sexta-feira, 26 de março de 2010

A infelicidade - a sociologia explica

Talvez seja um tanto contraditório começar um texto chamado a sociologia explica com Sigmund Freud, pensador vindo de outro campo, pai da psicanálise. Todavia, a contribuição dele tem um claro teor sociológico, e portanto, não é raro seu uso nas Ciências Sociais, dissipando essas barreiras disciplinares.

Pois bem, vamos ao que viemos: a infelicidade.


Ja no início do século passado se colocava em dúvida aquela promessa de uma sociedade em progresso absoluto e fonte de inimagináveis vantagens à humanidade. Todo o concreto, todas as leis, todo o maquinário e avanço tecnológico não foram as aguardadas flores perfumadas. Exemplo que coloca em evidência o por que dessa dúvida foi a Primeira Guerra Mundial, um golpe em cheio na crença de uma sociedade evoluída.

Neste contexto de questionamentos, Freud vai emergir com muito pessimismo e ceticismo. E é essa adjetivação que veremos impressa na maneira como ele encara a civilização, sugerindo então que é ela a fonte de nossas infelicidades e desprazeres.

A tensão básica que ele expõe, e que já evidencia bem a sua perspectiva sociológica, é de que existem duas faces da vida civilizada: a liberdade individual e o ordenamento coletivo. Forças num primeiro momento opostas que posteriormente se juntam em uma só dinâmica: a vida em sociedade.

Mas Freud é cético e pessimista. Articula então o raciocinio que se segue, argumentando por que essa dinâmica é tão cara para nossa felicidade.

Vida na civilização – isso que ele define como o controle do homem sobre a natureza e o ajuste dos relacionamentos humanos – só surge porque os indivíduos abdicam, todos, de suas vontades e liberdades, para ordenarem-se de tal modo que não sofram pela violência uns dos outros. Violência, sim, pois para Freud os homens são maus, perigosos, agressivos. Características que os instintos explicam...

Sem entrar no mérito desses supostos instintos, o que se destaca aqui é uma ordem coletiva que visa reprimir o que seria contrário a vida em sociedade. E aí é que tá a fonte de nossas infelicidades, pois para Freud, todos buscam a felicidade e satisfação como podem, só que o que é reprimido são justamente nossos instintos que, de algum modo, nos dariam prazer. Ou, se não dariam prazer, quando reprimidos retornam como o desprazer de algo sufocado. Por trás de todo esse papo instintivo, também fica a idéia polêmica de que afinal de contas o homem não pertence a razão, e sim ao desejo.

A civilização opera então uma verdadeira mutilação: reprime cada indivíduo forçando-o a renúncias íntimas e essenciais. Mas se isso já é traumático, torna-se ainda pior quando obriga cada um, em sua natureza social tão diversa, a enquadrar-se em um único e dominante modelo de vida. E aí estamos nós, infelizes e neuróticos.

Freud vai além. Atribui a essa repressão uma ação canalizadora – afinal, a energia dos instintos reprimidos deve ir para algum lugar – em direção às atividades intelectuais superiores, como a ciência. Isso nos remete novamente a idéia de jogar o proibido para dentro de mecanismos e procedimentos aceitos, e inclusive retirar daí algum tipo de satisfação. Porém, uma satisfação nunca igual àquela obtida na realização dos impulsos proibidos.


Acredito que toda a vestimenta psicanalítica de instintos e outras coisas que não mencionei – como libido, superego, inconsciente – pode ser deixada de lado em troca da síntese sociológica dessas idéias freudianas: introjetamos ordens e normas, tudo isso que a civilização dá como seus jeitos certos e civilizados de proceder, só que com um custo alto à nossa subjetividade. Surge então a necessidade de combater a consequencia de toda a renúncia que somos obrigados, como o uso de tóxicos e de ilusões que escapam à realidade. E o mais cruel de tudo, ponto alto do pessimismo de Freud, é que se com a civilização estamos presos desse modo e tão longe de nossas felicidades, sem ela perderíamos a segurança contra muitos de nossos desprazeres – em miúdos, trocamos nossas liberdades pela nossa segurança.


Como toda boa e clássica interpretação da realidade, não se trata aqui de tentar taxar isso como verdade ou mero delírio psicanalítico; trata-se de perceber como a civilização pode ter, coerentemente, uma culpa enorme para nossas infelicidades e crises existenciais. O que levanta, aliás, um ponto de deleite para os sociólogos: nem mesmo o meu mais íntimo eu está livre das influências do coletivo.

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