segunda-feira, 30 de maio de 2011

Cidade Grande

   São seis horas da tarde e a noite já vem caindo. Vou pela calçada desviando de quem caminha na direção contrária. Passos apressados, vontade de chegar logo, sair do barulho irritante das ruas. O caminho é conhecido, é rotina; não só minha, mas de uma porção de pessoas. Pelo olhar fatigado e camisa marcada pelo suor, sei quem volta de um dia cheio, dia de trabalho; pelo perfume fresco e maquiagem delineada sei quem ainda está só na metade dele. Algumas roupas ainda denunciam mais sobre quem as veste; ora passo por um mecânico, depois um grupo de colegiais, então um mendigo. Certas vestimentas são indecifráveis e por isso só gosto das fáceis, dos estereótipos que todo mundo espera por encontrar na rua. Não sei o nome dessas pessoas, mas isso de início isso é fonte de diversão. Brinco de adivinhar qual nome elas teriam. Depois de um tempo você descobre que são poucos nomes conhecidos para muitas pessoas desconhecidas, e acho que por isso me obriguei a decorar alguns rostos, fixá-los com nomes únicos que não dou a mais ninguém. Torno-os conhecidos íntimos de uma história por acontecer.

   Chego a mais uma esquina. Esperando o sinal fechar para que possa atravessar a rua me junto ao amontoado de pernas que tem a mesma espera que a minha. No meio dos outros vejo um instante que provavelmente nunca mais vai se repetir, não com aquelas mesmas companhias. E ninguém dá a mínima pra singularidade da coisa, só eu. Idiota. Do outro lado, vindo de onde eu estaria logo que superasse mais aquela rua, percebo a Fernanda. Um nome que achei combinar bem com o jeito dela. Parecia uma pessoa querida. Dava até para imaginar um namorado ou irmão menor chamando-a carinhosamente de Nanda.

   Ela estava com passos curtos, rápidos. Estranhei vê-la ali. Geralmente eu a teria encontrado quatro quadras antes, perto da pichação abstrata feita no muro - uma grande sombra negra, toda torta, meio humana, de olhos desproporcionais em um rosto sem boca nem nariz, provocando todos os transeuntes com a pergunta: você se enche de várias coisas e ainda continua vazio?. A julgar pela pressa que a Fernanda vinha e pelo seu aparecimento tardio no meu caminho, só podia estar atrasada para a universidade ali perto. Estuda Turismo pela noite e carrega orgulhosa sua bolsa estampada com o logotipo da universidade e do seu curso. Sei que é caloura já que só com o início das aulas desse semestre é que eu a notei e tivemos nossos caminhos cruzados. Agora ela está a poucos metros, continua com pressa. Dou um oi silencioso em pensamento, sou ousado. ‘Oi, Nanda, fico feliz em te ver aqui!’. Apelido e elogio, quem sabe assim ela sorria e se preocupe menos com o atraso. Não. Apenas passou por mim, sequer me fitou. Estava com muita pressa.

    Chego ao meu destino diário, um encontro marcado com a padaria. É meio lanchonete, parte confeitaria, um pouco também de casa de sucos, mas no letreiro sobre a porta está escrito que é padaria. Não importa, o que eu como mesmo é um prato feito. Enquanto espero a comida reparo como o local está movimentado. Sempre é assim. Pratos batendo, latinhas de refrigerante sendo abertas, um liquidificador que não para. E um monte de vozes. Um burburinho que carrega sempre um rolo de falas em fragmentos de conversas, em pedidos de cafés, bolos e salgados. Mas tento ignorá-las. Com o fim dos nomes que posso imaginar, eu me foco apenas nas vozes que eu consigo classificar separadamente debaixo de um substantivo próprio inventado por mim.

   Assim o Paulo estava lá, sem o Pedro; imagino que tenham brigado, o que é estranho. Sempre comiam juntos ali, combinando em camisetas pretas de alguma banda de rock que não conheço, em cabelos típicos de musico rebelde batendo no meio das costas, e combinavam ainda nos gostos quanto a música em si – confesso que certa vez ouvi com atenção especial a conversa dos dois. Aposto que o Paulo foi quem criou a confusão toda. Ele sempre era o que mais falava, mais fazia caras e bocas; de espanto, admiração, de ironia. E eu sei que emoção demais sempre causa confusão.

    Na porta acaba de cruzar Rita. Moça simples em tudo. Com um jeito gozado, parece que todo seu rosto foi feito tendo em conta um contrato com duas cláusulas: que os olhos, a boca e o nariz não chamariam, nenhum deles, mais atenção do que seus vizinhos podiam chamar, e de que por isso mesmo seriam todos muito comuns. É, ela tem o rosto mais comedido e simples que alguém pode imaginar, e isso lhe dava uma graça especial. Aquele rosto podia muito bem esconder um complicado mistério e estar só disfarçando. Mas aí é especulação. Só sei que Rita sempre ficava ali na porta aguardando o seu namorado, um sujeito que nunca fui com a cara e por isso se chamava Maldonato. Usavam aliança de compromisso e tudo. Era uma satisfação assistir os dois se encontrando. Ela parada na porta, ansiosa, então eis que um sorriso de criança lhe surgia ao rosto, daí bastava olhar pela janela para ver que do outro lado da rua vinha Maldonato. Apesar da minha birra contra ele, admito que sua felicidade ao ver Rita também causava satisfação a qualquer espectador. Mas aí certa semana nenhum dos dois apareceu. Na próxima, só ela veio; sem anel, sem esperar na porta, sem Maldonato. 'Você merece algo melhor, Rita. Ele não prestava', pensei comigo na esperança dela ouvir. Agora, já sentada, ainda sozinha, e tão simples de rosto, a observo e volto a repetir em silêncio que ela merece coisa melhor.

    Uma risada irrompe no ambiente, vem do balcão. José, policial fardado, algumas mechas grisalhas no cabelo, solteiro, provavelmente solitário. Ele ri forçosamente para a garçonete, Silvia, mãe de dois filhos pequenos que às vezes apareciam por lá na volta da escola. Silvia não ria muito. A julgar pelas suas olheiras e dedos sem anéis, eu sei que é uma mãe solteira, sem nem vinte e cinco anos na cara, que sustenta sozinha sua prole. Consigo imaginar ainda uma mãe, já velha, que Silvia também tem que sustentar. Não sei se José patrulha essa área ou só vem aqui graças a um misterioso encantamento que sente por Silvia, mas é claro que sempre tem tempo livre para gastar sua criatividade com piadas na tentativa de fazer com que ela sorria. Em vão. Ele sempre ri sozinho e vai embora sozinho; Silvia tem a cabeça em outro lugar e a boca não prova há tempos um riso gostoso.

    Por fim a comida chega e eu mastigo tudo. Depois fico mais um tempo. Sentado, olho os outros com discrição. Por aqui ninguém gosta de ser olhado. Ao ritmo de um carro que buzina, ou então por alguma freada brusca no alucinante trânsito ali fora, mudo o foco, alterno a pessoa. Se eu bobeio um pouco, me distraindo demais com alguém, acabo perdendo o momento exato em que uma outra pessoa vai embora deixando uma mesa vaga prestes a ser ocupada. Eu me sinto mal nessa hora. Bobeira, eu sei. Mas é o momento em que outras caras, com outras rotinas, vão chegar e não terei nome algum para elas. É também sinal de que o turno da Silvia chegou ao fim e que ela vai para casa cuidar dos filhos, deixando José com o que pensar quando for patrulhar as ruas novamente enquanto arquiteta novas piadas para o dia seguinte. Sinal ainda de que Rita vai tocar sua vida fora dali e sem o Maldonato – esse que eu nunca mais vi ou verei de novo. É o prenúncio da ida de Paulo, músico sem par. Lembro, nessa hora incômoda, até de Fernanda. Será que ela chegou a tempo ou o professor deu uma bela bronca pelo atraso?

    Decepcionado, vou embora. Concluí que preciso de mais alguns nomes para me salvar da multidão anônima. Tentando encontrá-los a caminho de volta para casa, torno a ver alguns rostos que reconheço. Não são muitos, mas os vejo. Em meio à agitação do centro da cidade, reparo que debaixo do intrigante caos de concreto, dos motores e das tribos, há uma pequena ordem. Fico um pouco mais feliz por me convencer disso, e a cada rua que me aproximo de casa sinto-me menos perdido do que estava há um instante atrás. Sei que essa sensação pode continuar a crescer, mas sei ainda que ela vai ser interrompida tão logo eu me atrase ou tenha que mudar de caminho, pois aí todo o mundo gira vertiginosamente num borrão sem sentido, permanecendo intacta somente aquela pichação no muro, sempre provocante. Provocando especialmente a mim, eu sinto. Por isso detesto atrasos e mudanças de caminho. Não gosto de ter que romper essa rotina, meu elo frágil com a ordem que são esses estranhos conhecidos que povoam minha vida cimentada. Estranhos que possuem nomes que talvez não sejam aqueles que escolhi e que talvez amanhã nem sejam mais nada.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Erro da tradução

Não consigo sair de mim e é esse meu pecado. Chamam arrogância, egoísmo, orgulho, até vaidade. Mas não. O que sou é prisão, e o que faço é render-me eterno prisioneiro. Outra explicação é erro do tradutor. Nem toda língua tem a sutileza de expressar a seca capacidade de alguns em gravarem-se, livres, nesse mundo.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

As aventuras de Chatran (1986)

Sou do tipo de pessoa que chora fácil, fácil. É um treco de família, desconfio, herdado do lado materno, donde as lágrimas vertem facilmente. E isso gera muito desconforto, principalmente quando seus irmãos, ambos mais velhos, inexplicavelmente não tiveram a mesma bagagem herdada – 'mas é um fresco mesmo', disse um deles quando me surpreendeu de olhos marejados assistindo Menina de Ouro
 
Mas o histórico de choros e gozações é de longa data. Tão longa que atribuo um ou dois traumas de personalidade - talvez mesmo uma terapia futura - às sacaneadas de meus irmãos sobre minha suscetibilidade emotiva diante de filmes. Família é mesmo uma coisa que marca a gente.

Bem, tempinho atrás eu conversava disso com meus irmãos, quando lembramos da primeira vez em que chorei horrores. O filme era As aventuras de Chatran. Até onde sei e pesquisei, foi tipo um clássico da Sessão da Tarde lá do início da década de 90. O filme conta a história dum gatinho que perde-se da mãe e vai errando por esse mundo afora enfrentando perigos e enrascadas. Eu, quando assisti isso pela primeira vez, talvez lá com meus cinco ou seis anos, chorei já quando o gatinho perdeu-se da sua mãe – numa cena pungente em que um rio, muito metafórico aliás, leva o bichano para longe de seu mundinho acolhedor e seguro. Pois é. Chorei e meus irmãos riram até. 
 
Mas a história ficava ainda pior: lá pelas tantas, o fiel amigo de Chatran, um cãozinho chamado Puski – que correra feito louco o filme inteiro atrás do seu amigo felino -, bem, esse cachorro, dedicado e fidelíssimo, é trocado por uma gata! O malandrão do Chatran esnoba seu amigo só porque arranjou uma gata para si. Com meus cincou ou seis anos, isso já foi sacanagem o suficiente para chorar mais e em plena revolta. E meus irmãos rindo até. 
 
O fato foi que cresci sem ver o final de As aventuras de Chatran. Ou se vi, esqueci. Meu consciente bloqueou até mesmo o nome do filme, só saindo da obscuridade do inconsciente durante a referida conversa com meus irmãos. 
 
Num final de semana em que fiquei sozinho em casa, enfrentei esse desafio e loquei As aventuras de Chatran. Claro que eu tinha que estar sozinho pois sabe-se lá quando as lágrimas verterão, não é?

Mas que decepção. Primeiro que o filme é bem tosco e disso eu não lembrava. Quer dizer, para crianças é bonitinho, com exceção de uma ou outra parte em que os animais são mal-tratados descaradamente (no final o filme não pode, de jeito algum, dizer que 'nenhum animal foi machucado durante as gravações'!). E segundo que nem de longe reviveu qualquer sensibilidade aqui dentro. 
 
Eu achava que seria um momento catártico. Pensei que despejaria litros de emoção represados pela sociedade machista tão bem personificada em meus irmãos durante nossa infância. Pff, que nada. 
 
No mais, resolvi uma pendência cinematográfica de meus tempos de criança, o que já conta. Existem outras dentro dessa temática. Por exemplo, nunca assisti Bambi nem Rei Leão – suspeito que por isso não fui tão normal quanto as outras crianças da minha geração. Mas assistirei em breve. Tão logo fique sozinho em casa novamente. Afinal, nunca se sabe quando os olhos vão me trair.


quarta-feira, 11 de maio de 2011

Desvios ou resumo?

Acho bacana quando os escritores, dentro de suas ficções, tentam nos trazer conceitos. Algo próximo de ideias e definições que ampliam as categorias de percepção de mundo e de Homem.

Lendo Jovens de um novo tempo, despertai!, de Kenzaburo Oe, me deparei com um desses conceitos. E como todo bom conceito cunhado por um bom escritor, é apenas a verbalização duma experiência corriqueira que, por mais que todos a provem, acaba passando despercebida de nossas mentes embotadas pela rotina.

O tal conceito é o de leap, ou, traduzindo do inglês, salto. Com essa palava o autor refere-se àqueles impulsos que nos acometem às vezes e se traduzem em comportamentos estranhos; aquilo que você faz e não acredita que fez. Coisinhas que desviam tua vida do rumo normal – ou, na provocação de Oe, podem na verdade estar constituindo sua vida.

Em suma, leaps são aqueles momentos inusitados em que você realiza uma ação, boa ou má, e depois, já efetuada, praticada e provada em suas consequências, você se pergunta francamente: caramba, como é que eu fiz isso?

Eu fiz isso? Como? Onde é que eu estava com minha cabeça?

Sim, existem os leaps alcoólicos... Mas não só. É algo mais.

Leap é uma surpresa com você mesmo. Pois é um comportamento próximo do modo automático, uma alienação de si; você não tem consciência, apenas vai lá e faz. Pronto. Provavelmente você não conseguirá nunca mais reencontrar aquela inspiração filosófica e moral que sustentou tua ação durante um leap.

Algo inexplicavelmente do momento, e efêmero como são todos os momentos.

Gostei tanto da ideia que fiquei matutando... E os meus leaps? Desvios do rumo normal ou a síntese do que sou hoje?

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Escorregando no relativismo

Na prova de Teoria Literária, as contradições de ser formado em Ciências Sociais e estar cursando uma segunda graduação me assaltaram traiçoeiramente.

Lá pelas tantas uma questão pediu para que fossem marcadas – sim, prova de marcar "X" – todas as alternativas que contivessem comportamentos humanos culturais.

A questão referia-se a uma discussão em sala de quando a professora tentou nos explicar o que era cultura e de como era preciso desnaturalizar o natural. Enfim, tratava-se do caminho antropológico para se pensar cultura.

Mas a questão veio escorregadia.

Tinha lá umas alternativas obviamente culturais... Comer com talheres, Dormir de Pijamas, Falar Português. Outras obviamente não-culturais, tipo Dormir e Comer.

Mas, como eu disse, escorregadia...

Trabalho: é ou não cultural? E Brincar, é coisa da cultura ou da nossa natureza? Existem monografias sem fim, dissertações e teses em torno disso! E lá estava a primeira prova da disciplina de Teoria Literária, no primeiro ano do curso de Letras, me perguntando isso... Na mão a caneta vacilou.

Tinha ainda duas suspeitosíssimas alternativas: Andar e Falar.

Se tem uma coisa que aprendi nas sonolentas aulas de antropologia, é que não devemos nunca duvidar da
capacidade de inovação das etnias desse mundo afora. Andar tem como sinônimo denotativo, e também conotativo, o verbo caminhar, que nos remete a andar sobre duas pernas. Quem garante que na África setentrional algum povo que só existe porque algum antropólogo xereta foi fuçar atrás, use outra ação, que não andar/caminhar, para locomover-se?

E Falar então? Lembro mais ainda, apesar das divagações inevitáveis durante as já referidas aulas de antropologia, que existe mesmo um povo que usa somente dos estalos da língua para comunicar-se. Exótico é, sem dúvidas,  mas e isso é Falar

Como se vê, a prova de Teoria Literária encurralou meu diploma de bacharel em Ciências Sociais.

Agora, pensando a respeito, vejo que a culpa é do próprio diploma.

Para obtê-lo passei por tantas horas-aula em que aprendi a ser relativista ao extremo; me ensinaram como duvidar de tudo e desconstruir o dado como certo e único; me levaram ao topo do relativismo. Só não trouxeram de volta. E as coisas começaram a perder suas certezas – às vezes perigosamente.

Aí, quando chegam as questões simples do dia a dia, não consigo escapar de mim mesmo.

Quer dizer, não consigo relativizar meu próprio relativismo para no fim voltar momentaneamente a ser não-relativista. Ou algo do tipo.

Ao final entreguei a prova.

O tira-teima só aula que vem, na próxima semana.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

A véspera

O melhor é a véspera, não aquilo por que se espera. Algo, alguém, uma coisa, um dia; podem ser bons enquanto acontecimento, mas o melhor, sempre, é a véspera, o por vir.

Não a espera longa e chata, apenas o instante em que já se vê, num horizonte que não existe, a proximidade do que aguardamos. É a melhor hora, o instante máximo.

Na exata antecedência nada pode dar errado. E tudo é. O que você quer, tem. O que você espera, acontece. A mudança, sofrida, ali é bobeira dada de mão beijada. Só na véspera tudo é.

E a chegada em nada supera a espera do que chegará.

Início é só eufemismo traiçoeiro para decadência irreversível. Depois que vem só há o caminho da partida – doa o quanto e a quem doer. Somente o esperar é chafurdar no prazer imperturbável da imaginação.

No etéreo lugar que antecede a vida, me avisaram: você vai viver. Que alegria fui. Farei, direi, conhecerei, serei, ah, tantos verbos no futuro! Foi aí que descobri que véspera é sinônimo de futuro. Mas então nasci. E sem surpresa chorei a plenos pulmões: era o início.

(Subjetividade espirrada numa confusão verbal só para dizer quão agradável é andar pelas ruas na véspera do Dia das Mães. Já é noite e o comércio continua a todo vapor, as sorveterias contaminam transeuntes desprevenidos com aroma de baunilha, e as lanchonetes são risos amigos. Dá vontade de andar por aí até enjoar – uma hora enjoaria, mas valeria a pena. E para o sucesso da véspera, segunda-feira tudo volta ao normal).

domingo, 1 de maio de 2011

Sem volta

Sentia a urgência em dizer algo. Não dava mais para calar. Mediu duas ou três frases até encontrar a precisão. Chegaria no ponto. A síntese da intenção. Esperou a oportunidade, e quando veio, respirou fundo. Mirou e disse. Disso tudo em pouco. Atirou.

Mas as palavras não prometiam sair assim, tão duras e secas e frias. Só que saíram.

Sentiu pressa em desdizer. Tinha que voltar a calar. Agarrou o silêncio em busca do esquecimento. O tempo chegaria. Tinha de chegar. E iria gastar, deteriorar o som. Pastoreadas pelo tácito, as aparências voltariam.

Mornas, úmidas, escorrendo por tudo, palavras pintadas voltando para casa. Fantasia de carnaval que retorna suja. Batida, reprovada, rasgada. Mas retorna. Remenda-se.

Só que as palavras tinham saído. E ao saírem foram com a decisão: nunca mais voltariam.