio ao lado. Fosse pelo que fosse, Roberto e Mônica adoravam esse tipo de domingo. Abrigados sob a sombra das árvores, se espicharam sobre a esteira de palha e sentem o vento suave varrer o mormaço do verão; nisso até o chá quente dentro da garrafa térmica fica menos despropositado.

   Os dois sorriem a dentes plenos, percebem-se despreocupados, transbordam boa vontade. E como que expressando isso arriscam algumas carícias de casal. Em público as carícias são sempre mais gostosas, como se carinhos e afagos ganhassem em sensibilidade quando com plateia. Claro que tudo muito comedido, afinal, há o bom senso – e há os cinco anos de casados servindo de barreira para a melação sentimental típica dos colegiais. No auge da descontração causada pelo parque, sol e domingo, concordam veladamente em brincar de ciúmes, porque a fulaninha assanhada do escritório do Roberto insiste em ficar curtindo tudo o que ele posta no Facebook, e também porque o filhinho-de-papai-saradinho do andar de baixo quando fala com a Mônica gesticula mais que italiano sindicalista só para desfilar os braços sem manga de camisa e provar que o dinheiro gasto em horas e horas de academia está dando resultados. Mas brincar de ciúmes refresca a paixão, devolve certo brilho na troca de olhares e sempre acaba em beijo dengoso.

   Então alguém lembra do passado, das histórias que viveram juntos, dos amigos que já não veem mais. Recordam também que têm planos, como a grande viagem de férias para alguma belíssima praia no litoral nordestino e o cachorro – ou seria gato, tinham que decidir – que iam arranjar em breve, porque a experiência com os peixinhos já deu o que tinha que dar. E vamos combinar, né, Beto, com peixe ninguém se apega nem cria responsabilidade alguma! Sim, eles já estavam juntos havia um tempo, era hora de treinar a responsabilidade e logo imitar os casais conhecidos, acalentar aquela expectativa sem-fim das respectivas sogras. E quando tudo é dito e outro tanto lembrado, como que faltando o que mais dizer, concentram-se no chá e no molhar as bolachas dentro do chá.

   Aos poucos reina esse silêncio só entrecortado pelo mastigar do biscoito e pelo sorver do chá quente. E aqueles lábios que iam sorridentes parecem desistir e se cansam, e murcham também aos poucos. Mônica vê boa hora para expressar seu arrependimento e se desculpa por ter esquecido de pegar as xícaras. É tão ruim beber nesse copo-tampa da garrafa térmica! Roberto diz que aquilo não tem importância.

   Ela retira da sacola uma laranja e dos potinhos uma faca. Uma laranja sendo descascada faz um barulho gozado e em algum lugar do passado um deles notaria isso - mesmo já tendo notado outras vezes-, comentaria, e então ririam. Porém isso em algum lugar do passado. Porque agora ele repara num homem gordo, indo já pela meia-idade, todo encharcado de suor enquanto corre sofregamente debaixo daquele sol escaldante, e isso dispara a memória da lasanha que Mônica fez no almoço. Bichinhos invisíveis lhe roem por dentro deixando para trás a desconfiança que talvez ela não esteja levando a promessa da dieta tão a sério. Uma rachadura aparece e logo o dique todo se rompe. Uma ranzinzice que veio ali da última semana de trabalho, daquela encheção de saco que o babaca do chefe faz todo dia, se mistura difusamente com pequenas coisas sempre presentes da vida a dois - como o jeito egoísta dela em tomar decisões sem lhe consultar – e então algo precisa ser dito. Coisas que esperavam um momento de espetar o que quer que fosse e que precisam ser ditas. Ó, de lasanha em lasanha eu fico assim e você também. Acho que você deveria levar nossa dieta mais a sério, diz em tom de censura.

   O vento ainda sopra sacudindo o mormaço, as folhas das árvores, e levando o domingo embora.

   Final de tarde, o sol indo embora faz toda uma multidão voltar para suas casas. E Roberto e Mônica também, um casal contra o poente. Ele leva a sacola colorida, agora ainda mais fedida por mais um acidental vazamento de chá, e ela com a esteira de palha debaixo do braço. Uma cena bonita cheia de cores e sombras que talvez valesse uma foto para o Instagram. Roberto dá a ideia, parecendo uma compensação pelo azedume de quando falou da lasanha e da dieta. Contudo, ela recusa; diz que está com pressa para chegar em casa porque ainda precisam passar na padaria lá da esquina, e a essa hora deve estar apinhada de gente – e isso foi a ranzinzice ali de uma outra semana de trabalho, dos infernais filhos dos outros tumultuando a aula da professora Mônica, um outro quebra-cabeças de descontentamentos também aguardando sua brecha muito humana. E em direção ao poente os dois seguem sem conversa, sem contar para o outro a incômoda sensação de deja vu.

   Mal entram no apartamento e já jogam as coisas num canto da sala. Vai primeiro ou eu vou?, pergunta Mônica. Ela vai pro banho e ele se esparrama no sofá, sentindo a mesma preguiça que sentia às duas horas da tarde, como se escondida até agora ali mesmo em algum canto só esperando o seu retorno. Mas agora já não é hora de cochilar, diz ao lembrar que amanhã é segunda-feira. Liga a TV, troca os canais, vê os gols da rodada, descobre que seu time perdeu, e acaba assistindo o depoimento molhado e orgulhoso da professa de primário do mais novo galã da novela das oito que, sorrindo sem graça, parece não lembrar muito bem da tal professora. E já ia fechando os olhos quando chegou sua vez de ir para o banho. Foi, mas não sem antes desligar a TV: tinham combinado que tentariam cortar em 10% os gastos com a conta de luz do jeitinho que o especialista em finanças domésticas do Fantástico sugeriu e garantiu ser possível – basta que todos na casa colaborem.

   Com a toalha enrolada na cabeça e vestindo um roupão domingueiro daqueles que visita não pode ver, Mônica liga a TV. Não que queira assistir alguma coisa. É só que o apartamento pequeno que é, e com aquele estúpido aquário vazio sobre a mesa da sala, fica tão triste em silêncio que até a TV vem a calhar. E isso certamente justifica um gasto a mais na conta, racionaliza ela. Vai até a cozinha e põe a mesa com dois pratinhos para lanche. Ajeita sobre ela a sacola de pães, acha no fundo da geladeira o requeijão light, e fica nervosa por um momento quando não encontrou o peito de peru fatiado e pensou ter acabado. Mas estava lá, apenas escondido atrás da tigela com o restante da lasanha do almoço. Mônica pega também um tomate para rechear seu sanduíche. Então pensa em pegar e cortar logo dois, um para o Roberto. Contudo havia o cansaço do dia, e além do cansaço a visão da lasanha, bem a sua frente, que em algo lhe servia como argumento. Apanhou apenas um tomate e fechou a geladeira.

   Depois de jantar os dois sentam em frente a TV e assistem o domingo entrar nas derradeiras horas. Ao longe, distante do apartamento, escutam motores de carros e motos; parecem surreais, como se saíssem de um lugar oculto só para entrar num túnel infinito, distante, até se abafarem por completo. Nessa hora o domingo é chato demais e eles percebem. Como numa defesa instintiva se aninham no sofá, só que evitam se encostar demais um no outro porque faz calor e os dois já não tem mais público. A tela traz uma sucessão de imagens, rajadas de sons diversos as acompanham, mas com dificuldade compõe algum sentido. Às vezes ele e ela riem, às vezes comentam algo, às vezes parecem economizar palavras, às vezes as sentem subtraídas. E não adianta, o silêncio entre os dois é reinante, quebrado só pela TV e pelas embalagens barulhentas dos bombons que os dois estão comendo e não lembram quem, ignorando a promessa, trouxe aquela caixinha de irresistíveis calorias – seria talvez um daqueles dias de vida azeda demais? E sem que se deem conta o apartamento vai ficando infeliz, todo pintado de azul, uma marcha lenta, aos poucos, como se alguma coisa gasosa e densa entrasse pela janela do quarto e contaminasse todo o resto, bem lentamente, feito bolo assando, estufando pelo calor e pelo fermento, finalmente surpreendendo por ter ficado tão grande.

   De repente Mônica tem um sobressalto e abruptamente desencosta a cabeça do ombro do Roberto. O que foi?, ele pergunta. A sacola! É melhor por de molho e amanhã de manhã pendurar no varal, senão domingo que vem não dá pra ir no parque, ninguém vai aguentar o fedor! Ele apenas estala a língua com descaso e puxa a cabeça dela de volta, disposto a retornar o ombro à condição de travesseiro. Deixa pra lá, Mô, domingo que vem é domingo que vem, tá longe, quem sabe chova, quem sabe a gente almoce na casa dos meus pais, quem sabe a gente não faça nada e fique por aqui mesmo.


   Por aqui mesmo, pensam os dois, por aqui mesmo já há algum tempo. E sem deixar que o outro perceba, temem que por aqui mesmo por muito mais tempo.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Ei, mede meu bíceps?

O convite me pegou despreparado. Nunca antes eu medira um bíceps nem me imaginara fazendo tal.

O instinto antropológico me sugeriu, quem sabe, ser isso muito normal dentro do mundo das academias de musculação. Mundo que eu estava há pouco tempo.

Então medi o bíceps do cara.

E de fato, eu veria mesmo outros caras medindo outros músculos de também outros caras. Sim, é algo comum dentro do universo do no pain no gain. 

Mais que comum, público – não havia um lugar privado para. E, afinal, não estritamente necessário, pois é possível medir (quase) todos os músculos sem ajuda de ninguém.

Aquilo me deixou curioso. E admito que com certo estranhamento.

Só depois entendi o porquê. Muito simplesmente, aquilo destoava do padrão de masculinidade a que fui submetido desde pequeno. Não só eu, mas creio destoava do padrão a que a maioria mais que absoluta dos homens também foi submetida. Um padrão de que nem sempre a relativização vem fácil.

É o padrão heterossexual, claro. O padrão das ditas verdades óbvias. Que homem não chora, que homem veste azul, que homem brinca de carrinho, que homem fala palavrão, que homem briga. E contradizer isto é, de acordo com o padrão, entrar numa zona tida por perigosa, a zona do que é potencialmente não-hétero.

Mas, dentre tantas outras “verdades”, a que aqui destaco é aquela de que homem não toca no corpo de outro homem. Não de qualquer jeito.

É preciso uma situação. Um contexto muito bem dado que legitime aquele toque.

Um abraço entre conhecidos que não se viam há tempos, ok. A marcação corpo a corpo no futebol, ok. Mas que o abraço não se demore, e que a marcação não inspire nada que não seja esportivo, avisa o padrão.

Aprendemos, desde pequenos, que o toque entre homens é tenso. Como se pudesse revelar coisas, sugerir tendências que atentam contra aquele padrão. E tanto pior ondese toca e a duraçãodesse toque.

Lembro de uma brincadeira dos tempos de escola. Só para meninos.

Todos tentávamos nos aproveitar de um colega distraído para então pousar a mão em seu ombro; quanto mais o outro menino deixasse aquela mão lá, sobre seu ombro, mais gay ele era(como se houvesse essa gradação, inclusive).

Na época não fazia sentido nenhum e hoje continua sem fazer(por que mão no ombro!?);  mas esse não é ponto, senão exemplificar como o toque entre meninos, que se supõe gostarem de meninas, foi sempre posto como fonte de tensão e mesmo desconforto.

E tenso e desconfortável porque abria portas àquela interpretação, do ser gay, do não gostar de meninas. 

Mas eis que na academia pede-sepelo toque de um um outro homem - e de um modo que nenhuma das partes envolvidas veja ameaçada a suposição de gostar de mulher, que seria a consequência mais lógica dentro do padrão de masculinidade.

No braço, na perna, na medição do entorno do peito. O toque, guiando uma fita métrica, é legítimo.

Se havia aquelas brechas – a do abraço, a do futebol, por exemplo – aqui parece que se acrescenta mais outra. A academia de musculação torna-se uma das situações em que o toque masculino-masculino é viável; um dos contextos em que o padrão masculino heterossexual, aquele vindo desde a infância, parece relaxar um pouco em um ou outro de seus dizeres.

Considerando exclusivamente o toque, talvez na academia até fique em suspenso a Grande Dúvida que cerca aquele padrão - seria isso coisa de gay?

Em suspenso, mas ainda assim, aposto, em vigília.

Bastaria uma medição que, quem sabe, se demorasse demais, ou um gesto que descuidasse da precisão funcional do ato, e a Grande Dúvida voltaria. E ela lembraria então que o toque masculino-masculino, de forma geral, e sob a ótica da preservação da heterossexualidade, foi sempre interpretado como sendo algo tenso, algo que gera um desconforto.

Faria lembrar dessas sensações que de tão íntimas e entranhadas acabam ocultando suas origens sociológicas, e pior, dificultando seu desarme. 

domingo, 22 de setembro de 2013

Chuva suicida

O dia é cinza, o frio é íntimo, e a chuva não para.
São incontáveis as gotas suicidas, baques secos contra telhados, janelas e meus planos. Toda essa água espatifada, corpos rolando sem saber pra onde.

E eu penso em cigarros, bebidas, no chocolate que só como na páscoa. Viro refém das promessas fáceis. Mas hoje eu sinto e não, não é isso.

E de longe vem a ideia (besta, eu sei) de ressuscitar um amor daquelas fotos amareladas, ou fazer uma paixão frankstein dos pedacinhos românticos que perdi nos versos. Ressuscitar sentimentos e sentir que sou eu que vivo.

Mas, e seria isso?


Mais gotas dão o salto, pancadas rítmicas duma infelicidade tão fluida.
E toda essa água nesse cinza total escorrendo sem direção; por todos os lugares, para lugar algum,
sem saber nunca para onde está indo. Toda essa água desde as alturas também duvidando: e seria isso?



quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Estamos em obras

A placa tinha um silêncio orgulhoso, só conversava com os olhos:

Estamos em obras, dizia. 

Parecia justificar o atraso, a ausência, a incompletude manifesta. Ou talvez se eximisse pelo pó, pelas vísceras de concreto expostas, pela inutilidade que formalizava. 

Mas eu sabia da verdade da placa, daquelas palavras ali pintadas. E sabia que tudo era muito simples...

Sim, claro, estamos em obras. 

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Café 24 Horas

Um Café 24h tem algo que não sei dizer.
De onde vem a atração, a tara? Esse vício me conduzindo por ruas, avenidas, calçadas e lixo?

Faz sentir comichões, inventa necessidades.

E quando tua vida te acorda - naquela hora em que a madrugada já não sabe se é ou se era - só pra te lembrar que já tens vinte e tantos anos e uma velhice ranzinza te aguardando, lá está o lugar: luz de neon, atendentes cansados, mesas sujas, manchas de desesperança. Lá está ele em vinte e quatro sedutoras horas.


Lá está para o tédio e para a solidão.

Mas você se convence mentindo que é bom começar o dia de madrugada.

Começar quando ele é só um projeto, um azul tão profundo e misterioso entre prédios.
Gostinho do tempo fora da agenda e dos compromissos.

Testemunhar aquela hora única e traiçoeira (não foi nela em que um amigo seu se perdeu? ou havia sido você mesmo?).

Hora em que o cantinho suicida da alma não sabe se voa ou se fica, porque até o niilismo pode ser um ninho quente, afinal – e faz tanto frio lá fora.

Ainda assim, uma vaga ideia geral te contamina.

Vem dos taxistas mal humorados, dos jovens de fim de noite, das prostitutas meninas, dos sonâmbulos de tantos anos; vem de toda essa gente amante (ou seria refém?) dos lugares vinte e quatro horas, e que se permitem pensar que hoje pode não haver um dia: ir direto para a noite, a maior delas. E que se houver um dia, no final, no desespero ou no vazio – que diferença faz? - a tua mesa estará livre, esperando por ti e por todo aquele resto que te persegue.

É esse o chame dum Café 24h?

Desconfio desse excesso de verbos e adjetivos, as verdades sempre são menos.

Talvez uma vontade inconsciente e consumista de ser um pouco nova iorquino, só enquanto durar uma xícara de qualquer coisa quente e o sono teimar em fugir.  

domingo, 7 de abril de 2013

Jack não é mais um bobão

    Luísa, caixa rápido número 11. Tem olheiras, cansaço, parece um humano comum que sente dor e frio, e certamente já teve um sonho. Está chegando na parte final do seu turno, mas isso já deixou de ser, há muito tempo, algo reconfortante. Tudo vai se repetir, afinal de contas.

    Filas serpenteiam diante dos caixas, enquanto que uma única, e maior, e iludida de que será menos demorada, estende-se debaixo da plaquinha dizendo caixa rápido. Há tempos no serviço, Luísa já desenvolveu a habilidade de atender ao cliente enquanto repara em tudo a sua volta. Assim vê que, não importa a fila, todos nela bufam; tornam-se lá as pessoas mais atarefadas nesse mundo. Olham no relógio, vigiam para ver se nenhum caixa está fazendo corpo mole, e ficam atentíssimos para pegar no flagra algum espertinho ultrapassando o limite de 15 itens do caixa rápido. Luísa percebe essas coisas e acha um saco. Todo dia é um saco.

    Enquanto atende também pode dar asas à imaginação. E imagina como teria sido se, de repente, por milagre, ela não fosse ela atualmente, mas sim fosse ela mesma de acordo com seu passado, com os tempos de escola. Xodó dos professores, elogiada por ser tão boa em números quanto com palavras. Notável por destoar da escola em que banheiros eram mercados de drogas e sexo. E se ela fosse, hoje, não o que é, mas uma versão continuada dessa aí do passado? Essa que foi interrompida pelas novelas da vida, versões chatas sem galãs nem loterias?

    Merda!

    Imaginando coisas Luísa passou o mesmo item duas vezes no leitor de produtos. Bip-bip. O cliente olha torto, dá um meio sorriso, e do alto dos seus cabelos levemente grisalhos diz:

- Opa. Presta atenção, menina. Não quero dar mais dinheiro pro seu patrão não.

    O tom é de brincadeira, como se estivesse tudo bem e o cara realmente não ligasse para o deslize. Tudo bem o caralho, falso do cacete. E Luísa chama a supervisora para estornar o item. A supervisora já vem de cara amarrada, cara de porra, Luísa, de novo?, mesmo que fosse a primeira vez no dia.

    E assim o carro toca. E vem clientes nervosinhos, outros tentam ser engraçadinhos. E tem sempre o cretino que se aproveita da perda da noção de tempo, inevitável naquele serviço, para quando Luísa disser bom dia o filho da mãe, todo gozado, emendar:

- Bom dia? Mas pra mim já é boa tarde!

    Pior ainda se o infeliz discorre sobre a teoria de que bom dia é até almoçar, e boa tarde é depois de ter almoçado. Luísa detesta esse tipo.

    Com o tempo tu te acostuma, dizia uma caixa experiente, que muito ajudou Luísa quando começou no trabalho, e que mais tarde foi despedida porque o gerente implicava com todo mundo que era negro. E Luísa realmente estava acostumada. A dor no punho e o mau jeito no braço passaram a dispensar remédios. Os bips infernais do leitor de produtos já não eram escutados quando ia dormir. O bafo azedo da maioria dos clientes não a fazia recuar. Os chiliques que as madames às vezes davam sobre o desrespeito com o tempo de espera, pois senhoras da idade delas não tinham pernas para isso e blábláblá, eram agora piada na hora do almoço. Luísa acostumara-se... Mas Luísa tem olheiras, cansaço, parece um humano comum que sente dor e frio, e certamente já teve um sonho. Um sonho. Por onde ele estará?

    Não aqui.

    Luísa hesita. Mas não por muito tempo. Larga a pizza congelada, pede licença para o rapaz que já ia empurrando uma coca-cola, e levanta-se. Todos na fila do caixa rápido a encaram, uns estranhando, outros já doidos para começar um motim porque aquilo significaria uns minutos a mais parados na fila. Luísa deu os ombros.

    Saiu da área de atendimento, deu a volta em todos os caixas, e dirigiu-se para dentro do mercado. Todas as outras atendentes, suas colegas, pararam o que faziam, estupefatas. Tentavam entender o que era aquela ousadia em abandonar assim o posto de trabalho.
Luísa caminhava reto para os fundos do mercado. Parecia ir até a grande seção de bebidas geladas. Sim. Abriu a porta, pegou uma Caracu. Adorava cerveja escura. Não qualquer uma, só Caracu, com seu gosto forte, encorpado, e com aquele restinho de sabe-se-lá-o-que no fundo da garrafa, aparentemente essencial ao sabor.

    Nisso a supervisora chegou. Estava vermelha, um pouco pelos passos curtos e apressados, um tanto mais pelo nervosismo. Luísa detestava a supervisora. Cretina, deu pro gerente e agora tá aí, enchendo o saco como se fosse dona dessa merda toda.

    Ocupada em dar o primeiro e delicioso gole na cerveja, Luísa pouco ouviu o que a supervisora dizia. Era algo sobre voltar ao trabalho, também sobre estar louca ou querendo deixar alguém louco. Algo assim. Luísa, nesse instante, só conseguia prestar atenção em engolir a cerveja e em caminhar para fora do mercado.

    Quando passou pelo vigilante na porta de entrada, esse falcão que fica ali pelos malandros e pelas senhoras de bolsas grandes, ela deu um sorriso e desejou um bom trabalho. O vigilante mesmo com o sinal eletrônico tocando pela retirada de um item, a cerveja, sem o devido pagamento, ficou imóvel e aturdido.

    Luísa estava na calçada, livre, e rindo. Enquanto esperava o sinal para pedestres abrir, inclinou a cabeça para trás e inspirou profundamente, até fechar os olhos. Quando os abriu, notou que o prédio próximo, que ocupava parte do horizonte, trazia uma grande pichação. Arte urbana, dizem. Conhecia o homem nela, um ator. Não lembrava o nome. Mas certamente era um ator bem conhecido. E ele dizia algo. De início ela não entendeu bem, mas depois, quando a Caracu facilitou a descida daquela frase pichada, Luísa riu mais e mais, até que partiu caminhando atrás do sonho perdido...

    Só trabalho sem diversão faz de Jack um bobão, era o que estava pichado.



quarta-feira, 13 de março de 2013

Elogio de Nietzsche

Em tempos de fácil crítica à fragmentação e a fluidez da identidade - o pesadelo do nosso próprio e infindável quebra-cabeças íntimo -, vale um comentário filosófico, e quase elogioso, vindo lá de outros tempos.

Perder a si mesmo - Uma vez que se tenha encontrado a si mesmo, é preciso saber, de tempo em tempo, perder-se - e depois reencontrar-se: pressuposto que se seja um pensador. A este, com efeito, é prejudicial estar sempre ligado a uma pessoa
                                                               Nietzsche, em Humano, Demasiado Humano



quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Estrela Perdida


E eis que a estrela,
até então perdida,
estagnada no infinito
da escuridão, moveu-se.
Lenta e melancolicamente,
fez seu novo rastro 
de medo e curiosidade.

Vacila, busca sua
própria luz desperdiçada
pelo vazio sideral.
Luz guiada pelas ânsias
cruas e marcadas de
tudo que sabe,
que um dia, 
estancará na mais
absoluta inexistência;
então sem rastro, 
já sem luz alguma.