domingo, 19 de dezembro de 2010

Caiu o tempo

Para mim era fim de tarde, mas podia ser o fim de uma porção de coisas. Um fim de tarde no parque que ia bem vazio. Não tão vazio que a parte dos alongamentos e aquecimentos não estivesse com alguém; sabe, aquela parte do parque com barras e suportes para vários tipos de exercícios. Aí havia três pessoas.
Duas garotas de no máximo quinze anos, risonhas como tendem a ser duas garotas de no máximo quinze anos, estavam sentadas nos suportes de um lado. E um velho sentado no outro suporte de outro lado. Não só velho, mas velho maltrapilho. Mendigo na certa.

Sem preconceitos me ponho no meio das garotas e do velho. Os três sentados, eu de pé. Estico ali, estico lá, faço um alongamento. Então, subitamente:

- Caiu o tempo! - diz o velho.

Não só disse como apontou para o chão bem do lado do meu pé.

Procurei com atenção e não vi nada. Nada caído e nada que se parecesse com o tempo caído.

Olhei então para o velho que mantinha um dedo apontando o chão, bem como mantinha firme um olhar que acompanhava a direção do dedo. Um olhar vago, vítreo.

Depois reparei nas meninas e percebi que elas, com um risinho em suspenso nos lábios, aguardavam minha reação.

Constrangido, sem saber o que fazer ali entre o velho do tempo e as garotas do risinho, só pude perguntar:

- Caiu o tempo?

O velho não disse que sim nem que não, apenas abaixou o dedo e levemente balançou a cabeça num sinal afirmativo e pôs-se a olhar, com o mesmo olhar de vidro, lá para um outro lado. Estavam encerradas as explicações.

As meninas riram da piada que era metade o velho e metade eu dando bola para o velho.Sublimei e fui dar minhas voltas no parque. Lá pelas tantas fiquei pensando na coisa do 'caiu o tempo'. Que diabos era isso? Pensei e busquei uma explicação.

Nada. Coisa de louco.

Mas meu olhar, quando se voltou para dentro de mim, topou bem lá no fundo numa porção de curvas de minhas memórias, num lugar cinza em que remorsos e desejos se fundem num abraço de completa solidão para então, e só então, morrerem de uma saudade esquisita.

Pisquei com força, tirei os olhos de mim e joguei-os para fora quase com medo. Talvez a queda do tempo já venha me assolando há muito tempo.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Deus

E se tudo for Nada?

E se o tempo for só quimera,
piada dum poeta?
Passado e Futuro unidos assim,
só o agora, o Presente sem fim?

Só.

E se a terra for estática,
besta, pura repetição?
Sem porque da vida
senão o porque da morte?

Eu passo e você também.
Aqui no chão é só vento
da imaginação e nós,
os filhos sem céu.

E se for?

E se essa multidão que corre,
trabalha e reza for indiferente?
Corpo indigente que jaz na valeta
de um cosmos em pulsação?

Sim, isso e só.
E se tudo for Nada?
E se?
E se...

O universo balbucia, apático,
O silêncio do acaso.
Eu, centelha descontente,
Tapo os ouvidos.


César Bueno Franco

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Mulher pra casar

Semana passada li novamente Promiscuidades, a luta secreta para ser mulher. Certa vez tinha lido parte dele em uma aula de Sociologia da Sexualidade. Nele, a autora, Naomi Wolf, explora a biografia das mulheres para denunciar o script sexual da época delas - 1960-70 - e que, infelizmente, ainda se faz sentir em nossa época.

Só o título já sugere uma boa reflexão sobre como encaramos a sexualidade feminina – para minha mãe sugeriu um susto gigante ao encontrar esse título dentre as coisas de seu suspeito filho caçula...

Eu particularmente lembrei daquela expressão típica dos homens quando falam de uma ou outra mulher: essa é pra casar!

O debate em todo o livro é sobre os porques, os comos, e os traumas que cercam a as mulheres, uma vez que se veem presas em uma cultura que diz que devem ser passivas, recatadas, comedidas, quase assexualizadas, mas, ao mesmo tempo em que ouvem isso, possuem desejos, libido, e um corpo perfeitamente apto ao prazer – mesmo que lhe digam o contrário.

Ou seja, lutam o tempo todo para se manter a salvo da promiscuidade instituída pela nossa cultura.

Mas é uma luta desigual. Afinal, o que lhe imputa o título de piranha, vaca, puta, e tudo isso que a gente sabe muito bem que existe enquanto epíteto, nada mais é do que a norma da sexualidade masculina. Em miúdos: se elas fazem o que eles fazem, são vistas como promíscuas.

Para além dessa desigualdade, há ainda o fator histórico. Quer dizer, nem sempre as coisas foram assim. Outras culturas valorizavam e muito o prazer feminino, dando como obrigatória a satisfação daquele. E ai do homem que não o fizesse.

Já em nossa cultura, conseguimos apontar nitidamente momentos em que foi sendo definido e conceituado, artificialmente, uma visão sobre a mulher – passiva, não-sexual, não-erótica -, principalmente em nossa modernidade, e não apenas momentos mas também os recursos culturais empregados para tanto – livros, teorias, cultura popular. E o mais perverso é que isso aliou-se à ciência e vendeu a imagem da mulher assexualizada como sendo natural e inata.

Mas é um discurso que não se sustenta nem sobre suas próprias bases. Afinal, naturalmente falando, em termos biológicos, a mulher possui um potencial de prazer muito maior do que possuem os homens. Então qual é o sexo carnal? Será mesmo o masculino?

A máxima que diz as mulheres são sentimentais, os homens são carnais, cai por terra quando orientamos nossa visão em sintonia com uma abordagem sociológica. O problema, porém, é que é uma visão muito bem fincada em nossa cultura.

A mulher ainda carrega todo o peso de sua suposta sentimentalidade, traduzida principalmente na maternidade. Ainda cre-se que mulher, só é mulher, quando tem um filho, sendo incompleta e infeliz se assim não o fizer.

Isso alia-se com a imagem da esposa feliz e caseira, passiva e educada, que está sempre esperando seu marido chegar do trabalho.

São imagens um tanto exageradas talvez, essas da mulher mãe e mulher esposa, para falar dos tempos atuais. Contudo, não são invocadas a toa. Principalmente se entendemos que a mulher mãe e mulher esposa constituem a face de uma moeda que tem, do outro lado, a imagem da mulher prazer, essa mulher que, tal qual os homens, coleciona paixões, casos e sexos.

Essa mulher tão sexualizada ainda não é bem vista, e toda rua, bairro ou escola tem a sua garota fácil, aquela que os caras todos querem farrear ali, mas que nunca vão dizer para ela o que dirão para uma genuína e tradicional mulher esposa e mulher mãe: essa é pra casar.

Afinal, com suspeitos ares de séculos passados, ainda crê-se que mulher de verdade é um poço de virtudes sentimentais em nada sexualizado.

sábado, 30 de outubro de 2010

Dançarina

O desconforto generalizado me avisa: estou acordado. Mas, hoje, não estou sozinho.

Ela dança em torno da minha cama. Suave, os pés parecem não tocar o chão. E não ouço nada, nem música nem o farfalhar de suas roupas largas – onde estarão os sons que a movem?

Não vejo seu rosto, não sei quem é. Num rodopio tudo se distorce, consigo apenas notar sua pele clara, acetinada. Talvez uma estátua de mármore não fosse o calor que exala.

Ela se aproxima e me sinto confortável. Sensação rara com essa doença me consumindo. Ela ainda dança e se aproxima. Conforto, calor, leveza. Conforto.

Quem é você?

Sinto que estou delirando, não sei se penso ou se falo. Minha boca chegou a abrir? Ela continua a aproximação. Vem por rodopios sensuais, misto de luxúria e mistério.

Quem é você?

Ela chega lenta ao meu lado. Sem sair do lugar, mantém o corpo num balanço brando, a dança prossegue noutro ritmo. Me encara, espera por algo. Mas seus olhos inexplicáveis trazem uma estranha paz. Fico assustado. Preciso saber quem é ela. E então eu a sinto mais do que nunca quando pousa os finos dedos sobre meu peito. Num passe de mágica minha curiosidade cessa. Não preciso saber nada. Não preciso mais de nada... Confortável como há tempos não ficava.

Digo num último suspiro tudo bem, está tudo bem.

Ela para de dançar, interrompe seus movimentos atemporais – agora, depois, antes, nada importa naquela dança. Sorri para mim feito velha amiga e então fecha os olhos. Eu a imito, embarco na escuridão.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dia das Crianças, parque e promessas.

Caminhando no parque, dando voltas e voltas numa pista de concreto que circunda um lago, dentre bosques e pontes e gramados, as pessoas se esbarram pela estreiteza da pista; não esbarrões físicos e truncados. Não, é um esbarrão de outro tipo.

O que acontece é que pessoas, feito universos de diferentes lógicas e leis, por um segundo - bem naquele preciso segundo que comporta lado a lado o que vai e o que vem, o ponto de encontro do sentido horário com o anti-horário - se encontram, colidem em um nível imaginário, e tomam conhecimento uns dos outros. Olhar nos olhos, cumprimentar, prestar atenção de verdade ou não, ignorar com toda a prerrogativa de suas individualidades; as reações são várias. Mas o que acontece é que vidas alheias chegam a ouvidos alheios, e sem nunca encerrar por completo o sentido desta descoberta. Afinal, as pessoas, feito universos, são coisas de medidas nunca precisas.

***

Completamente cobertos pelas sombras das árvores, exatamente na parte mais afastada e por isso mais tranquila da pista de caminhada, os dois traziam um quê de solidão nos ombros. Caminhavam lado a lado, de mãos dadas, lentos, sem pressa; ele já trazendo uma insidiosa calvície dentre os cabelos parcialmente grisalhos, enquanto ela trazia, no máximo, seus 7 anos – ou menos? - e um vestidinho rosa combinando com fita vermelha amarrada em laço no pulso . Resquício daquele Dia das da Crianças, na certa.

Vistos de longe, pareciam não mover as bocas. Traziam juntos o silêncio – que tal qual a solidão, parecia maior no lado dele - e parecia ser um silêncio em suspenso, daqueles que pairam feito nuvem de chuva e cedo ou tarde há de desmanchar terra abaixo. Depois de tomar folego, é ele quem dá os primeiros pingos:

- Mas eu vou cuidar de você, tá bom? Mesmo só nós dois, o papai cuida de você, tá?

A menininha prosseguiu seus passos lentos. Guiada pela mão do pai que gentilmente segurava a sua, não disse nada. Porém, com a boca entreaberta, aqueles olhinhos vivos e úmidos matutavam alguma coisa, reagiam àquela singela promessa. Então, como se tivesse sofrido de um pequeno atraso no processamento das informações e elas surgissem assim, de supetão, num sobressalto ela levantou a cabeça com toda decisão.

- E eu cuido de você também, pai!

Corajosa, ela não quis ficar fora das promessas. Como para selar o pacto, usou então das duas mãos, suas diminutas mãos, para segurar a do pai.

As árvores à beira da pista continuavam a fazer uma só sombra, densa e pacata, enquanto os dois continuaram caminhando pelo parque; iam agora num silêncio não tão suspenso, pois os primeiros pingos da esperada chuva já se faziam sentir. A chuva que lhes levaria embora a solidão.

sábado, 9 de outubro de 2010

9 de outubro de 1967

Minha primeira camiseta do Che arrancava comentários de todos os lados. Uns poucos de simpatia, a maioria de provocação. Coisas de cidade pequena, eu acho. E nada que fosse além de um 'bonita camiseta!' vago, ou então as famigeradas piadinhas típicas do ensino médio – então eu tinha 15 anos e vivia nos ambientes próprios da idade -, todas aproveitando-se da ambiguidade sonora latente de Che Guevara.

Por sua vez, um amigo, quando notou que eu insistentemente usava a camiseta do Che, como um desabafo, disse: Meu, esse cara aí saiu de moda na década de 60!

Bem, em parte. A avalanche de produtos Che diz o contrário. Como os BelduinoS bem cantaram, capitalizam o Che. Essa moda comercial, fria e consumista, nunca abandonou o guerrilheiro da nossa américa.

Seja como for, eu tinha uma paixão genuína pelo mito Che. E como toda paixão, olhada agora em retrospectiva, algumas coisas podem ser contabilizadas enquanto outras não.

Conto quatro camisetas baratas, uma boina e uma tatuagem, tímida, de henna. A contagem envolve ainda cerca de um ano e meio deixando os cabelos crescerem desgrenhosamente, e cerca de dois de boicote ideológico a tudo que era de grandes marcas, principalmente da Coca Cola... Ímpetos um tanto ingênuos, admito.

Outras já não se contam facilmente. Um senso ético bem afiado – em uma palavra, chato -, um até então inédito abrir dos olhos, e também uma suspeita opção por cursar Ciências Sociais.
Porém, ao lado da contagem, de alguma forma, quando olhada em retrospectiva, essa paixão parece apagada. A clássica imagem do Che vira apenas uma sombra que ignora o olhar altivo e inexpugnável de um dos mais importantes homens do século passado. Os textos inspiradores, as anedotas de guerrilha, os discursos inflamados, tudo perde-se em uma neblina dada pela memória que vai, aos poucos, se enchendo de outras coisas.

Mas lembro ainda do meu amigo dizendo que o Che saiu de moda.

E sei que em parte ele saiu mesmo. Mas essa parte que saiu, essa parte que não diz respeito à avalanche de produtos Che; essa parte realmente fantasiosa é aquela que no alto de sua retirada forçada nos faz exclamar, ante sua ausência, um profundo que pena. É um desencantamento a mais.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Folha em branco

No horizonte do tempo os anos luzem, promessa convidativa de uma folha em branco. O que escrever, o que desenhar? Pode-se tanto e tanta coisa é possível.


Então o pulso fraqueja e os dedos entortam.
Frágil, a mão vacila sobre a folha.
Nenhum traço, sequer uma letra. Nada sai.

A folha em branco, indiferente, permanece. É cravada à força na retina dos olhos assustados, os olhos donos da mão e do medo; esses olhos vitimados pelo branco perturbador que ameaça ser eterno.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Poupe seu amigo gay

De canto de olho, quase automaticamente, notei os dois quando chegaram atrás de mim. Um cara e uma garota, cada um com no máximo seus vinte anos. A primeira impressão foi de que eram um casal, algo entre namorados e ficantes. Que nada.

O tal cara tinha todos os trejeitos na fala, bem como a linguagem corporal mais estereotipada possível daquilo que nossa sociedade moderna chama de um cara gay. Entendi então serem só amigos. Ou amigas, sabe-se lá.

A minha vez no caixa do supermercado ainda ia longe e, sendo assim, meu ouvido ficou a mercê da conversa dos dois – era a conversa ou a irritante música ambiente no melhor estilo música-de-elevador só interrompida para anunciar a cenoura por 49 centavos o quilo e algumas outras promoções.

A garota falava de um pedaço de tecido azul, algo que ela tanto precisava para sua fantasia. Para uma festa decerto. E ela precisava com urgência, tanta urgência que até transferia sua agonia para uma ênfase descabida nas silabas tônicas das palavras desesperada, preciso e urgente. Mas isso era só a primeira marcha; logo ela engatou a segunda.

Contou que foi na loja da rua X onde a vendedora fez pouco caso e disse que não trabalhava com aquele tipo de tecido. Daí, na loja da rua Y, em frente a loja da Bruna – sabe a Bruna, né? -, a vendedora trouxe tudo quanto era tecido, de tudo quanto era cor azul, mas nada do tecido azul que queria. Ai, que ódio! Foi uma hora inteira só nessa loja.

E engatou a terceira.

Explicou ter ficado muito nervosa, já estava para desistir de achar o tecido por aqui. Já planejava ir até Maringá, talvez Londrina, para ver se lá achava o tipo de tecido. Porque cidade pequena é um inferno, não se acha nada, detesta esse provincianismo, é mais fácil comprar no Mercado Livre do que comprar nesse fim de mundo. E quando estava voltando para casa, menino, quem me liga? A Ju. E sabe as sandálias que eu tinha te falado? Ela contou que chegaram um modelos lindíssimos lá na loja A! Eu estava louca há tempos atrás delas.

Isso foi a quarta marcha engatando.

A garota falou então que bateu perna até a loja A, mas ficou decepcionada pois não tinha o modelo que queria e por isso jurou vingança contra a Ju. Essa sacana me paga. Mas como a loja B era pertinho, foi até lá ver se não encontrava, por acaso, a sandália desejada. Encontrou nada. Reclamou de andar meio mundo, depois reclamou também do calor, do sol e do suor que a melou inteira; esforço à toa.

E se a coisa parecia morrer aí, a garota contou que viu na rua o Marcelo com a Camila. Quinta marcha no osso, alta velocidade.

Porque os dois tinham se separado com briga e tudo. O cretino havia traído ela com a melhor amiga, e ela, como troco, ficou com uns tipinhos aí que eu nem comento. E agora estão juntos, de beijinho pra lá e pra cá? Me poupe. Porque se fosse comigo eu não voltava atrás, nunca ia me sujeitar a isso. Eu? Nunquinha. Homem assim pra mim não cola. E depois, ainda por cima, sair agarrando qualquer um só para fazer dor de cotovelo no Marcelo, e daí voltar com ele? Ah, tenha santa paciência!

Enquanto a garota narrava sua homérica jornada consumista, o amigo gay se limitava tão somente a pronunciar uns Jura?, ou então Nossa!, ou, para entrar no clima da narrativa, um ou outro Não creio! Isso me fez pensar que na cabeça de algumas mulheres o que separa um amigo gay atencioso 'que te dá ouvidos' de um namorado grosso que 'não te ouve nunca', é uma tênue linha, tão somente uma linha; algo simples como a entonação de voz, pois ambos usam das mesmas palavras.
Pensei ainda, com muita empatia, a respeito da potencial aflição daquele cara. Além de ter de encarar todo dia o machismo estúpido institucionalizado, ainda tem de aguentar aquele tipo de amiga que acha que ser gay é ter de emprestar o ouvido para tudo quanto é coisa. Tudo no mesmo pacote, colado e inseparável. Gay como sinônimo de platéia para um monólogo sem fim.

Se o cachorro do cara tivesse sido atropelado; se seu pai tivesse tido, há pouco, um enfarte; se sua mãe morresse atropelada junto do cachorro; ou podia ser que ele mesmo,o cara, acabasse de descobrir um câncer fatal; nada disso faria diferença nenhuma, nada lhe daria o direito de ser aquele que fala. Parece que a garota ia continuar falando de tecidos, sandálias e traições, se segurando para não atropelar as palavras, mas tão rápido quanto podia para poder, afinal, falar mais e mais.

E ela poderia ter resumido a história em poucas frases.

Fui atrás de um tecido azul para minha fantasia, não achei nada. Aproveitei e procurei aquelas sandálias de que tinha te falado, mas também não achei. De quebra vi o Marcelo e a Camila na rua; acredita que eles voltaram?

Pronto, simples e conciso.

Sei lá. Vai ver ser gay é ter uma paciência louvável, ou mesmo um interesse legítimo em ouvir essas coisas extensas e, digamos assim, descartáveis. Mas que dá pena, ah, isso dá. Pois enquanto eu estive na fila do caixa, e eles ali atrás de mim, pude ouvir como a garota falava, expandindo seu ego até os tímpanos do amigo. E sem sequer diminuir ritmo ou perder a respiração – e nisso ela merece aplausos.

Como sempre acontece nas conversas roubadas, senti um ímpeto de virar para trás e puxar conversa com o gay. Perguntar do seu dia, do pai, da mãe, do cachorro dele. Talvez fingir ser um conhecido lá da já distante escola primária, fingir ser do IBGE, qualquer coisa, só para dar uma pausa aos seus ouvidos certamente cansados e deixar ele falar um pouco, desafogar suas histórias. Claro que me contive.

Bem, vai ver ainda que é por isso que algumas mulheres sonham tanto com um amigo gay, esse amigo que ouve, ouve e ouve, em recatado silêncio, e ainda sorri de volta para essas coisas que muita gente classificaria como bobagem. Ora, não custa poupar o ouvido do amigo gay.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Crônica de um desocupado

Saí de Curitiba e estou, de novo, na casa de meus pais.

Se o bom filho à casa retorna, o filho recém formado com suspeitos ares de desocupado retorna também – seja ele bom ou mau.

E isso é um problemão, pois fato é que ninguém vê com bons olhos essa espécie de férias por tempo indeterminado. Tanto isso é verdade, que segue o relato abaixo.

Pela segunda vez eu ia até a biblioteca; da primeira fiz o cadastro e peguei dois livros de contos. Então pela segunda vez cabia devolver os livros da primeira e pegar outros.

A bibliotecária foi toda simpatia durante a arguição para a ficha cadastral. Não obstante, me colocou em saia justa quando perguntou, lá pelas tantas, o que eu faço. Será que esperar pela formatura me autoriza a dizer que sou estudante? O migué cola ainda?

Autorizando ou não, colando ou não, consta na minha ficha da biblioteca municipal que ainda sou estudante.

A garota, a bibliotecária, até perguntou com interesse sobre o curso de Ciências Sociais e concluiu ser ele tão interessante quanto Filosofia e História. Como não cabia a mim destruir a boa impressão que ela construiu tão rapidamente, assenti em silêncio.

Aí, na segunda vez, já esperando certa simpatia da bibliotecária, fui educado pra burro: dei bom dia e sorri (o ápice da minha boa educação lacônica).

Nisso já havia escolhido outros dois livros de contos – sensacional aquela coleção Maravilhas do Conto Universal – e devolvi os outros.

Então a garota, como quem não quer nada, manda:

- E aí, pensando em um Mestrado?
- Pois é... Quem sabe? Mas é um tanto complicado.
- Verdade, bom se fosse tão fácil quanto parece, não é?
- Sim. Por ora fica como possibilidade. – eu disse sorrindo, como quem encerra o assunto.
- Mas você deve mesmo pensar nisso. – ela estava disposta a continuar. Você anda tão desocupado para quem acabou de se formar!

É certo que a garota andou conversando com meus pais. Só pode.

Na hora não assimilei o soco no meu moral. Quer dizer, eu devia ter perdido alguma coisa, algo que me faria entender de onde ela tirou tamanha intimidade para fazer um comentário desses. Sei lá, talvez uns cinco anos de amizade sumidos misteriosamente de minha memória.

Dei uma tossidinha e um sorriso encabulado. Não tinha mais o que fazer. Peguei os livros e fui embora.

Não entendo por que essa cisma com os desocupados. Aliás, o preconceito é insensato. Diz o dicionário:
Desocupados.m. 1. Aquele que não tem e não quer ter ocupação, trabalho. Ex: Enrola, finge, mas é um desocupado.

Poxa, ta certo que o desocupado não tem ocupação... mas dizer e não quer ter é sacanagem. No mínimo o dicionário também andou falando com meus pais.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Dias esquisitos

Tem dias que são esquisitos

Pior: a esquisitice começa cedo

Quando o pé quente, recém saído das cobertas, pousa no chão frio, algo de esquisito já bate dentro da gente. Pior dois: a esquisitice é nossa e de mais ninguém. Sim, pois é só o nosso pé encostando no chão e somos apenas nós que nos sentimos esquisitos depois disso. Logo vem a dúvida cruel, serão os dias esquisitos ou nós que somos esquisitos alguns dias?

É uma sensação complexa. Confusa e difusa. Parece correr em nossos pensamentos de uma ponta a outra, sejam eles pequenos ou grandes; parece pairar sobre nossas vontades feito uma rígida ditadura da esquisitice, ditando o ritmo (esquisito) da marcha (esquisita) de todas elas. No entanto, não dá para apontar essa sensação e menos ainda detê-la.

Seguem consequências práticas: estudar é complicado; assistir jogo da Copa é chato; comer é só mastigação; e ter que ser apresentável aos outros bons cidadãos torna-se uma parte insustentável duma rotina mais furada do que nunca.

É um sentimento de que algo falta. Uma ausência que desencadeia essa sensação de estranheza. Um descompasso interno, só não se sabe o que descompassou do que. Só se sabe que foi um treco que se iniciou quando alguma coisa – talvez alguém? – faltou. Como eu disse, uma ausência que dá início ao estranho dia. Suspeita-se que o que sumiu foi um ponto-chave, uma engrenagem fundamental tua que, quando retirada do mecanismo, compromete tudo.

Concluímos forçosamente que se é assim, então só podia mesmo ser um dia esquisito.

Mas sei lá. O que poderia estar faltando? Se fosse um objeto real e concreto, apalparíamos os bolsos à procura de uma pista. Revistaríamos a memória com perguntas idiotas do tipo ‘de onde eu acabei de vir, para onde estava indo, o que eu estava fazendo’. Talvez assim uma revelação nos surgisse como presente.

Se fosse real e concreto, vasculharíamos o quarto, depois a sala, então o banheiro e, por último, até dentro da geladeira. Não se sabe o que é que se procura, mas algo está sendo procurado. Sim, pois algo falta, algo está ausente. Está estranho porque algo está ausente. É a engrenagem, o ponto-chave. Sabemos apenas que algo falta. O que era mesmo? Isso não se sabe, mas sente-se que se por acaso o olho bater em cima do objeto certo a gente vai lembrar e soltar cheio de satisfação: achei!

Mas em dias esquisitos do tipo que estou falando, o que falta não é algo concreto nem real. Talvez seja real, mas é o tipo de real que não está no concreto e por isso é tão complicado. Difuso e confuso, eu dizia. Por isso a gente não acha ou encontra, e nem adianta procurar pela casa toda. Já os bolsos parecem pequenos demais para comportar essa anônima falta que deixa o dia tão esquisito.

No fim só resta mesmo ter um dia esquisito. Resignação (mais uma?) sempre vai bem. Mas a gente torce que depois de entrarmos naquele portal chamado cama – que nos leva direto através duma fissura temporal até um outro dia, isso quase que instantaneamente após o fechar dos olhos – as coisas voltem ao normal. E uma hora tem que voltar, é necessário.

É que dias esquisitos são um saco, de verdade.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A vida é tão bonita!

Às vezes eu fico escutando o papo dos outros. Mas não é por mal, apenas acontece.

Eu estava almoçando, quase na metade do prato, quando os três chegaram. Um cara e duas garotas. O cara sentou ao meu lado enquanto que as duas garotas, uma morena e outra ruiva, sentaram à minha frente. As mesas do restaurante da UFPR são funcionais, coletivas e econômicas, ou seja, não foram projetadas pensando em intimidade, espaço, higiene preventiva, ou qualquer outra banalidade. Posto isso, o leitor terá de convir que não havia nada que eu pudesse fazer para evitar a proximidade daqueles três estranhos e muito menos me resguardar da conversa que tiveram. Inevitavelmente ela caiu em meus ouvidos.

Já saquei logo que elas não estavam a vontade com a presença do cara. Ficavam em conversinhas internas, piadinhas só das duas, citando amigas que só elas conheciam. 

Garotas que acham que por serem garotas podem ser esnobes com garotos só porque eles são garotos não é um treco detestável? Talvez o cara tivesse se escalado para almoçar com elas. Que seja. Isso não diminui o esnobismo delas nem a cretinice.

Enfim, ficaram lá fingindo que o cara não existia e fazendo pouco caso de tudo o que ele falava. Quase que entro na conversa e divido a trincheira com ele só para não deixar um companheiro passar por aquele embaraço. Me contive, é claro.

Aí, subitamente, a morena deixou a conversa interessante.

- Meu vizinho suicidou.
- Nossa! – disse a ruiva como se conhecesse o suicidado desde a quinta série e tivessem namorado por dois anos.
- Pois é – continuou a morena. - Contei isso pra um amigo meu, e aí ele me falou que já tentou suicídio três vezes.
- Nossa! – repetiu a ruiva, demonstrando um vocábulário invejável.
- Três vezes? – se intrometeu o cara. - Ele tá acumulando experiência em suicídios fracassados ou o quê?
Se o cara já tinha minha simpatia a priori, depois dessa meu apreço por ele foi às alturas . Ô presença de espírito!
Não sei se a intenção era só fazer joça inocente ou sacanear as garotas (tipo um troco pelo esnobismo). Seja como for, para surpresa minha, a morena entrou na dele e se saiu ainda melhor no quesito humor negro.
- Sim! Porra, três vezes? É o cúmulo da incompetência não conseguir dar fim na própria vida.
- Nossa! – a ruiva estava inconformada mas não largava mão do nossa.- Eu nunca faria uma coisa dessas. Acho a vida tão bonita.

Parei.

Larguei os talheres, subi o olhar diretamente para a cara da garota ruiva. Eu precisava ver como se parece alguém que acredita, de verdade, que a vida é uma coisa tão bonita. Não tinha nada carimbado na testa, mas era o tipo de rosto que pode, mesmo, achar que a vida á uma coisa tão bonita.

E como é isso? Ela acorda e os Ursinhos Carinhosos vão, um a um, dar um abraço apertado nela? Ou será que depois do trabalho, da aula ou coisa que o valha, ela e todos seus colegas dão as mãos e começam a cantar We are the world, we are the children... ? Sério, como é isso da vida ser tão bonita?

Por sorte, a morena continuou mostrando ter um humor muito refinado – não obstante ela fosse esnobe, claro.

- Pior foi depois. No outro dia uma galera conversava sobre o suicidado e tal, e eu no meio. Aí chegou a hora de ir pro trabalho e eu falei: Bem, já que eu ainda tenho uma vida, vou indo trabalhar! . Gente, todo mundo me olhou com uma cara...

Passei a gostar seriamente da morena. Segurei o riso imaginando uma porção de expressões embasbacadas depois de ouvirem um treco desses.

Não dá pra negar : a morena tinha também uma presença de espírito foda.

Depois o rumo da conversa mudou, meu almoço acabou, então fui embora deixando o cara esnobado com as gurias esnobes.

Mas, caramba, a vida é tão bonita ganhou o dia. 

Sei lá... o pôr-do-sol na praia é clichê, mas é uma coisa bonita. Uma garota usando vestido florido num dia quente de verão é uma coisa bonita. A Scarlett Johansson em Encontros e Desencontros é uma coisa bonita. Mas a vida não!

Mesmo que você esteja assistindo o pôr-do-sol na praia em pleno dia de verão ao lado de uma garota usando um vestido florido, e mesmo que essa garota fosse a Scarlett Johansson, nem assim a vida seria tão bonita -tá, com a Scarlett talvez fosse, mas só talvez.

A questão é que alguns pedacinhos da vida são bonitos, não o conjunto. O conjunto é feio e mau, e ponto final.

Enfim. Acho que sou ranzinza demais. Mas esse treco de a vida ser tão bonita... desperta a ranzinzice de qualquer pessoa com bom senso.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Os primeiros versos

Com uma cerveja na mão esquerda e um punhado de nostalgias na direita, andei por caminhos que há tempos eu não andava. A estrada era de sinuosas curvas e placas um tanto confusas; ora indicavam cidades, ora nomes de colegas do primário. Inspirado pela gelada noite de segunda-feira, fui longe nesse caminho de memórias envoltas em tanta neblina. Lá pelas tantas, sem querer, tropecei num dos ‘primeiros’ da minha vida.

No caso, era a primeira paixão. Mas como é brega demais e clichê em demasia falar da primeira paixão, falo mais do que veio colado nela: os primeiro versos.

Se hoje eu tento com duvidosa determinação e certo fracasso ser um escritor amador, é porque na minha primeira paixão eu inventei que tinha de escrever um verso de amor, os primeiros versos de amor.
Eram versos singelos como a maioria dos corações pré-adolescentes, recheados de implícitos temores e desejos que só são compreensíveis quando se é pré-adolescente. Ninguém mais entende, não adianta insistir.



Aquela garota é tão bela / Que eu até fico louco por ela. / Por ela eu sinto uma paixão, / Pois parei de pensar com o cérebro/ E pensei com o coração. / Não sei ao certo se estou amando, / Mas sei que estou me apaixonando, / E é por você...

Pois é. Eram bobos assim mesmo. Por algum motivo eu ainda me recordo com exatidão das rimas – pobres e previsíveis, mas olhe lá, eram rimas...

Talvez eu me recorde porque ensaiei, metodicamente, quase diariamente, declarar-me com essa mini-poesia.

Declarar... acho que nunca mais usei esse verbo nessa situação desde minha sétima série; dá pra imaginar você, barbado, ‘se declarando’ para alguém? É tipo dizer que você ‘gosta’ da pessoa; você só pode gostar até certa idade, depois o verbo muda. Vai ver verbo também tem pré-adolescencia, se apaixona, se dana, aí vem a adolescencia, se apaixona e se dana de novo, e aí vira adulto pra se apaixonar e se danar novamente... Enfim, a questão é que nesse processo o verbo muda.

Bem, eu ia, mesmo, recitar os versos cara a cara com a garota. Afinal ela era a dona de minhas rimas, de minha inspiração e do meu o afeto desmedido de quem tem só 13 anos. Mas por sorte ter 13 anos implica um monte de coisas; além da inexperiência, da falta de bom senso, e de um certo lirismo já exagerado quando se trata de paixonites, ter 13 anos implicava – para mim ao menos – ser tímido, horrivelmente tímido.

Timidez de corar só de olhar nos olhos da garotinha. Que dizer então dos meus planos românticos de pegar nas mãos dela, encará-la serenamente, fazer uma voz rouca e segura (algo peculiarmente difícil quando se tem 13 anos e tua voz é desesperadamente desafinada ao sabor dos hormônios)? Só em sonhos mesmo.

Então nunca recitei nem me declarei. 

Mas não lamento - e não só pela vergonha poupada. Se eu tivesse me declarado, talvez, vai saber?, eu nunca teria insistido em outros versos nem teria buscado rimas para palavras diferentes. Não que hoje eu faça rimas sensacionais ou capte com maestria os dissabores da alma humana; mas, como dizem os otimistas, uma decepção ensina mais que um sucesso.

Vai ver isso cole também para os nossos eus líricos... Tantos caminhos de tantas placas, em tamanha neblina, devem ir mais longe, e fundo, nas ausências do que nas presenças.

Mas isso já vai além da primeira paixão, dos primeiros versos e muito além da cerveja, que não resta nem um último gole. Só a nostalgia resta. Ah, essa sempre resta.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Ryotiras

Ryotiras tem umas tirinhas realmente legais. Dá pra passar um bom tempo lá se divertindo entre sacadas de humor...


... e leves tiradas filosóficas...


Aprecio bastante esse estilo multiforme do desenhista responsável - não é chato quando tira após tira algo sempre se repete?

domingo, 30 de maio de 2010

Desenhos antigos e propaganda

A internet é amiga de todo o tipo de procrastinação. Na facilidade dos links a gente perde fácil uma tarde toda, e daí que dar aquela pausa só para checar os e-mails é sempre uma tarefa arriscada: será que eu volto? Estudos, trabalho, até namoro; tudo vai pelo ralo das infinitas possibilidades virtuais.

No duro. E deve existir até algum inútil estudo sobre pessoas que vão checar seus e-mails e acabam abduzidas porque clicaram para ler a notícia X, aí foram pesquisar o que era a coisa Y citada na notícia, e portanto caíram num site Z muito legal que tinha N coisas.

Enfim, nessa espiral de portas que só levam a outras portas, acabei parando no MOB Magazine e encontrei uma lista de desenhos antigos da Walt Disney que serviram de propagandas escancaradas – hoje, para nosso alívio, é tudo mais camufladinho.

Aliás, descobri nisso que nos tempos das pedras já existia indústria de cigarros e que os preferidos de Barney e Fred eram os cigarros Winston. Pois é.

Mas os melhores desenhos são aqueles de meados de 1940. Propaganda de guerra muito barata, direta para os olhinhos redondos e infantes de uma geração de sobrinhos do Tio Sam. E o mais irônico é que os próprios desenhos norte-americanos criticando a Alemanha Nazista acabavam caindo na sua própria crítica. Caso do clássico ‘o sujo falando do mal lavado’.

Acho que é até mais do que isso. Assistir Pato Donald e outros satirizando um país - que não os EUA - sustentado numa indústria bélica, condenando um país guiado por políticas militares agressivas, culpando por fim a ideologia pré-formatada e alienante de uma nação, é uma grande piada pronta nos dias de hoje. Só colava mesmo nos anos 40.Dar uma olhada vale os minutos perdidos e compensa a procrastinação - palavra legal, não?















PS: no desenho do Donald aquele relógio sussurrando Heil Hitler, Heil Hitler é totalmente macabro!