Ela entra e a lanchonete inteira pára. Olhos se voltam, cabeças entortam, devaneios correm soltos. Vultos a dissecam, ela sente, sabe que é deflorada bem ali, instantaneamente, sobre a mesa suja de gordura e refrigerante. Hesita e não sabe se tem coragem de olhar em volta. Duvida conseguir encarar todos que a violam com a arrogancia de um desejo. Pede um café, senta numa mesa ao canto e tenta ignorar a viscosidade que vem pelo ar grudar em sua pele. Se fecha, se cala.
Mas não adianta, é inevitável. Vai sendo roubada aos poucos, primeiro sua carne e depois sua humanidade. Quanto mais a olham, observam, cobiçam, mais ela desaparece; cada fantasia que fomenta a priva de ser o que é; tanto mais desnuda a desenham mais a apagam. Porque ninguém vê nada além da sua superfície. Nenhum deles imagina que ela pode imaginar. Ninguém sabe da profundeza abissal que existe indo além do tecido vivo nem da esperança morrendo diariamente atrás do seio. E o labirinto de uma saudade difusa ainda fica lá dentro, bem fundo e frio, incólume, a salvo de qualquer poder de alcance daqueles homens obscenos, e a garota sabe que permanecerá assim, perdida dentro destes caminhos sem saída por muito e muito tempo.
Sem querer resvala para dentro dos olhos de um daqueles vultos, vê seu próprio reflexo sujo em um rosto suado que se repete em todos os cantos. Ela pensa que deveria deixar claro que não precisa daqueles rostos, talvez gritar o nojo dos corpos pesados demais, bradar raivosa que não quer um amor nem um sexo. Então sussurrar numa poesia que já tem alguém que mesmo longe e mesmo tendo ido para nunca mais voltar, esse alguém é dela e isso basta. Não precisa de nada, não precisa deles. Quem é dela e já partiu eternamente não a apaga nem a deflora; quem é dela vai além da pele e intensifica a fé. Quem é dela aceitou pegar o caderno em branco e há tempos escreve aquela história em que ela, a garota, é a heroína do papel principal. Não, não vai voltar, mas a presença de uma ausência como aquela vai mais fundo do que qualquer homem experimentado em desespero pode ir.
Termina seu café e levanta afobada. Quer sair, escapar, evitar a tragédia cotidiana em que se perde novamente. Pretende voltar ainda humana para casa. Ela já tentou, tentou demais, e não pode deixar escapar a vontade de tentar. Precisa sair, fugir, evitar a tragédia sem fim de ser sequestrada de novo, tirada de si mesma por todos aqueles olhares. Voltar para casa e sonhar seus sonhos com a liberdade de quem pode sonhar, neles lembrar daquele alguém que foi embora levando um mundo de coisas e mesmo assim não vai regressar. Não, ele não vai voltar, mas precisa mante-lo; é o que restou, é o que ainda conforta.Paga o café com algumas moedas. Se ilude pensando naquelas moedas como elos de um tempo pretérito, testemunhas de quando ela vestia uniforme de criança toda manhã e pensava no futuro. Sente uma vontade já bem conhecida de voltar ao passado, mesmo que fosse através daquelas moedas de metal escurecido. Um passado sem aqueles vultos sedentos que já começam a habitar seu interior. Mas é besteira, ela sabe que nada volta. Por isso, antes de sair dali, ainda sorri tristemente, lábios servindo só de moldura para o arder daquela melancolia que há tempos a persegue.
Mas nem isso conseguiram enxergar os olhos que a devastavam; ocupados demais em deflorá-la ali mesmo, viram pouco e o que viram não entenderam. Onde tinha solidão enxergaram meiguice de menina. A possuíram, a roubaram, a consumiram, tiraram tudo que puderam de sua humanidade; a chamaram de anjo sem saber que anjos não tem sexo.
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