domingo, 10 de julho de 2016

O que é conflito?

Parece um daqueles conceitos sociológicos óbvios e que não merecem explicação alguma. Entretanto, quando tentamos pensar sociologicamente o conflito é certo que o conceito ganha diferentes visões e interpretações.

Assim, antes de ampliar a interpretação sobre ele, vamos estabelecer uma definição geral. 

Conflito é o antagonismo aberto entre atores que têm interesses momentaneamente incompatíveis quanto a posse ou a gestão de bens raros, sejam simbólicos ou materiais.

Ou seja, ao menos dois atores – individuais ou coletivos – desejam o controle sobre um mesmo objeto – físico ou não -, mas que é escasso, para poucos, de difícil ou incomum obtenção.

Dois irmãos que disputam o último pedaço de pizza é um conflito, assim como dois povos que guerreiam por um poço d'água no deserto também é.

Entretanto, considerando que a Sociologia é uma ciência da sociedade, ela obviamente tem preferência por fenômenos eminentemente coletivos. E neste sentido, o primeiro passo para melhor entendermos o que é conflito é encaixá-lo nas dinâmicas mais típicas da nossa vida em sociedade.



Conflito enquanto Processo Social.

Vivemos em sociedade e isso implica em ao menos duas coisas: coletividade e interatividade.

Aí que um meio muito didático e comum de referir-se à vida em sociedade é listando as relações sociais mais comuns entre os diferentes grupos de uma sociedade, algo que podemos chamar também de processos sociais. São ao todo cinco processos.

1) Cooperação. É o processo em que dois ou mais atores atuam em conjunto para conseguir um objetivo em comum.

Pode ser quando várias turmas de uma escola se reúnem para fazer um abaixo-assinado contra um professor. Ou quando diferentes setores da sociedades se organizam para uma passeata de manifestação. Ou quando Zé e Pedro fazem uma vaquinha para comprar o Fifa 2016.

2) Competição. É possivelmente o processo social mais comum posto que aparentemente inevitável. Onde houver diferenças, há latente competição – por bens, por status, por direitos, por posições.

Assim, competição é uma luta constante entre pelo menos dois atores, mas uma luta quase sempre inconsciente e impessoal.

O estudante que se atira com afinco nos estudos (pois deseja se formar bem e conseguir um bom emprego) está competindo sem saber. Ele almeja posições e oportunidades que não serão garantidas a todos. E assim, de modo mais ou menos direto, o sucesso dele pode atrapalhar o sucesso dos outros, mas ele não sabe quem são esses outros e talvez nunca parou para pensar que existem outros que serão prejudicados.

É como uma disputa com um oponente virtual, um oponente indiretamente referido. As nações competem no cenário internacional, os setores da sociedade competem por visibilidade, os produtos competem pela preferência do consumidor.

3) Conflito. Podemos dizer que conflito é a evolução da competição. Quando a hostilidade torna-se evidente; quando os interesses dos atores envolvidos revelam-se excludentes; quando a competição torna-se consciente e pessoal, bem, aí temos um conflito.

É aquela triste constatação de um mundo competitivo e desigual: para eu ter o que quero, em algum momento terei que impedir que outras pessoas tenham o que desejam. E isso desde uma vaga na faculdade, passando por um emprego, chegando nas coisas mais bobas da nossa vida, tipo a discussão sobre um tema polêmico ou no descolar de um parceir@ afetivo (a menos que vocês revejam o conceito de monogamia, claro). E isso para não mencionar os conflitos evidentes, como guerras entre países ou outras disputas coletivas.

Conflito, portanto, é a disputa consciente e pessoal, e sabidamente perversa pois ambas as partes reconhecem-se em disputa e sabem que alguém voltará para casa de mãos vazias.

É quando nações entram em disputa por algum pedaço de terra, quando setores da sociedade tentam ocupar um determinado posto no governo, quando os canais de televisão tentam monopolizar a transmissão de um evento esportivo.

4) Acomodação. Se há conflito, ao menos podemos tentar diminuí-lo através da acomodação. Com isso tenta-se estabelecer uma nova forma de convivência que diminua o conflito. A questão, porém, é que é uma tentativa formal, externa, meio que pra inglês ver, saca?

Exemplo. Se numa sala de aula há muitas brigas entre as panelinhas (conflito), o professor pode adotar a seguinte estratégia (acomodação): dissolver as panelinhas colocando os alunos para sentar em lugares diferentes, e ainda estipular que ao menor sinal de briga despachará o brigão para uma conversa com a diretora.

Isso pode ou não funcionar. A questão, porém, é que o professor não atuou no motivo do conflito; tão somente adotou medidas que, reorganizando a convivência entre os conflitantes, age por fora deles. Se o motivo das brigas é a antipatia da galera do fundão pela galera da frente, a medida adotada pelo professor não vai resolver a antipatia – se muito, impediu que ela volte a se expressar num conflito.

Indo para exemplos de outro escopo, podemos pensar em leis antirracismo – que apesar de necessárias, atuam antes no nível da norma, e não nos valores que fazem surgir o racismo. Ou ainda na ONU, que impõe diretrizes e orientações para de países em conflito, só que raramente consegue dirimir as causas concretas do embate.

5) Assimilação. É o processo em que um grupo aceita e adquire os padrões comportamentais de outro grupo. Isto é, da diferença entre dois grupos nasce não a competição ou o conflito, mas uma assimilação.

Voltando ao exemplo das panelinhas, o professor poderia tentar promover uma assimilação. Talvez forçando atividades em grupo que mesclem as duas panelinhas, ou dinâmicas em sala que promovam a empatia e conhecimento entre a galera do fundão e a galera da frente, até que fossem todos uma só galera – essas utopias do mundo escolar... 

Em exemplos de maior amplitude, a assimilação pode ser facilitada pela proximidade linguística entre dois grupos, ou ainda pelo desejo de um dos grupos ser reconhecido como pertencente ao outro grupo.

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Inserir conflito neste olhar sobre os processos sociais é interessante justamente pela dinâmica conferida – os atores da sociedade transitam por relações ora mais associativas ora mais dissociativas, do que o conflito pode ser tanto a origem, meio ou desfecho desse trânsito.

Contudo, é uma concepção bem genérica.

Alguns autores vão revestir conflito com algumas sutilezas, mas sem nunca perder de vista aquele conceito geral – forças antagônicas em disputa.

Marx e a luta de classes.

Marx não usa exatamente a palavra conflito, mas a ideia é a mesma: na nossa sociedade, temos duas classes sociais em evidente conflito, cada qual com um interesse próprio e que depende da anulação do interesse da outra.

Assim, quando Marx fala de luta de classes ele se refere ao embate entre capitalistas e proletariado.

Só que essa luta não é exclusiva do aqui e agora; na verdade, essa luta está presente na própria natureza da sociedade humana. Já dizia a fantástica dupla comunista:
“A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas das classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de corporação e oficial, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta”.
(F. Engels & K. Marx)

Como se vê, é praticamente a aplicação do conceito geral de conflito, só que com outro nome e com exemplos históricos.

E para o marxismo é assim mesmo.

O conflito está entranhado na sociedade pois sempre existem contradições que fomentam o conflito – exemplo, uma parte da sociedade que para ficar rico depende do aumento da miséria e exploração da outra parte.

Particularmente no capitalismo, a contradição central é quanto à propriedade privada.

Aqueles que possuem a propriedade privada dos meios de produção (didaticamente podemos pensar nas fábricas, indústrias e empresas) estarão numa condição completamente diversa daqueles que não possuem os meios de produção (possuem tão somente sua força de trabalho, isto é, a possibilidade de serem empregados).

Basicamente, quem tem são os dominantes no quadro da sociedade, e quem não tem a propriedade privada são os dominados.

E isso está dado na própria estrutura do capitalismo, pois não há capitalismo sem a distinção entre os que possuem e os que não possuem a propriedade privada dos meios de produção.

Esse conflito estrutural, no marxismo, é o motor da história humana. E inexoravelmente nos conduz à transformação social, econômica e política – ou, recuperando o termo marxista, à revolução proletária que abrirá as portas para uma inédita sociedade sem desigualdade, sem dominação e, portanto, sem conflitos.

Mas se Marx era meio que fatalista quanto ao conflito, que se tornava algo inevitável e necessário à sociedade, outros sociólogos serão bem menos receptivos e baterão três vezes na madeira sempre que ouvirem falar de conflito. 

Comte, Durkheim e o equilíbrio social.

Honrando suas origens positivistas e funcionalistas, Durkheim não via o conflito com bons olhos.

Auguste Comte, pai oficial da Sociologia, e a quem Durkheim muito deve de sua inspiração sociológica, também tinha ressalvas contra o conflito. E isso a gente ente logo numa das mais famosas frases comteanas:

“O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim.”
(A. Comte)

Comte acreditava que a Revolução Francesa tinha bagunçado muito as coisas. E nessa bagunça faltou um novo conjunto de valores que, suplantando os antigos, guiasse adequadamente a nova sociedade.

Quer dizer, no esquema comteano, a sociedade estava superando sua forma teológica e militar e ingressando em sua fase positiva, que era uma sociedade de forma científica e industrial. E até aí tudo muito bom e muito certo, mas o problema era o espírito ausente: falta uma base moral, faltam os valores para guiar essa transformação.

Daí que viria a Sociologia com a missão de instaurar como que uma reforma intelectual. Mas intelectual não tanto no apelo a razão (que também existia), mas um apelo à moral-espiritual; isto é, todos os homens integrados numa ordem perfeita – amor, ordem e progresso, emendaria Comte

Conflitos? Algo ruim, anormal e evitável.

Conflitos são frutos daquela transição social realizada sem os valores adequados, sem a moral correta, sem um poder espiritual para guiar os homens.

Solução? Use a Sociologia e ela nos mostrará as leis da sociedade e como facilitar o cumprimento destas leis.

E é mais ou menos nessa onda conservadora que Durkheim irá seguir.

Pejorativamente chamado de o sociólogo do consenso – e não de todo injustamente -, Durkheim via  o conflito como uma patologia social.

Patologia conceitualmente entendida como a exceção que foge à regra. E sendo exceção, não contribui com o funcionamento do todo (no caso, da sociedade).

Portanto, o normal durkheimiano é a não-existência de conflito, que é visto como algo que atravanca a sociedade. 

O emblemático embate entre trabalhador e patrão, por exemplo, seria um desregramento atípico das relações sociais.

Caso as instituições sociais funcionassem direito, e caso a moral social fosse bem sedimentada, todos ficariam felizes e satisfeitos com a parte da sociedade – e do trabalho – que lhes cabe. Houvesse normas e valores adequados, os homens teriam suas ambições e desejos adequadamente contidos, o que faria a sociedade funcionar sem greves, manifestações e explorações. Tudo viraria uma coisa só e bem integrada.

Afinal de contas, vamos lembrar, Durkheim acreditava muito na função das coisas. O organismo social, sendo um todo bem integrado, terá suas partes funcionando em harmonia, cada qual na sua causa e razão de ser… e sem espaço para conflitos.

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Até agora vimos um conceito geral de conflito, então vimos a aplicação disso nos processos sociais, e por fim duas visões razoavelmente antagônicas – marxistas e o conflito enquanto fatalidade, e positivistas e funcionalistas execrando o conflito enquanto anormalidade.

Mas há ainda um outro olhar sobre o conflito. E é um olhar bem interessante. Digamos que a sua maior marca é ser analítico e neutro – conflito desfatalizado e despatologizado.

A análise conceitual de Weber e Simmel.

Weber, como de praxe, teoriza as coisas como que neutralizando as paixões e tendências pessoais que porventura influenciam a teorização alheia.

Daí que vai dizer:

"Uma relação social denomina-se luta quando as ações se orientam pelo propósito de impor a própria vontade contra a resistência do ou dos parceiros."
(M. Weber)

Ele fala luta, não conflito, mas a proximidade das ideias justifica tomarmos uma pela outra.

E claro que Weber vai muito além dessas duas linhas. Contudo, o que interessa aqui é reter o significado implícito: o conflito é antes de tudo uma relação social, isto é, um tipo de relação social. E nesta condição o conflito é inevitável:

"é impossível, de acordo com a experiência vivida até os dias de hoje, eliminar a luta na realidade."
(M. Weber)

Deste modo, ele contribui para encarar o conflito de modo muito menos tendencioso e muito mais circunscrito – nada de motor da história, nada de doença de toda a sociedade, mas sim uma relação social entre atores sociais executando ações sociais. 

Mas essa visão não-tendenciosa fica particularmente expressa numa outra visão que vê o conflito diluído em toda a sociedade.

Georg Simmel (1858-1918) foi um sociólogo alemão muito importante que apesar de não estar formalmente junto dos três porquinhos clássicos da sociologia (Marx, Durkheim e Weber) na prática é tão clássico e importante quanto eles.

Permanecendo somente nos propósitos deste texto, cumpre notar que Simmel enxergava o conflito como algo próprio da sociedade e, portanto, sem maiores dramas ou apocalipses.

Conflito é mais como um conceito, uma categoria, e assim está além do bem e do mal: é tão somente uma forma de interação entre os indivíduos.

Quer dizer, se isolamos suas causas ou consequências, o que observamos é que o conflito puramente uma ação recíproca entre as partes envolvidas.

"Toda ação recíproca entre homens é uma socialização, a luta, que constitui uma das mais vivas ações recíprocas e que é logicamente impossível de limitar a um indivíduo, deve constituir necessariamente uma socialização."

(G. Simmel)
O que Simmel pretende dizer é que quando duas pessoas brigam elas tem ao menos alguma coisa em comum – mesmo que seja somente a disposição compartilhada em usarem da força para resolver o conflito. Os envolvidos ficam num mesmo plano, reconhecem-se, invocam elementos comuns a ambas as partes. Até mesmo na guerra, por exemplo, os direitos humanos são (teoricamente, claro) reconhecidos por ambos os lado. 

Poderíamos tentar simplificar isso imaginando um jogo de tabuleiro – qualquer jogo, na verdade. Por mais que haja adversários, disputa, vencedores e derrotados, prêmios e conquistas, existem regras, parâmetros, uma porção de valores e práticas compartilhadas que todos os envolvidos devem dominar para poder participar do conflito.

Podemos ir além e dizer, portanto, que o conflito sintetiza o próprio princípio que possibilita a existência da sociedade: interdependência das partes e interação social.

Além disso, Simmel faz duas considerações sutis mas super precisas a respeito do conflito. A primeira, é de que o conflito só se desconfigura e deixa de ser uma forma de socialização quando uma das partes perde sua capacidade de defesa – nesse caso passa a se tratar de opressão.

A segunda, é que o conflito é propulsor. Através dele, a tendência é irmos além das coisas como são no presente. Essa é uma visão muito comum da Administração moderna: o conflito como força criativa. E é mais ou menos isso que Simmel dizia; quando há conflito há a quebra da inércia e criação de possíveis novas formas sociais. 

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E assim alcançamos um panorama parcial sobre o conflito na Sociologia. Não seu esgotamento, mas pelo menos um norte para se (começar a) pensar a questão.

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