domingo, 10 de julho de 2016

O que é conflito?

Parece um daqueles conceitos sociológicos óbvios e que não merecem explicação alguma. Entretanto, quando tentamos pensar sociologicamente o conflito é certo que o conceito ganha diferentes visões e interpretações.

Assim, antes de ampliar a interpretação sobre ele, vamos estabelecer uma definição geral. 

Conflito é o antagonismo aberto entre atores que têm interesses momentaneamente incompatíveis quanto a posse ou a gestão de bens raros, sejam simbólicos ou materiais.

Ou seja, ao menos dois atores – individuais ou coletivos – desejam o controle sobre um mesmo objeto – físico ou não -, mas que é escasso, para poucos, de difícil ou incomum obtenção.

Dois irmãos que disputam o último pedaço de pizza é um conflito, assim como dois povos que guerreiam por um poço d'água no deserto também é.

Entretanto, considerando que a Sociologia é uma ciência da sociedade, ela obviamente tem preferência por fenômenos eminentemente coletivos. E neste sentido, o primeiro passo para melhor entendermos o que é conflito é encaixá-lo nas dinâmicas mais típicas da nossa vida em sociedade.



Conflito enquanto Processo Social.

Vivemos em sociedade e isso implica em ao menos duas coisas: coletividade e interatividade.

Aí que um meio muito didático e comum de referir-se à vida em sociedade é listando as relações sociais mais comuns entre os diferentes grupos de uma sociedade, algo que podemos chamar também de processos sociais. São ao todo cinco processos.

1) Cooperação. É o processo em que dois ou mais atores atuam em conjunto para conseguir um objetivo em comum.

Pode ser quando várias turmas de uma escola se reúnem para fazer um abaixo-assinado contra um professor. Ou quando diferentes setores da sociedades se organizam para uma passeata de manifestação. Ou quando Zé e Pedro fazem uma vaquinha para comprar o Fifa 2016.

2) Competição. É possivelmente o processo social mais comum posto que aparentemente inevitável. Onde houver diferenças, há latente competição – por bens, por status, por direitos, por posições.

Assim, competição é uma luta constante entre pelo menos dois atores, mas uma luta quase sempre inconsciente e impessoal.

O estudante que se atira com afinco nos estudos (pois deseja se formar bem e conseguir um bom emprego) está competindo sem saber. Ele almeja posições e oportunidades que não serão garantidas a todos. E assim, de modo mais ou menos direto, o sucesso dele pode atrapalhar o sucesso dos outros, mas ele não sabe quem são esses outros e talvez nunca parou para pensar que existem outros que serão prejudicados.

É como uma disputa com um oponente virtual, um oponente indiretamente referido. As nações competem no cenário internacional, os setores da sociedade competem por visibilidade, os produtos competem pela preferência do consumidor.

3) Conflito. Podemos dizer que conflito é a evolução da competição. Quando a hostilidade torna-se evidente; quando os interesses dos atores envolvidos revelam-se excludentes; quando a competição torna-se consciente e pessoal, bem, aí temos um conflito.

É aquela triste constatação de um mundo competitivo e desigual: para eu ter o que quero, em algum momento terei que impedir que outras pessoas tenham o que desejam. E isso desde uma vaga na faculdade, passando por um emprego, chegando nas coisas mais bobas da nossa vida, tipo a discussão sobre um tema polêmico ou no descolar de um parceir@ afetivo (a menos que vocês revejam o conceito de monogamia, claro). E isso para não mencionar os conflitos evidentes, como guerras entre países ou outras disputas coletivas.

Conflito, portanto, é a disputa consciente e pessoal, e sabidamente perversa pois ambas as partes reconhecem-se em disputa e sabem que alguém voltará para casa de mãos vazias.

É quando nações entram em disputa por algum pedaço de terra, quando setores da sociedade tentam ocupar um determinado posto no governo, quando os canais de televisão tentam monopolizar a transmissão de um evento esportivo.

4) Acomodação. Se há conflito, ao menos podemos tentar diminuí-lo através da acomodação. Com isso tenta-se estabelecer uma nova forma de convivência que diminua o conflito. A questão, porém, é que é uma tentativa formal, externa, meio que pra inglês ver, saca?

Exemplo. Se numa sala de aula há muitas brigas entre as panelinhas (conflito), o professor pode adotar a seguinte estratégia (acomodação): dissolver as panelinhas colocando os alunos para sentar em lugares diferentes, e ainda estipular que ao menor sinal de briga despachará o brigão para uma conversa com a diretora.

Isso pode ou não funcionar. A questão, porém, é que o professor não atuou no motivo do conflito; tão somente adotou medidas que, reorganizando a convivência entre os conflitantes, age por fora deles. Se o motivo das brigas é a antipatia da galera do fundão pela galera da frente, a medida adotada pelo professor não vai resolver a antipatia – se muito, impediu que ela volte a se expressar num conflito.

Indo para exemplos de outro escopo, podemos pensar em leis antirracismo – que apesar de necessárias, atuam antes no nível da norma, e não nos valores que fazem surgir o racismo. Ou ainda na ONU, que impõe diretrizes e orientações para de países em conflito, só que raramente consegue dirimir as causas concretas do embate.

5) Assimilação. É o processo em que um grupo aceita e adquire os padrões comportamentais de outro grupo. Isto é, da diferença entre dois grupos nasce não a competição ou o conflito, mas uma assimilação.

Voltando ao exemplo das panelinhas, o professor poderia tentar promover uma assimilação. Talvez forçando atividades em grupo que mesclem as duas panelinhas, ou dinâmicas em sala que promovam a empatia e conhecimento entre a galera do fundão e a galera da frente, até que fossem todos uma só galera – essas utopias do mundo escolar... 

Em exemplos de maior amplitude, a assimilação pode ser facilitada pela proximidade linguística entre dois grupos, ou ainda pelo desejo de um dos grupos ser reconhecido como pertencente ao outro grupo.

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Inserir conflito neste olhar sobre os processos sociais é interessante justamente pela dinâmica conferida – os atores da sociedade transitam por relações ora mais associativas ora mais dissociativas, do que o conflito pode ser tanto a origem, meio ou desfecho desse trânsito.

Contudo, é uma concepção bem genérica.

Alguns autores vão revestir conflito com algumas sutilezas, mas sem nunca perder de vista aquele conceito geral – forças antagônicas em disputa.

Marx e a luta de classes.

Marx não usa exatamente a palavra conflito, mas a ideia é a mesma: na nossa sociedade, temos duas classes sociais em evidente conflito, cada qual com um interesse próprio e que depende da anulação do interesse da outra.

Assim, quando Marx fala de luta de classes ele se refere ao embate entre capitalistas e proletariado.

Só que essa luta não é exclusiva do aqui e agora; na verdade, essa luta está presente na própria natureza da sociedade humana. Já dizia a fantástica dupla comunista:
“A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas das classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de corporação e oficial, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta”.
(F. Engels & K. Marx)

Como se vê, é praticamente a aplicação do conceito geral de conflito, só que com outro nome e com exemplos históricos.

E para o marxismo é assim mesmo.

O conflito está entranhado na sociedade pois sempre existem contradições que fomentam o conflito – exemplo, uma parte da sociedade que para ficar rico depende do aumento da miséria e exploração da outra parte.

Particularmente no capitalismo, a contradição central é quanto à propriedade privada.

Aqueles que possuem a propriedade privada dos meios de produção (didaticamente podemos pensar nas fábricas, indústrias e empresas) estarão numa condição completamente diversa daqueles que não possuem os meios de produção (possuem tão somente sua força de trabalho, isto é, a possibilidade de serem empregados).

Basicamente, quem tem são os dominantes no quadro da sociedade, e quem não tem a propriedade privada são os dominados.

E isso está dado na própria estrutura do capitalismo, pois não há capitalismo sem a distinção entre os que possuem e os que não possuem a propriedade privada dos meios de produção.

Esse conflito estrutural, no marxismo, é o motor da história humana. E inexoravelmente nos conduz à transformação social, econômica e política – ou, recuperando o termo marxista, à revolução proletária que abrirá as portas para uma inédita sociedade sem desigualdade, sem dominação e, portanto, sem conflitos.

Mas se Marx era meio que fatalista quanto ao conflito, que se tornava algo inevitável e necessário à sociedade, outros sociólogos serão bem menos receptivos e baterão três vezes na madeira sempre que ouvirem falar de conflito. 

Comte, Durkheim e o equilíbrio social.

Honrando suas origens positivistas e funcionalistas, Durkheim não via o conflito com bons olhos.

Auguste Comte, pai oficial da Sociologia, e a quem Durkheim muito deve de sua inspiração sociológica, também tinha ressalvas contra o conflito. E isso a gente ente logo numa das mais famosas frases comteanas:

“O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim.”
(A. Comte)

Comte acreditava que a Revolução Francesa tinha bagunçado muito as coisas. E nessa bagunça faltou um novo conjunto de valores que, suplantando os antigos, guiasse adequadamente a nova sociedade.

Quer dizer, no esquema comteano, a sociedade estava superando sua forma teológica e militar e ingressando em sua fase positiva, que era uma sociedade de forma científica e industrial. E até aí tudo muito bom e muito certo, mas o problema era o espírito ausente: falta uma base moral, faltam os valores para guiar essa transformação.

Daí que viria a Sociologia com a missão de instaurar como que uma reforma intelectual. Mas intelectual não tanto no apelo a razão (que também existia), mas um apelo à moral-espiritual; isto é, todos os homens integrados numa ordem perfeita – amor, ordem e progresso, emendaria Comte

Conflitos? Algo ruim, anormal e evitável.

Conflitos são frutos daquela transição social realizada sem os valores adequados, sem a moral correta, sem um poder espiritual para guiar os homens.

Solução? Use a Sociologia e ela nos mostrará as leis da sociedade e como facilitar o cumprimento destas leis.

E é mais ou menos nessa onda conservadora que Durkheim irá seguir.

Pejorativamente chamado de o sociólogo do consenso – e não de todo injustamente -, Durkheim via  o conflito como uma patologia social.

Patologia conceitualmente entendida como a exceção que foge à regra. E sendo exceção, não contribui com o funcionamento do todo (no caso, da sociedade).

Portanto, o normal durkheimiano é a não-existência de conflito, que é visto como algo que atravanca a sociedade. 

O emblemático embate entre trabalhador e patrão, por exemplo, seria um desregramento atípico das relações sociais.

Caso as instituições sociais funcionassem direito, e caso a moral social fosse bem sedimentada, todos ficariam felizes e satisfeitos com a parte da sociedade – e do trabalho – que lhes cabe. Houvesse normas e valores adequados, os homens teriam suas ambições e desejos adequadamente contidos, o que faria a sociedade funcionar sem greves, manifestações e explorações. Tudo viraria uma coisa só e bem integrada.

Afinal de contas, vamos lembrar, Durkheim acreditava muito na função das coisas. O organismo social, sendo um todo bem integrado, terá suas partes funcionando em harmonia, cada qual na sua causa e razão de ser… e sem espaço para conflitos.

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Até agora vimos um conceito geral de conflito, então vimos a aplicação disso nos processos sociais, e por fim duas visões razoavelmente antagônicas – marxistas e o conflito enquanto fatalidade, e positivistas e funcionalistas execrando o conflito enquanto anormalidade.

Mas há ainda um outro olhar sobre o conflito. E é um olhar bem interessante. Digamos que a sua maior marca é ser analítico e neutro – conflito desfatalizado e despatologizado.

A análise conceitual de Weber e Simmel.

Weber, como de praxe, teoriza as coisas como que neutralizando as paixões e tendências pessoais que porventura influenciam a teorização alheia.

Daí que vai dizer:

"Uma relação social denomina-se luta quando as ações se orientam pelo propósito de impor a própria vontade contra a resistência do ou dos parceiros."
(M. Weber)

Ele fala luta, não conflito, mas a proximidade das ideias justifica tomarmos uma pela outra.

E claro que Weber vai muito além dessas duas linhas. Contudo, o que interessa aqui é reter o significado implícito: o conflito é antes de tudo uma relação social, isto é, um tipo de relação social. E nesta condição o conflito é inevitável:

"é impossível, de acordo com a experiência vivida até os dias de hoje, eliminar a luta na realidade."
(M. Weber)

Deste modo, ele contribui para encarar o conflito de modo muito menos tendencioso e muito mais circunscrito – nada de motor da história, nada de doença de toda a sociedade, mas sim uma relação social entre atores sociais executando ações sociais. 

Mas essa visão não-tendenciosa fica particularmente expressa numa outra visão que vê o conflito diluído em toda a sociedade.

Georg Simmel (1858-1918) foi um sociólogo alemão muito importante que apesar de não estar formalmente junto dos três porquinhos clássicos da sociologia (Marx, Durkheim e Weber) na prática é tão clássico e importante quanto eles.

Permanecendo somente nos propósitos deste texto, cumpre notar que Simmel enxergava o conflito como algo próprio da sociedade e, portanto, sem maiores dramas ou apocalipses.

Conflito é mais como um conceito, uma categoria, e assim está além do bem e do mal: é tão somente uma forma de interação entre os indivíduos.

Quer dizer, se isolamos suas causas ou consequências, o que observamos é que o conflito puramente uma ação recíproca entre as partes envolvidas.

"Toda ação recíproca entre homens é uma socialização, a luta, que constitui uma das mais vivas ações recíprocas e que é logicamente impossível de limitar a um indivíduo, deve constituir necessariamente uma socialização."

(G. Simmel)
O que Simmel pretende dizer é que quando duas pessoas brigam elas tem ao menos alguma coisa em comum – mesmo que seja somente a disposição compartilhada em usarem da força para resolver o conflito. Os envolvidos ficam num mesmo plano, reconhecem-se, invocam elementos comuns a ambas as partes. Até mesmo na guerra, por exemplo, os direitos humanos são (teoricamente, claro) reconhecidos por ambos os lado. 

Poderíamos tentar simplificar isso imaginando um jogo de tabuleiro – qualquer jogo, na verdade. Por mais que haja adversários, disputa, vencedores e derrotados, prêmios e conquistas, existem regras, parâmetros, uma porção de valores e práticas compartilhadas que todos os envolvidos devem dominar para poder participar do conflito.

Podemos ir além e dizer, portanto, que o conflito sintetiza o próprio princípio que possibilita a existência da sociedade: interdependência das partes e interação social.

Além disso, Simmel faz duas considerações sutis mas super precisas a respeito do conflito. A primeira, é de que o conflito só se desconfigura e deixa de ser uma forma de socialização quando uma das partes perde sua capacidade de defesa – nesse caso passa a se tratar de opressão.

A segunda, é que o conflito é propulsor. Através dele, a tendência é irmos além das coisas como são no presente. Essa é uma visão muito comum da Administração moderna: o conflito como força criativa. E é mais ou menos isso que Simmel dizia; quando há conflito há a quebra da inércia e criação de possíveis novas formas sociais. 

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E assim alcançamos um panorama parcial sobre o conflito na Sociologia. Não seu esgotamento, mas pelo menos um norte para se (começar a) pensar a questão.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

O que é Ação Social?

Na Sociologia, se falamos de ação social, falamos quase invariavelmente de Max Weber. Afinal, ele deixou uma grande sacada à ciência sociológica que seria mais ou menos o seguinte:

todo fenômeno social é composto por ações individuais.

Por trás da obviedade aparente rola um profundo debate sobre como é que podemos compreender esse mundo social louco que nos rodeia.

Vamos lembrar que os outros clássicos viam a coisa por outro viés.

Durkheim explicava as coisas pelos fatos sociais, que eram coletivos, gerais e coercitivos – portanto, pairavam opressivamente sobre os indivíduos e suas ações individuais.

Marx, num viés analítico generalizante, via a sociedade regida por uma dinâmica dialética materialista que, em última instância, também não dava muito espaço aos indivíduos e suas ações individuais – se muito, dava espaço às classes sociais em perpétuo combate.

Aí que quando Weber diz que devemos focar especificamente na ação individual, bem, temos uma considerável mudança de perspectiva.

No texto abaixo seguiremos aprofundando, primeiramente, o entendimento weberiano de ação. A seguir, serão dados os famosos quatro tipos de ação, o que conduzirá a uma breve pincelada sobre os famosos tipos ideais.

O caminho do meio. 

O foco de Weber na ação individual é uma posição intermediária entre dois extremos.

De um lado, o livre arbítrio ingênuo – como se as pessoas tivessem total e absoluta liberdade para fazer, pensar, sentir e etc como bem entendessem. Do outro, as explicações totalizantes – como se houvesse um grande quadro explicativo capaz de dizer invariavelmente por que é que as pessoas fazem, pensam, sentem e etc desse modo e não de outro.

Ora, não existem condicionamentos absolutos – rebate explicações totalizantes -, mas é certo que existem estruturas sociais que influenciam nosso comportamento – rebate o livre arbítrio ingênuo.

Aí que a ideia de ação social é muito pertinente. Como veremos abaixo, ela traduz, entre outras coisas, o elemento intersubjetivo da vida em sociedade.

Simplificando: tudo o que eu faço precisa ser compreensível por outras pessoas.

Portanto, por mais que eu possa sim executar ações individuais espontâneas e originais, é certo que essas ações refletem um fundo em comum com outras pessoas – que poderíamos chamar de valores, cultura, aprendizado, e por aí vai.

O conceito de ação social.

Feita esta introdução, vamos então conceituar ação social.

Como vê-se, é um conceito que traz duas ideias: ação e social.

Ação refere-se a um fato muito básico: o indivíduo age e atribui sentido subjetivo à sua conduta.

É mais ou menos como se todos nós agíssemos, mesmo sem nos dar muita conta, com um 'por que' latente, uma explicação que nós damos para a nossa ação – isto é, um sentido subjetivo.

Social refere-se a outro fato muito básico: o sentido atribuído à ação se relaciona à conduta de outra pessoa.

Vamos a um exemplo.

O aluno, em sala de aula, está prestando atenção na aula. Isto é, o professor explica e ele ouve e toma notas.

Podemos supor que o aluno está realizando uma ação cujo o sentido subjetivo seria de efetuar o aprendizado, para assim conseguir boa nota na prova próxima, que acumulada a outras boas notas lhe daria a aprovação no final do ano, e que numa cadeia maior supostamente lhe ajuda no ENEM, no vestibular, etc e etc.

Assim, aquela ação de 'prestar atenção' tem um sentido subjetivo para o indivíduo.

Mas essa ação é também social. Por quê? Porque está voltada à conduta de outras pessoas.

Evidentemente, o aluno só pode prestar atenção porque tem outra ação acontecendo, que é a do professor explicando a matéria.

Ambos, professor e aluno, entendem o que está acontecendo naquele momento e por isso podem, cada qual do seu lado, efetuar uma ação social – isto é, uma conduta com sentido subjetivo que volta-se para a conduta do outro.

Digamos que eventualmente o aluno não estivesse prestando atenção, mas apenas fingindo que presta atenção. Novamente, seria ação pois há um sentido subjetivo – camuflar o fato de estar pensando na festa do final de semana. E seria social porque volta-se para a conduta de outras pessoas – do seu professor, que prossegue dando aula na expectativa de obter a atenção dos seus alunos.

Aqui fica mais clara aquela posição weberiana entre os extremos de uma determinação total das atitudes individuais e do livre arbítrio absoluto. A ação social, por definição, envolve a liberdade de cada um dotar suas condutas de um sentido próprio, mas isso é feito sobre bases comuns compartilhadas com outras pessoas.

É importante notar, ainda, que Weber usa a palavra subjetivo. Isto é, nós atribuímos sentidos subjetivos. Isso é uma grande diferença com Durkheim que, vamos lembrar, aposta na objetividade dos fatos sociais, essas coisas concretas, expressas na realidade observável.

Weber, ao contrário, fala de subjetivo como algo que não é imediatamente apreensível. Subjetivo, na verdade, como uma esfera interna ao sujeito, sua visão de mundo, a percepção que tem de si e de tudo que o rodeia, e que deve ser reconstruída caso queiramos compreender essa ação social.

Talvez isso tudo fique ainda confuso. Mas quando analisamos os tipos de ação social que Weber elenca as coisas tendem a ficar mais claras.

Os quatro tipos de ação social.

De acordo com Weber, se analisamos as condutas das pessoas, podemos identificar quatro tipos de ação. É um pensamento esquemático muito simples e intuitivo.

Ação Tradicional. É o comportamento individual que responde à tradição, ao costume, àquela ordem das coisas que sempre foram de um jeito e, por isso, realizo uma ação que preserve essa tradição. Por exemplo, é quando a pessoa significa a sua ação através do famoso "bem, nós sempre fizemos assim, né?". 

Ação Afetiva. É a resposta a um impulso emocional, ou ainda a um estado de consciência ou humor. É quando a pessoa reage instantaneamente e sem raciocinar – é só sentimento guiando a ação, como a bofetada que o pai raivoso dá no seu filho desobediente.

Ação racional com relação a valores. É um cálculo mirando um objetivo, um fim, só que esse fim é um valor que o indivíduo tem como importante. Ou seja, é uma ação racional ("o que fazer para alcançar aquele objetivo?") para satisfazer um aspecto moral, ético ou de convicção. Por exemplo, é capitão afunda com seu navio porque acredita que esse é o seu dever, é o criminoso preso que não denuncia seu comparsa porque acredita em princípios de honra e camaradagem.

Ação racional com relação a fins. É um cálculo mirando um objetivo, um fim, mas isento de qualquer aspecto moral ou ético. É simplesmente encontrar o melhor meio para atingir, de modo eficaz, o fim. É quando o empresário busca o lucro, por exemplo – é, na verdade, o tipo de ação mais comum nas sociedades modernas.

E acho interessante ressaltar três importâncias dessa tipificação das ações.

A primeira, e mais óbvia, é seu poder ilustrativo. São úteis (e até divertidas) para se pensar o mundo a nossa volta, inclusive nós mesmos. Por que as pessoas agem assim ou assado? E por que eu acabo de fazer isso ou aquilo? Responder essas perguntas é a ponta da corda de muitas explicações sociológicas interessantes e de grande alcance.

A segundo, um pouco menos óbvia, é que as pessoas não são necessariamente frias calculistas voltadas para ganhos materiais. Observando os tipos de ação, notamos que apesar do aspecto utilitário de nossas ações existir sim – ação racional -, existem também outros aspectos que devem ser considerados – ação guiada pela tradição, sentimentos, ou mesmo uma racionalidade voltada a valores.

E terceira, que é muito razoável, é que são tipos de ação exemplificativos e não uma lista taxativa. Isto é, são um esforço intelectual para tentar melhor organizar nossos pensamentos sobre a ação das pessoas, e não necessariamente aquilo que encontramos no mundo real e nas ações reais das pessoas.

Estamos falando, então, de outra importante noção weberiana.

O tipo ideal.

Para Weber, o método científico consiste em construir tipos.

E é assim porque construindo tipos eu consigo simplificar o elemento da realidade a que quero me referir.

Ora, a realidade é complexa pacas, portanto é extremamente improvável conseguir sintetizá-la num conceito (uma dificuldade gritante nas ciências humanas).

Aliás, se pegarmos um bom dicionário, notamos que praticamente todo verbete traz pelo menos dois sentidos diferentes, revelando que nosso uso das palavras não é algo simples pois as palavras não tem uma pronta, evidente e acabada correspondência com a realidade.

Quando falamos das pessoas e de suas ações certamente que a duplicidade (ou mais) de sentidos também ocorre.

Construir tipos ideias, portanto, é um esforço intelectual para organizar o fenômeno observado. Através desse esforço, o cientista cristaliza aquilo que torna o fenômeno diferente dos demais.

Um tipo ideal é uma simplificação, a redução daquilo que observo ao seu estado de pureza, à sua essência.

É como um filtro que eu aplico à realidade para retirar dela seu o elemento mais contrastante.

Isso é o tipo ideal weberiano: uma ferramenta analítica para encarar a realidade.

Note a diferença sutil e fundamental.

Eu não realizo estudos para alcançar, enquanto objetivo final, um tipo ideal.

Ao contrário, eu uso dos tipos ideias no meu estudos para então alcançar, enquanto objetivo final, uma melhor compreensão da realidade.

Voltando aos tipos de ação social, temos então que são tipos ideais: quatro tipos de ação social em seu estado puro, cristalizado, forçados para melhor conseguir compreendê-los – e aplicá-los, caso a caso, na análise da realidade.

Raramente as pessoas realizam ações exclusivamente tradicionais, ou afetivas, ou completamente racionais. Muito pelo contrário. As pessoas geralmente realizam ações nas quais a motivação é confusa e misturada. Entretanto, com os tipos ideais à mão, posso correlacionar os elementos dessas ações a um norte seguro, claro e facilitador: as ações em seu estado puro.

Assim, munido de um conceito de ação social, bem como seus quatro tipos ideais, o sociólogo pode encarar a realidade investigativa.

Ele já sabe com o que está lidando – conceito – e tem uma referência para melhor interpretar os sentidos – os quatro tipos ideais de ação.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Como entender Max Weber?

Max Weber (1864 – 1920), alemão, intelectual e político, foi um sujeito muito do foda. Estudou tanto e tantas coisas que é desanimadora qualquer tentativa de tentar igualar o ímpeto com que ele se atirava aos estudos. Não à toa, é também um clássico da sociologia.

Sim, pois desenvolvendo estudos em religião, política, economia e direito acabou traçando elementos fundamentais para compreendermos a sociedade moderna.

E comparando com outros sociólogos clássicos, há quem diga que sua teoria foi a que melhor envelheceu – isto é, não obstante os avanços na forma de fazer Sociologia, Weber continua oferecendo conceitos interessantes e metodologia pertinente.

Por isso vamos hoje à uma introdução à Max Weber.

Não o seu dissecamento pelo avesso, mas um olhar abridor de portas.

O que segue abaixo é um tentativa de ilustrar parte do pensamento weberiano, e justamente a parte que facilitará a compreensão de seus conceitos futuramente trazidos aqui – como tipo ideal, ação social, burocracia, dominação, desencantamento do mundo, entre outros.

O texto começa com a caracterização geral da pegada weberiana, passa pelo seu uso das causas prováveis, segue na menção daquilo que Weber considera mais importante na análise sociológica, e termina pincelando duas expressões inevitáveis ao falar de quem falamos: sociologia compreensiva e individualismo metodológico. 

E atenção!

A intenção aqui é provocar a mais leve e sutil aproximação de um autor ou ideia. Portanto, os textos a seguir é introdutório e absolutamente simplificados. E tenha ciência que o efeito perverso das simplificações é perder (ou até distorcer) o sentido original do autor ou ideia (ainda mais com Weber cuja toda ideia é razoavelmente complexa). Assim, considere o texto abaixo nessa condição


O mais triste dos sociólogos.

Weber foi um sociólogo muito do deprimido. E com isso eu me refiro a mais do que a seu quadro clínico depressivo (estudar demais faz mal, gente). Até sua teoria era triste, e sua visão de ciência, desanimadora.

De forma geral, acreditava que caminhávamos para um futuro desolado e sem graça. Um futuro em que perdemos a magia da vida e nos prendemos numa cela feita de eficiência, normas e regras – this is modernity, baby.

E a atividade científica (inclusive sociológica), por sua vez, não ajuda muito pois é algo essencialmente limitado. Conforme progride, a ciência não traz verdades senão mais e mais perguntas; e a tal ponto, que o sociólogo ao final de sua carreira só terá a certeza de que logo seus achados serão superados já que a verdade última das coisas é impossível.

E aqui está algo crucial ao entendimento de Weber: sua, digamos, humildade científica.

Leis invariáveis, a explicação total das coisas e fenômenos, o sentido essencial de um acontecimento, grandes quadros explicativos... nada disso Weber crê ser sociologicamente possível.

Portanto, todo aquele papo positivista de achar as leis da sociedade bem como um estágio final da ciência, definitivamente, não é o papo de Weber.

Do mesmo modo, aquele papo marxista duma dinâmica única e exclusiva que explica a sociedade, que é o materialismo (lembrando simplificadamente: a economia determina todo o resto), também não cola em Weber. 

Não, Weber é muito mais humilde.

O que então Weber propõe?

A ciência é possível, mas tem limites.

Certamente que Weber acredita que podemos construir conhecimentos válidos e o cara dedicou a vida a isso.

Ora, o que ele refuta é um conhecimento que se pretende total, unívoco, a verdade absoluta; por outro lado, um conhecimento ciente da sua limitação é plenamente aceitável. 

Daí que toda a sua sociologia é marcada por causas prováveis - não definitivas, não absolutas, não únicas, apenas prováveis. 

Num dos mais famosos estudos weberianos, ele investigou a ligação entre o capitalismo e religião. Como pano de fundo, uma das perguntas que o estudo queria responder era por que é que o capitalismo surgiu aqui no Ocidente e não, digamos, na China? 
 
Algumas vertentes sociológicas responderiam através de leis de funcionamento da sociedade ou de algum princípio que está em toda a natureza humana.

Weber, por sua vez, vai apontar tão somente uma causa provável.

Assim, desenvolve o raciocínio de que uma determinada visão de mundo religiosa, surgida no Ocidente, coloca as pessoas numa certa atitude diante do trabalho e dos seus resultados.

Esse jeito de encarar o trabalho, por sua vez, vai se encaixar bem no princípio elementar do capitalismo, isto é, produza riqueza mas, em vez de gastá-la, reinvista para gerar ainda mais riqueza.

Daí que essa visão de mundo religiosa, ao interferir no modo como as pessoas trabalham e vivem, é uma das causas prováveis para o capitalismo ter surgido no Ocidente e não noutro lugar do mundo.

É a explicação final? O fenômeno está totalmente compreendido? Podemos bater o martelo quanto a origem do capitalismo, dizer que ele surgiu por causa de uma determinada religião, e então passar adiante? Não mesmo.

O que Weber fez foi encontrar um nexo causal que ajuda a entender a questão.

Nem mais nem menos, mas tão somente um nexo causal.

Em termos genéricos:

não há como eu dizer que um fator A determina um acontecimento X, por outro lado, eu posso sim dizer que um fator A favorece o acontecimento X.

E se os grandes acontecimentos históricos são vistos sob essa humildade científica, eu preciso partir de bases igualmente humildes.

"Me diz aí, por que você faz isso?"

Compreender o nexo causal das coisas só é possível quando eu percebo o que realmente importa na vida social.

Quer dizer (novamente), se eu parto em busca de leis universais-totais, não encontro um conhecimento possível. Entretanto, existe algo que está imediatamente ao alcance da sociologia e que é, portanto, a fonte do conhecimento possível.

Trata-se da conduta individual das pessoas.

Nessa perspectiva, o sociólogo não pode localizar, no dia a dia, a lei da sociedade e dos fatos (livros religiosos não contam, ok?). Por outro lado, ele pode sim localizar a ação das pessoas, e isso é o que realmente importa na vida social.

Weber fez uma constatação até óbvia.

Imaginemos uma sala de aula e um aluno que não para de conversar durante a aula.

Aí então, consternados pela profundidade da questão, intelectuais realizam uma grande conferência sociológica para discutir por que diabos os alunos conversam durante a aula.

Certas vertentes sociológicas dirão que é culpa da estrutura escolar.

Outras dirão que é reflexo da civilização moderna, que está perdendo seu poder de disciplina e ordem.

Vai rolar a habitual culpa da ausência de valores morais dados em casa. 

E pode até ter algumas que invocarão uma tendência psico-sócio-biológica para explicar o aluno tagarela.

Se Weber estivesse nessa conferência ele iria sugerir apenas uma coisa: que tal começar perguntando para o aluno por que é que ele está conversando?

"Me diz aí, por que você faz isso?"

Uooow! Como não pensamos nisso antes?

E é simples assim.

A sociologia weberiana é voltada para as condutas pessoais, mas a partir do sentido que as pessoas atribuem às suas condutas. Ora, tudo o que fazemos nós fazemos com algum sentido, fazemos com alguma razão.

Mesmo que às vezes nem nós compreendamos essa razão e muito menos consigamos antever as consequências daquilo, para Weber é o sentido subjetivo que importa e deve ser resgatado.

Instituições sociais, grupos sociais, representações coletivas: isso tudo existe, mas o grande potencial explicativo está no sentido que as pessoas atribuem às suas ações. E, aliás, é partindo das ações individuais que podemos frequentemente apreender instituições, grupos, representações e tantas outras coisas da ordem coletiva.

Assim, a conduta humana é o que nós, sociólogos, temos à nossa disposição para trabalhar, e compreender essa conduta (suas causas, desenvolvimento e efeitos) é o objetivo da Sociologia.

(não percamos de vista o que está como pano de fundo: não existe uma verdade metafísica que o mais fodástico pensador pode captar, o que há é um sentido pessoal a ser compreendido, interpretado e explicado).

Daí Weber ser associado à chamada sociologia compreensiva e ao individualismo metodológico.

Compreendendo os indivíduos.

A sociologia deve compreender o sentido que as pessoas dão às suas ações, e a partir daí interpretar e explicar as coisas.

E por outro lado, o método para tanto, a ferramenta analítica para alcançar aquele sentido, parte sempre do indivíduo, das pessoas concretas, dos seres humanos em sua vidas vividas.

Voltando ao estudo weberiano que relaciona capitalismo e religião temos, naturalmente, o melhor exemplo da sociologia compreensiva e do individualismo metodológico.

Os indivíduos vivem suas vidas. Essas vidas são inspiradas, dentre outras coisas, por uma visão de mundo religiosa, e essa visão de mundo faz com que elas deem um determinado sentido ao seu trabalho - devem trabalhar e produzir tanto quanto possível, mas sem gozar dos prazeres mundanos.

Portanto, é na ação individual de cada um (individualismo metodológico), apreendendo o sentido que cada um confere à sua ação (sociologia compreensiva), é que se alcança um quadro explicativo: por acharem que devem trabalhar sem gozar dos prazeres mundanos, as pessoas reinvestem o fruto do trabalho para terem ainda maiores frutos no futuro, o que dá uma baita mão na roda para o desenvolvimento do capitalismo.

Veja (reforçando a humildade weberiana) que isso está a quilômetros de distância de teorias que falem sobre leis de desenvolvimento da sociedade ou de princípios universais ou de argumentos totalizantes.

Partindo dessa humildade científica em Weber captamos muito dos seus estudos, conceitos e argumentos. Como veremos futuramente, toda a sua sociologia é marcada pelos elementos vistos acima: uma ciência limitada, o sentido que as pessoas dão às suas ações, e o esforço intelectual voltado à compreensão desse sentido.